Iniciativas de revitalização impulsionam a produção de borracha na Amazônia, prometendo dobrar a produção sustentável e resgatar a identidade cultural dos seringueiros
Matéria publicada em 11 de março originalmente, atualizada em 14 de Junho
Cerca de seis anos atrás, armados com facões, José do Carmo Alves e sua irmã, Maria das Neves Alves Basto, reencontraram o caminho entre as seringueiras na parcela da floresta amazônica que possuem, situada no município de Inhangapi, na região nordeste do estado do Pará.
Nas superfícies das árvores, puderam observar as marcas dos cortes feitos por eles mesmos há três décadas, no final dos anos 80, época em que cessaram a extração do látex devido à impossibilidade de comercializar a borracha.
Durante os anos que se seguiram, as seringueiras ficaram sem ser tocadas. A sobrevivência da família extrativista veio de outras fontes de renda provenientes da floresta, como a coleta de castanha-do-Pará e de açaí.
A situação mudou quando um comprador se apresentou, prometendo não só comprar a borracha produzida, mas também oferecer um pagamento extra pelos serviços ambientais prestados – em outras palavras, por manter a floresta preservada. Motivados por essa proposta, os irmãos retomaram a extração da borracha, que se tornou um componente vital na diversificação dos produtos sazonais da floresta, contribuindo significativamente para a renda anual da família.
“É uma ajuda muito grande na renda. Uma árvore dessas aqui é fundamental para a gente que conhece o ramo, extrai o látex e sabe trabalhar a borracha. É muito bom”, expressa José do Carmo, aos 65 anos, enquanto faz um corte no tronco de uma seringueira para coletar o látex.
Pilar da economia regional
Originária da Amazônia, a seringueira, ou Hevea brasiliensis, é reverenciada como a “mãe” da floresta devido ao látex, um líquido leitoso que flui ao se cortar seu tronco, essencial para a produção de borracha.
A prática de extração do látex não afeta a vitalidade da árvore, que se regenera naturalmente no ecossistema amazônico, abrigando exemplares que podem viver até 300 anos. Estas árvores foram fundamentais para o desenvolvimento econômico da região, especialmente durante o boom da borracha, que propiciou o crescimento de cidades como Manaus e Belém no final do século XIX e início do século XX.
Porém, já faz mais de um século que a borracha silvestre perdeu espaço para a produção em larga escala em plantações, principalmente na Ásia. A facilidade de extrair látex de árvores alinhadas em monoculturas contrasta fortemente com o desafio enfrentado na Amazônia, onde seringueiros percorrem até 10km diariamente para alcançar árvores dispersas pela floresta.
Essa competição desleal levou ao declínio da atividade dos seringueiros amazônicos, que foram submetidos a condições de exploração intensiva e até mesmo a formas de semi-escravidão por endividamento, fazendo com que muitos abandonassem os seringais.
Recentemente, contudo, novas parcerias entre o setor privado e associações de extrativistas estão revitalizando a produção de borracha nativa, agora valorizada como um produto sustentável capaz de proporcionar renda para as comunidades locais e de incentivar a preservação da floresta.
Nesse contexto renovado, empresas estão dispostas a pagar mais pela borracha da Amazônia, reconhecendo-a como um meio de sustento que desencoraja o desmatamento, incentivando seringueiros como a família Alves a retomar suas atividades tradicionais.
José do Carmo herdou o ofício de extrair látex de sua mãe, que, por sua vez, aprendeu com seu pai, um dos muitos cearenses que migraram para o Pará em busca de trabalho nos seringais.
A decisão da família, composta por 11 irmãos, de manter a floresta nativa preservada em suas terras destaca-se como uma rara exceção em uma região predominantemente marcada pelo desmatamento para dar lugar à pecuária. O estado do Pará, anfitrião da futura Conferência do Clima da ONU em 2025, lidera, de forma expressiva, os índices de desmatamento na Amazônia.
“Eu comecei pequeno. Estou no ramo desde que me entendo por gente. Mas em 1988 o (então-presidente José) Sarney tirou de nós a seringa, e aí eu parei”, José do Carmo relembra a interrupção dos incentivos governamentais da época. “Depois de uns 20 ou 30 anos, o senhor Francisco veio para cá e me achou. E aí continuei com ele.”
José do Carmo menciona Francisco Samonek, um paranaense que se estabeleceu na Amazônia há quatro décadas.
Iniciativas de Francisco Samonek
Durante esse tempo, Samonek fundou três iniciativas em Castanhal voltadas para a valorização da borracha nativa: uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) dedicada ao desenvolvimento tecnológico, à educação e ao aprimoramento das técnicas de extração dos seringueiros; uma cooperativa responsável pela gestão da produção; e a marca Seringô, que cria calçados sustentáveis e promove oficinas para ensinar as famílias a produzirem itens de decoração e biojoias com a borracha. Atualmente, 1.500 famílias, incluindo os irmãos Alves, comercializam borracha e artesanato com a Seringô, com planos de expandir essa rede até o final do ano.
“O seringueiro é o melhor guarda florestal que nós temos”, afirma Francisco Samonek, destacando a importância de uma remuneração justa pela borracha artesanal como incentivo para a conservação da floresta. “Se ele receber um preço justo pela produção de borracha artesanal, ele vai ficar ali cuidando da floresta. Se ao menos o mundo pudesse enxergar isso com clareza.”
Para manterem-se saudáveis e produtivas, as seringueiras precisam estar imersas na floresta. Estima-se que, para cada estrada de seringais, que pode abranger até 200 árvores, cerca de 100 hectares de floresta devem ser preservados ao redor, o que corresponde a aproximadamente 100 campos de futebol.
“Nosso papel é fazer com que o trabalho dos seringueiros seja gratificante e gere renda suficiente para que as comunidades permaneçam na floresta”, explica Zélia Damasceno, esposa e parceira de Samonek na Seringô. “E que pensem que, a cada árvore que eles derrubarem, menos renda vão ter aqui. Hoje, eles fazem esse cálculo.”
Expansão e sustentabilidade
A Seringô, atualmente, adquire cinco toneladas de borracha nativa mensalmente, com planos de aumentar esse volume em quatro vezes até o final do ano. Além de oferecer um valor base pelo quilo da borracha bruta, aproximadamente R$ 2, a empresa compensa os seringueiros com um valor cinco vezes superior como reconhecimento pelos serviços ambientais prestados.
Este modelo de compensação financeira visa recompensar as comunidades por contribuições ambientais que beneficiam a coletividade, sob a condição de que as práticas predatórias sejam evitadas nas áreas de extração.
Adicionalmente, os produtores são beneficiados por um complemento financeiro do governo federal, através da Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), garantindo um preço mínimo de R$ 7,18 por quilo de borracha. Com isso, o total recebido pelos seringueiros pode chegar a quase R$ 18 por quilo do produto.
Um novo paradigma no mercado de borracha
A Seringô integra um seleto grupo de empresas que valorizam a borracha nativa, pagando até cinco vezes mais em relação ao preço de mercado da borracha cultivada, seja nas regiões de plantio no Brasil, predominantemente no Sudeste, ou nos países do sul da Ásia.
O diferencial está na aposta de que os consumidores estão dispostos a investir mais em produtos que são provenientes de matérias-primas sustentáveis e que promovem benefícios ambientais e sociais ao longo de sua cadeia de produção.
Atualmente, a Vert/Veja, uma marca francesa de calçados, lidera a compra de borracha nativa da Amazônia, seguida pela gigante dos pneus, Michelin. A Mercur, por sua vez, iniciou há dez anos um programa para valorizar a borracha nativa, adquirindo o material de comunidades indígenas e seringueiros em Altamira, no Pará, para a fabricação de borrachas de apagar e elásticos.
“É um caminho sem volta”, declara Luciana Batista Pereira, diretora de cadeias produtivas da Vert/Veja, que anualmente adquire 700 toneladas de borracha nativa de aproximadamente 2.500 famílias organizadas em cooperativas espalhadas pelo Acre, Amazonas, Rondônia, Pará e Mato Grosso.
Os pagamentos adicionais realizados pela empresa estão vinculados à preservação da floresta, com as áreas de extração sendo monitoradas via satélite por uma plataforma online, que permite à empresa verificar possíveis danos ambientais.
“Grande parte das famílias com quem trabalhamos tinha abandonado a extração de borracha por décadas. Agora, estamos presenciando um renascimento dessa atividade e da identidade dessas comunidades, porém, dentro de um modelo renovado”, explica Pereira.
Ela enfatiza que, ao contrário do passado, essas famílias não dependem mais de intermediários, recebem pagamento justo pelo seu trabalho e veem sua atividade valorizada. Esse processo de valorização tem empoderado as comunidades, que agora buscam uma participação ativa nas decisões, rejeitando projetos impostos de cima para baixo e buscando um lugar à mesa de negociações.
A era dourada e os desafios da borracha na Amazônia
Durante o auge do ciclo da borracha, entre as décadas de 1880 e 1910, a borracha extraída da Amazônia ascendeu ao posto de segundo produto mais importante da economia brasileira, superado apenas pelo café. Nesse período, a região amazônica era a principal fornecedora mundial desse recurso, impulsionando significativamente o desenvolvimento de cidades como Manaus e Belém, enquanto enriquecia os barões da borracha à custa da exploração intensiva das populações locais.
A hegemonia da borracha amazônica foi abalada quando milhares de sementes de seringueira foram contrabandeadas para o Reino Unido, que conseguiu cultivá-las com sucesso em colônias na Ásia, marcando o início do declínio do ciclo da borracha na Amazônia.
Um ressurgimento temporário ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando o acesso à borracha asiática foi cortado, e os Estados Unidos, através de um acordo com o Brasil, recrutaram cerca de 60 mil “soldados da borracha”, principalmente do Nordeste, para extrair borracha na Amazônia e atender às demandas dos Aliados. Com o término do conflito, os incentivos cessaram, deixando os seringueiros em situação precária.
Incentivos militares e a luta dos Seringueiros
A ditadura militar no Brasil tentou revitalizar a produção de borracha com o Programa de Incentivo à Produção de Borracha Natural (Probor), visando a autossuficiência nacional no setor. No entanto, os benefícios eram direcionados aos proprietários dos seringais, e não aos trabalhadores, perpetuando um ciclo de exploração e endividamento.
Dione Torquato, secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (anteriormente Conselho Nacional dos Seringueiros, mantendo a sigla CNS), relembra a dura realidade dos seringueiros: “Ser seringueiro era viver para trabalhar para o patrão”. A falta de educação formal e o sistema de dívidas mantinham os trabalhadores presos aos seringais sob condições injustas.
Avanços e desafios contemporâneos
Apesar dos desafios históricos, progressos foram feitos com a criação de reservas extrativistas e a organização dos trabalhadores, em grande parte simbolizada pela luta de Chico Mendes, assassinado em 1988. Essas ações marcaram passos importantes na superação das adversidades enfrentadas pelos seringueiros.
Torquato destaca a importância histórica da borracha para o desenvolvimento regional e nacional, mas lamenta o enfraquecimento da atividade e a negligência sofrida pelas comunidades extrativistas ao longo dos anos: “Não temos dúvida da importância que esse produto teve para o desenvolvimento da região e do país. Porém, ao longo dos anos, a atividade foi enfraquecendo e sofrendo com a falta de incentivo e de políticas públicas. Essas comunidades ficaram à mercê, esquecidas e invisibilizadas debaixo das camadas de floresta.”
Impulsionando a produção sustentável
De acordo com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), o Brasil tem uma produção anual de 259 mil toneladas de borracha, com a maior parte dessa produção concentrada no Sudeste do país. Em contraste, a contribuição da Amazônia para este total foi de apenas 840 toneladas de borracha nativa em 2022, representando meros 0,3% da produção nacional.
No entanto, para 2024, as expectativas são ambiciosas, visando pelo menos dobrar essa produção. Um compromisso foi firmado no ano passado por um conjunto de empresas, que se propuseram a adquirir no mínimo 1.700 toneladas de borracha nativa ao longo do ano, resultado de uma reunião multisetorial em Rondônia que reuniu cooperativas de seringueiros, empresas, ONGs, movimentos sociais e representantes governamentais. Este encontro foi uma iniciativa do Imaflora em colaboração com a WWF-Brasil.
Luiz Brasi, gerente da Rede Origens Brasil, uma iniciativa do Imaflora que conecta comunidades tradicionais, extrativistas, ONGs e empresas em prol de um comércio ético e com garantia de origem, enfatizou a importância de reestruturar a cadeia produtiva da borracha. “Nosso objetivo foi reunir todos os atores relevantes para desenhar uma estratégia futura para a cadeia da borracha, buscando transformá-la novamente em um motor econômico, mas sob uma nova perspectiva”, explicou Brasi.
Este novo modelo enfatiza o respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais, aos ciclos naturais de produção da floresta e à transparência nas negociações.
Brasi vê essa colaboração como fundamental para o desenvolvimento de uma economia que harmonize produção e conservação. “Estamos diante de uma oportunidade única de aumentar a renda e melhorar a qualidade de vida das comunidades amazônicas, mantendo a floresta em pé”, afirmou.
Com a vasta distribuição de seringueiras pela Amazônia, existe um potencial significativo para ampliar a produção de borracha nativa. O desafio, segundo Brasi, é atrair mais empresas, especialmente do setor pneumático, que é o maior consumidor de borracha no mundo, para absorver esse aumento de produção.
A questão dos preços mais elevados da borracha amazônica surge como um obstáculo. Para superar isso, Brasi ressalta a importância de políticas públicas que incentivem as empresas a incorporar ingredientes da sociobiodiversidade em seus produtos. “É crucial que o governo ofereça incentivos para as empresas que se comprometam a utilizar um percentual de ingredientes sustentáveis em suas linhas de produção”, destacou, apontando para a necessidade de um esforço conjunto entre setor privado e público para promover a sustentabilidade na cadeia produtiva da borracha.
Revitalização da Borracha
A crescente preocupação global com as mudanças climáticas e os apelos urgentes para combater o desmatamento da Amazônia estão impulsionando a valorização da borracha nativa da região. Este cenário favorece a bioeconomia, um modelo econômico que valoriza a exploração ética e sustentável dos recursos naturais, mantendo a floresta em pé. Na Amazônia, esse conceito se expande para a sociobioeconomia, que integra a inclusão social, a geração de renda local e a valorização dos conhecimentos tradicionais.
Dione Torquato, do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), vê nesse modelo uma oportunidade significativa para impulsionar o desenvolvimento local e combater a pobreza endêmica na região. No entanto, para que esse potencial seja plenamente realizado, é crucial superar os desafios que perpetuam a pobreza, apesar das riquezas naturais da floresta. Entre esses desafios, destacam-se as dificuldades de acesso ao mercado, a falta de capacitação e assistência técnica, a escassez de equipamentos básicos e a necessidade de capital de giro.
O estado do Amazonas exemplifica tanto os obstáculos quanto os esforços recentes para superá-los. A produção de borracha, que havia decaído drasticamente em 2018, serviu de catalisador para uma série de pesquisas realizadas pelo CNS em parceria com a WWF-Brasil e a Michelin, visando compreender as razões da queda na produção e identificar políticas públicas e ações para revitalizá-la. Essas iniciativas incluíram ajustes logísticos e programas de fortalecimento para as associações de seringueiros.
Um dos principais problemas identificados foi o baixo preço da borracha, que não compensava o esforço e a logística envolvidos na sua produção, levando a uma quase paralisação da cadeia produtiva. Uma negociação com a Michelin resultou em um acordo para que a empresa pagasse um preço premium pela borracha extrativista, incluindo valores adicionais para remunerar a qualidade, o comércio justo e os serviços ambientais, além de uma contribuição para a associação de produtores.
Graças a esse acordo, os seringueiros, que em 2016 recebiam R$ 2,50 por quilo de borracha bruta, passaram a receber R$ 12, com um adicional de R$ 5 em subsídios estaduais e municipais. Esse novo arranjo foi implementado em cinco municípios do Amazonas, resultando em um aumento significativo da produção: de uma quantidade ínfima para 65 toneladas em 2022 e 118 toneladas em 2023. Torquato celebra esses avanços, destacando o vasto potencial da Amazônia para a produção sustentável, que apenas aguarda os incentivos adequados para ser plenamente aproveitado.
Como descendente de seringueiros, Torquato almeja que a mobilização atual não apenas resgate a identidade de famílias como a sua, mas também redima a memória de seus antepassados. Ele reflete sobre o passado, quando os seringueiros eram estigmatizados como analfabetos incapazes de contribuir para o progresso, e enfatiza a importância de reconhecer e preservar a riqueza cultural e histórica que a profissão representa para a região.
“Estamos trabalhando para mostrar que ser seringueiro não é atraso. É uma riqueza da nossa identidade. Temos que preservar os territórios que nossos antepassados lutaram tanto para conquistar.”
Com informações da matéria original publicada pela BBC
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