Rios sinuosos atravessando preguiçosamente trechos de mata e lagoas frequentadas por garças, tuiuiús e jacarés logo vêm à mente quando se fala em Pantanal. A presença da água está intimamente associada à paisagem desse ambiente, uma das áreas alagáveis mais extensas do mundo. Embora seja o menor dos seis biomas brasileiros é mais vasto do que a Grécia, a Inglaterra e uma centena de outros países. Também é o mais bem conservado, apesar da crescente conversão de seus campos naturais em pastagens para o gado de corte nas últimas décadas. Em 2019, o Pantanal ainda mantinha 84% de sua vegetação nativa, segundo o levantamento mais recente do projeto MapBiomas, que acompanha o desmatamento e as alterações no uso do solo nos ecossistemas brasileiros. A precipitação é alta e não é homogênea, variando de mil a 1.500 milímetros por ano, concentrada de outubro a abril, mas a água que mantém até 80% de suas terras inundadas por meses é levada para a região pelos rios que se originam principalmente em áreas mais altas próximas à Amazônia, ao norte, e no Cerrado, a leste.
A água, apesar de fundamental, não é o único elemento definidor da paisagem pantaneira. O fogo também influencia a distribuição e a abundância de espécies da vegetação, indicam estudos de pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Diferentemente dos incêndios intensos e duradouros como os deste ano, capazes de deixar a terra arrasada por períodos ainda desconhecidos, aqueles esporádicos e de menor proporção reduzem a presença de espécies sensíveis ao fogo e favorecem o brotamento das resistentes, remodelando a paisagem. “O Pantanal também depende do fogo para ser como é”, afirma o ecólogo Danilo Bandini Ribeiro, da UFMS, que investiga o efeito de incêndios sobre a fauna e a flora da região. “A água e o fogo atuam de forma semelhante na estruturação da vegetação. Tornam a paisagem mais aberta”, explica o pesquisador, coordenador de um projeto na Terra Indígena Kadiwéu, em Mato Grosso do Sul, que vem mostrando que o uso controlado do fogo para eliminar o excesso de biomassa de gramíneas das formações abertas ajuda a prevenir grandes incêndios.
Campos formados por gramíneas e arbustos ocupam 7,9 milhões de hectares (52,4%) da planície pantaneira, um terço deles temporária ou continuamente alagados, segundo os dados do MapBiomas. Concentradas ao longo dos rios e na região mais úmida, a oeste, as florestas cobrem 19,6% do Pantanal. Outros 9,2% são compostos por vegetação típica de Cerrado, localizada a leste. A diversidade da flora e da fauna pantaneira é menor do que a da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica. São cerca de 2.500 espécies de plantas e 1.213 de vertebrados (580 de aves, 271 de peixes, 174 de mamíferos, 131 de répteis e 57 de anfíbios), das quais se estima que apenas 5% sejam exclusivas dali. O restante é compartilhado com o Cerrado e a Amazônia, ambos fonte importante da biodiversidade pantaneira, além do Chaco e da Mata Atlântica.
O número reduzido de espécies exclusivas do Pantanal, no entanto, é compensado pela exuberância das populações de alguns animais. É ali que se observam mais facilmente exemplares de espécies compartilhadas com outros biomas, como a onça-pintada (Panthera onca), a ariranha (Pteronura brasiliensis), o veado-campeiro (Ozotocerus bezoarticus), a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus) e o tuiuiú (Jabiru mycteria). “A alternância entre cheias e secas cria ambientes muito diversos, que fornecem abrigo e alimento para a fauna”, conta a zoóloga Neiva Guedes, da Universidade Anhanguera-Uniderp, cujo trabalho de preservação tirou a arara-azul da lista de espécies ameaçadas de extinção.
Desde que o clima na região se estabilizou há 18 mil anos, a oscilação no nível das águas, determinada pelos pulsos anuais de inundação dos rios, atua como um modelador da paisagem. O nível e a duração das enchentes, além da qualidade do solo, criam as condições para a existência de uma diversidade de arranjos da vegetação. Lagoas e baías temporárias ou permanentes, habitadas por plantas aquáticas submersas, emergentes e flutuantes, existem ao lado de campos inundáveis de gramíneas e próximo a ilhas (capões) e corredores (cordilheiras) de mata fechada com espécies do Cerrado e da Amazônia. “Com uma diferença de uns poucos metros na altimetria do terreno, mas o mesmo regime de chuvas, encontram-se das formações de plantas aquáticas às florestais”, relata o agrônomo e botânico Arnildo Pott, professor visitante sênior da UFMS e estudioso da paisagem e da vegetação pantaneira.
Foram Pott e o botânico Geraldo Alves Damasceno Júnior, também da UFMS, que começaram examinar detalhadamente há 20 anos a influência da interação entre a água e o fogo na estruturação e na regeneração das formações vegetais pantaneiras. Em 2011, na região de Corumbá, no norte de Mato Grosso do Sul, o grupo coordenado por eles comparou a capacidade de rebrotamento de 7 espécies de arbustos, 17 de árvores e 25 de cipós (lianas) em áreas de mata que haviam sofrido incêndios esporádicos na década anterior com o desempenho das mesmas espécies em regiões livres do fogo. Uma das conclusões, apresentada em um artigo de 2014 na revista Forest Ecology and Management, é de que cheias naturais do rio Paraguai são determinantes para definir os ambientes e as espécies que vivem neles. “A inundação restringe o número de espécies porque a água preenche os poros dos sedimentos no solo e diminui a disponibilidade de oxigênio”, explica Damasceno. O fogo alterou a distribuição de espécies, que diminuiu nas áreas inundadas e aumentou nas mais altas e secas.
Em outra área próxima a Corumbá, o grupo analisou o efeito da água e do fogo sobre 39 espécies de árvores. As matas da região são dominadas por exemplares de ingá (Inga vera), pau-de-formiga (Triplaris gardneriana), canela (Ocotea diospyrifolia) e tapiá (Crateva tapia). De modo geral, cada espécie responde de maneira diferente à água e ao fogo e algumas se tornam mais frequentes em áreas mais altas após incêndios repetidos, concluíram os pesquisadores em artigo publicado em 2016 na PLOS ONE. Plantas como o ingá ou o tucum (Bactris glaucescens), uma palmeira, rebrotavam mais rápido e apresentavam mais exemplares nas áreas que haviam sofrido ação do fogo.
A interação entre fogo e água também se mostrou importante para preservar a estrutura de um tipo de vegetação característico do Pantanal: as formações monodominantes. Facilmente reconhecíveis, são áreas, algumas com dezenas de quilômetros de extensão, em que predomina uma espécie de árvore. Uma delas é o paratudal, dominado por exemplares de paratudo (Tabebuia aurea), uma árvore da família do ipê com flores amarelas e casca usada para combater vários problemas de saúde. Damasceno e sua equipe avaliaram recentemente a influência da ocorrência de fogo e de inundações nos paratudais no sul de Mato Grosso do Sul, e concluíram que a alternância de enchentes e incêndios favorece a predominância do paratudo sobre as 35 outras espécies encontradas nesse ambiente. Segundo artigo a ser publicado em 2021 na Forest Ecology and Management, parte delas era tolerante ao fogo e parte às inundações. Apenas Tabebuia aurea saiu-se bem sob as duas condições.
Um segredo da capacidade de recuperação das paisagens pantaneiras está no solo. Ele armazena uma grande quantidade de diminutas sementes de plantas aquáticas, anfíbias e terrestres que sobrevivem a incêndios e inundações e germinam ao encontrar as condições adequadas. Em amostras de solo coletadas no fundo e ao redor de lagoas temporárias da região de Miranda, Pott e a botânica Francielli Bao encontraram sementes de 70 espécies de plantas. Na UFMS, submeteram as amostras de solo a duas condições: três meses submersas em tanques de água e três meses expostas ao ar, simulando a pós-inundação. Eles constataram que, na primeira condição, nasciam as plantas aquáticas e as anfíbias. Já as terrestres só germinavam com a diminuição da umidade. “O solo do Pantanal tem um banco de sementes flex, com espécies resistentes às duas condições, o que permite à vegetação sobreviver à cheia, ao fogo e aos herbívoros”, diz Pott, que chegou ao Pantanal no início dos anos 1980 para trabalhar como pesquisador da Embrapa.
Em um experimento que realizou em 1986, ele constatou que a presença do gado não é necessariamente nociva à paisagem da região, em especial aos campos nativos. A fim de conhecer como seria a vegetação campestre pantaneira original, antes da introdução do gado no século XVIII, Pott cercou uma área de 600 hectares na fazenda Nhumirim, da Embrapa. Um ano depois, o que era capim baixo virou uma macega (capim alto). Dois anos mais tarde um incêndio consumiu toda a vegetação, que passou a rebrotar dias mais tarde. “Notei que a ação do gado poderia auxiliar na prevenção de incêndios e criei a expressão boi-bombeiro, que agora foi politizada”, afirma o botânico.
Hoje as áreas mais secas, afastadas dos rios, abrigam cerca de 3,8 milhões de bois e vacas, criados de modo extensivo e vendidos para a engorda principalmente nas áreas de planalto no entorno do Pantanal. Ampliar a quantidade dos animais ali, como já se sugeriu, não é uma boa solução para conter incêndios, afirmam vários pesquisadores. “A produção mais sustentável é criar gado em pastos nativos com reduzido número de cabeças por hectare, como os pantaneiros tradicionais fazem”, diz a ecóloga Letícia Couto Garcia, da UFMS, especialista em restauração ecológica e conservação. De 1985 para cá, a área dedicada à criação de gado com pastagens exóticas aumentou 4,7 vezes e alcançou 2,3 milhões de hectares.
Adotar medidas contínuas que garantam a manutenção da paisagem e evitem o acúmulo de biomassa seca é fundamental, segundo biólogos e ecólogos, para prevenir incêndios de grandes proporções ou de elevada frequência, que podem causar estragos duradouros e consideráveis até mesmo na vegetação resiliente ao fogo. Além disso, o efeito de incêndios sobre a fauna pode ser mais devastador. “Répteis e anfíbios geralmente não conseguem escapar de incêndios de proporções muito menores que os deste ano, em que estão sendo encontrados até mamíferos mortos pelo fogo”, afirma Neiva Guedes, que também preside o Instituto Arara-Azul. “O fogo pode causar extinções locais e os animais que sobrevivem vão enfrentar um ambiente mais hostil, com disputa acirrada por alimento e abrigo”, diz. Tem sido assim até para as araras, que em alguns refúgios foram observadas consumindo alimento queimado.
Fonte: Revista FAPESP
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