Por Eduardo Geraque
A proporção de diferentes isótopos de carbono presente nas unhas pode indicar o tipo de dieta preferencial consumida nos últimos seis meses pelos brasileiros e servir de parâmetro para inferir o grau de desenvolvimento humano da cidade em que eles vivem. Isótopos são variantes de um elemento químico que têm o mesmo número de prótons, mas diferem na quantidade de nêutrons. Essa é a conclusão de um artigo publicado em julho na revista Science of Food. Os autores do trabalho analisaram a composição isotópica de amostras das unhas de 4,5 mil indivíduos de 37 cidades do país, onde vive 10% da população, e calcularam a média de um parâmetro denominado delta carbono 13 (δ13C) para cada município. Valores elevados desse índice sinalizam alto consumo de alimentos ultraprocessados, como carnes industrializadas, refrigerantes e sobremesas prontas, e baixos sugerem ingestão majoritária de alimentos in natura, sobretudo arroz, feijão e mandioca.
Em seguida, os pesquisadores compararam o δ13C de cada cidade com seu respectivo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador criado em 1990 pela Organização das Nações Unidas (ONU) que leva em conta a expectativa de vida ao nascer, o nível de educação e a renda per capita de uma população. Essa análise evidenciou uma correlação significativa: quanto maior o δ13C do município, maior seu IDH. Por meio de técnicas estatísticas, o grupo de cientistas extrapolou a correlação para quase 99% dos 5.570 municípios do país e gerou um mapa com a distribuição geográfica das dietas (ver na página ao lado). Quase 70% das amostras de unhas foram coletadas entre 2008 e 2015. Outros 23% foram obtidos entre 2002 e 2006 e o restante depois de 2015.
Para a bióloga Gabriela Nardoto, da Universidade de Brasília (UnB) e primeira autora do estudo, os dados indicam com precisão a importância da renda na composição do tipo de comida que chega à mesa dos brasileiros. “O status socioeconômico está muito vinculado ao acesso a alimentos ultraprocessados. No Sul e no Sudeste do Brasil, as áreas mais desenvolvidas, com IDHs mais elevados, essa tendência é evidente”, comenta Nardoto. “Nas outras regiões, que tendem a apresentar IDHs menores, não há tanto poder aquisitivo para a compra em grande quantidade desses produtos.” O Centro-Oeste exibe uma situação intermediária. Embora essa seja a grande tendência explicitada pelo mapa, a bióloga destaca que, em razão dos possíveis malefícios à saúde atribuídos à ingestão excessiva de alimentos ultraprocessados, uma parte da população de maior poder aquisitivo passou em anos mais recentes a consumir menos alimentos desse tipo.
Todas as relações identificadas no estudo estão baseadas em medições feitas com dois isótopos estáveis de carbono presentes em tecidos humanos, como as unhas: o raro e pesado carbono 13 (13C) e o leve e abundante carbono 12 (12C). De acordo com a proporção desses isótopos, é possível calcular o δ13C — expresso em valores negativos e por mil (‰) — de um indivíduo ou de uma população e inferir seu tipo de dieta. Resultados mais elevados do índice, entre -16 e -18‰, indicam a chamada dieta de supermercado, com grande quantidade de comida industrializada. Valores menores, entre -20 e -24‰, refletem o consumo predominante de alimentos in natura e peixes. “Nem sempre é possível estabelecer essa correlação de índices no âmbito municipal, porque poucos países calculam o IDH de cada cidade”, afirma o engenheiro-agrônomo Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP), coordenador do estudo. “Com o banco de dados usado para gerar o mapa, temos agora uma aplicação importante, que pode ter utilidade para fazer análises regionais na área de nutrição e acompanhar mudanças na alimentação da população.”
Ferramenta forense
As tendências apresentadas no estudo batem com resultados de levantamentos recentes sobre a questão alimentar no Brasil, como os da mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada entre 2017 e 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a POF, produtos in natura ou minimamente processados representam, respectivamente, 58,2% das calorias totais consumidas pelos habitantes do Norte e do Nordeste. No Sul, esse valor cai para 47,3%. No Sudeste, é menor, 44,9%. O Centro-Oeste está numa posição intermediária e metade das calorias (50,7%) vem desse grupo de alimentos.
Ainda de acordo com a pesquisa, a ingestão de ultraprocessados é maior no Sudeste e no Sul, onde representam 21,4% e 22,0% do total de calorias, respectivamente. A FOP também mediu o consumo de alimentos meramente processados (pães, queijos, carnes salgadas e bebidas fermentadas) e ingredientes culinários (óleo vegetal, açúcar, fécula, gordura animal). Somadas, essas duas categorias intermediárias representaram entre 28% e 35% das calorias consumidas nas grandes regiões brasileiras. “Apesar de ser um levantamento feito de forma muito diferente da metodologia empregada no artigo da Science of Food, a POF também mostra que a participação dos alimentos in natura cai conforme aumenta a renda e, consequentemente, o consumo de comida ultraprocessada sobe à medida que aumenta o poder aquisitivo”, comenta o nutricionista Daniel Bandoni, do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Segundo Nardoto, o banco de dados usado para gerar o mapa com perfil da dieta predominante nos municípios brasileiros pode ser útil em estudos de outras áreas, como a forense. “Com a técnica de análise de isótopos de carbono, podemos refinar a questão da origem geográfica de um esqueleto sem identificação”, exemplifica Nardoto. “O método não vai identificar sozinho de onde vem um cadáver desconhecido, mas pode restringir um pouco a sua área de origem e auxiliar nesse trabalho.” Nesse caso, o δ13C de um indivíduo funciona como uma espécie de impressão digital isotópica associada a uma região.
Confira o Artigo científico:
NARDOTO, G. B. et al. Increased in carbon isotope ratios of Brazilian fingernails are correlated with increased in socioeconomic status. Science of Food. 16 jul. 2020.
Fonte: FAPESP
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