Baseados em ativos da floresta, pequenos negócios unem biodiversidade, tecnologia e sustentabilidade para aumentar o valor dos produtos e beneficiar as populações locais
Texto: Cleide Silva e Giovana Girardi para O Estado de São Paulo.
O universo de startups que está nascendo na Amazônia com foco em atividades sustentáveis pode ser exemplo para fomentar a bioeconomia que governos, grupos empresariais, investidores e ambientalistas buscam para desenvolver a região e gerar renda para a população sem derrubar ou queimar a floresta.
Baseados em produtos e projetos locais, que vão de açaí a cosméticos, pequenos negócios inovadores começam a transformar o cenário regional. A economia verde, ou de baixo carbono, deve ajudar a região amazônica – que representa cerca de 60% do território brasileiro – a dar um salto em sua participação no Produto Interno Bruto (PIB), hoje de apenas 8%, segundo avaliação de especialistas no tema.
O caminho trilhado por um número crescente de startups amazônicas para essa nova economia envolve comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas e agricultores familiares. A lógica está em aplicar ciência e tecnologia a dezenas de ativos da região desde o início da cadeia de produção para aumentar o valor dos produtos e beneficiar as populações locais.
Fabricante de cosméticos feitos com óleos extraídos de plantas da região, a startup Biozer se prepara para exportar seus produtos para os Estados Unidos, Emirados Árabes e Europa. Já o Café Agroflorestal de Apuí utiliza grãos de plantações em áreas sombreadas pela floresta e será enviado para a Alemanha.
Os chocolates da DeMendes são feitos com cacau nativo colhido por ribeirinhos e índios e chegam a consumidores de vários Estados e também do exterior. Dono da maior biodiversidade vegetal do mundo, o Brasil possui cerca de 50 mil espécies de plantas, das quais pelo menos 20 mil endêmicas – que ocorrem somente no País.
Embora todos os biomas nacionais tenham capacidade de desenvolver uma economia baseada na biodiversidade, é a região da Amazônia que oferece as condições para investimentos imediatos. Estudo feito pelo WRI Brasil, lançado na semana passada com base em dados do censo agropecuário do IBGE, mostra que 74% das atividades extrativistas não exaustivas (a partir de sementes, folhas, frutos, óleos, sem levar à derrubada da árvore) estão na Amazônia.
Idealizador do projeto Amazônia 4.0, o pesquisador Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, define que, para a região, o conceito de bioeconomia visa a promover sistemas de produção baseados no uso e na conservação dos recursos biológicos da floresta em pé. Ele compara que as atividades extrativistas realizadas na região, apesar de ainda em pequena escala, já são mais lucrativas do que desmatar.
O valor anual da produção de carne e soja, por exemplo, é de R$ 604 por hectare; no caso do açaí, cacau e castanha, esse montante chega a R$ 12,3 mil.
Especialista do WRI no tema, o economista e biólogo Rafael Feltran-Barbieri vai na mesma linha e calcula que o extrativismo não exaustivo é particularmente rentável para os pequenos proprietários.
“Para as pequenas propriedades, os produtos nativos cultivados trazem renda média de R$ 3.100 por hectare ao ano. Quem faz rotação de soja e milho tira cerca de R$ 1.762/ha/ano. Já a pecuária de corte rende apenas R$
1.250/ha/ano”, afirma.
“Mas a exploração de produtos in natura é só a ponta do iceberg para a bioeconomia. Há uma grande diversidade de substâncias que podem ser produzidas em escala”, diz.
Na avaliação de Carlos Nobre, para isso vingar como uma alternativa econômica, é preciso investir em uma bioindustrialização local, que possa beneficiar os produtos, gerando mais renda e empregos.
“A indústria 4.0 no mundo moderno tem, logicamente, um caminho que é o da bioindústria fazendo um produto que chega ao consumidor”, explica. “Mas esse não é o maior mercado possível, mas sim o chamado ‘business to business’, em que os produtos de uma indústria fluem para outra maior, mais próxima dos centros consumidores ou de centros exportadores, que faz o produto final. Esse potencial tem de ser desenvolvido, porque ele é bem grande.”
Para o economista José Roberto Mendonça de Barros, há aí uma enorme oportunidade. “Com pesquisa, que foi justamente o que transformou o agronegócio brasileiro, é sim possível desenvolver esses projetos e ganhar escala”, afirma. O caminho, segundo ele, passa pela transformação de matérias-primas em novos materiais e pelo pagamento por serviços ambientais, como dar a proprietários de terra uma renda para preservar uma nascente.
Mendonça de Barros ressalta que a pandemia acentuou a tendência de que a sustentabilidade é indispensável. “Ganha força a ideia de que é possível transformar partes do sistema de produção em direção à sustentabilidade. E isso vai entrar na experiência das grandes empresas.”
“É a primeira vez que a gente vive uma pressão tangível de quem aloca o capital para que o País faça a transição para práticas mais sustentáveis”, diz Ricardo Zibas, sóciodiretor da KPMG, que viu crescer neste ano em 20% a procura de empresas por consultoria sobre iniciativas em relação à pauta ESG, sigla em inglês para os aspectos ambiental, social e de governança.
Ricardo Abramovay, professor do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, lembra que nos Estados Unidos, a bioeconomia hoje já corresponde a 5% do PIB do país, de acordo com um estudo das Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina dos EUA. Mas diz que esse modelo é muito baseado na aplicação de ciência e tecnologia para desenvolver recursos biológicos voltados à produção de energia, fibra e alimentos.
“Com pesquisa, que foi justamente o que transformou o agronegócio brasileiro, é sim possível desenvolver esses projetos e ganhar escala.”José Roberto Mendonça de Barros, economista.
“Essa bioeconomia contemporânea não é a biodiversidade florestal. Aqui temos muito a ganhar se concentrarmos os esforços de inovação para fazer emergir uma economia da biodiversidade florestal, que respeite o conhecimento dos povos tradicionais, mas não se limite só a ele”, afirma.
Ele pontua que esse movimento também tem de levar em conta as dificuldades, principalmente de infraestrutura, que ainda marcam a Amazônia, como o acesso à energia.
“Há um certo pensamento em torno da bioeconomia de que basta juntar os recursos da floresta com investimento tecnológico. Tem de fazer com que seja uma resposta para os problemas das populações da região que são muito elementares, como dificuldade de deslocamento, falta de saneamento”, complementa.
E para isso, diz, há que se investir em ciência e tecnologia locais. Ainda não há dados precisos sobre o número de startups da floresta, mas, em duas
chamadas feitas nos últimos dois anos pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) para programas de aceleração de negócios de impacto promovido pela Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) foram inscritos 280 projetos.
O instituto captou R$ 6 milhões no período e escolheu 30 empreendedores para participar de cursos de capacitação, monitorias e oficinas sobre como conciliar o desenvolvimento econômico e a conservação da Amazônia. Desse grupo, 12 receberam investimentos híbridos, parte obtido no mercado e parte do capital filantrópico do Idesam, que tem entre seus apoiadores a Sitawi e o Fundo Vale.
“Não tem como manter a floresta de pé sem gerar renda para a população local”, afirma Mariano Cenamo, engenheiro florestal e diretor de Novos Negócios do Idesam.
O Idesam também coordena o Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) do governo federal, que tem como base a Lei de Inovação e possibilita às empresas do Polo Industrial de Manaus incentivo tributário para investimentos em pesquisa e desenvolvimento em projetos ligados à bioeconomia.
Iniciado em março do ano passado, o programa recebeu 73 inscrições e captou R$ 9,5 milhões entre sete empresas que vão fazer aportes em 14 projetos selecionados.
“Conseguir esse valor em um ano e mantê-lo mesmo com a crise do coronavírus mostra que há uma demanda reprimida e que as empresas estão olhando os investimentos sustentáveis como oportunidade de negócios”, diz Carlos Gabriel Koury, também engenheiro florestal e responsável pelo PPBio.
O programa envolve parcerias com Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) e universidades públicas e privadas.
Fonte: Idesam
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