“Pode-se afirmar que a conjunção das políticas de desenvolvimento regional e as políticas sociais compensatórias previstas na Constituição de 1988 ou politicamente definidas após a redemocratização do País, contribuíram para que não se configurasse um apartheid socioespacial no início do século 21, a partir de programas de integração nacional. Regiões pobres cresceram mais rápido do que regiões ricas e famílias mais pobres se beneficiaram das políticas sociais do Bolsa Família, Lei Orgânica de Assistência Social, da Previdência Social, entre outras nos três níveis de governo. Contudo, o apartheid socioespacial continua latente na sociedade brasileira.“
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade
Trecho do livro Três Ensaios Sobre a Economia Brasileira de Paulo Roberto Haddad
OS REGIMES DE DESIGUALDADES SOCIAIS E REGIONAIS
Em 1959, o Presidente Juscelino Kubitschek embarcou para o Nordeste acompanhado do economista paraibano Celso Furtado, que iria se destacar como um dos maiores economistas do País após a II Grande Guerra. O objetivo central da viagem era conhecer in loco o dramático quadro socioeconômico e socioambiental da Região durante a longa seca que se espraiava em todas as Unidades da Federação no Nordeste. Desemprego, fome e desigualdades de renda e de riqueza marcavam as veias abertas da Região. Além do mais, nas regiões desenvolvidas ia se enraizando algum tipo de preconceito ou de discriminação em relação às condições socioeconômicas e sociais daspessoas que habitavam as áreas mais pobres, às quais se atribuía certo conformismo ou apatia face às desigualdades, dentro do que se denomina de “responsabilizar alguém pela sua própria situação” (blaming the victim).
Tendo profundo conhecimento sobre como os italianos estavam lidando com a questão dos desequilíbrios entre o Norte desenvolvido e o Sul subdesenvolvido, Celso Furtado propôs que o Presidente organizasse uma instituição para a promoção do desenvolvimento regional à semelhança da Cassa per il Mezzogiornona Itália, o que acabou se configurando sob a forma de uma Superintendência. Propôs que a Superintendência fosse a gestora de um sistema de incentivos fiscais e financeiros visando a atrair para o Nordeste projetos de investimentos diretamente produtivos de diferentes setores*. Nascia, assim, a primeira política pública de desenvolvimento regional no Brasil, a qual seria replicada para as outras Macrorregiões.
O que motivou o Presidente JK a criar as políticas de desenvolvimento regional não foi apenas o quadro de pobreza e de assimetrias sociais que pôde observar viajando até o Nordeste. O Presidente estava consciente de que a implementação das Metas do seu Plano Quinquenal tinha provocado uma Grande Transformação na economia brasileira: o País iniciava a década de 1960como a economia mais industrializada, mais dinâmica e mais diversificada estruturalmente do Terceiro Mundo.
Além desse grande feito histórico, o Presidente JK realizou também a meta-síntese da construção de Brasília visando à interiorização do desenvolvimento do País. Mas, o Presidente era igualmente consciente de que a construção dessa nova economia brasileira havia deixado em seu rastro muitas mazelas econômicas e sociais. Uma delas foi a localização espacialmente concentrada da nova industrialização no Eixo Rio-São Paulo, onde à época se situava a infraestrutura econômica mais adequada para acomodar as indústrias nascentes: mais de 70 por cento dos novos empregos industriais se localizaram no Eixo Rio-São Paulo, tornando oBrasil o país com o maior índice de desigualdade espacial de desenvolvimento entre os países de maior dimensão no Mundo, no início de 1970. A população nordestina respondeu ao novo campo de oportunidades com intenso espírito empreendedor e a Região passou a crescer acima da média brasileira durante muitos anos.
Posteriormente, nos anos 1970, os mega superávits primários do Governo Federal, gerados a partir da Reforma Tributária Campos-Bulhões, facilitaram o financiamento do desenvolvimento das áreas periféricas com projetos de investimentos públicos e privados programados pelo II PND e coordenados pelo Ministro do Planejamento, o economista piauiense João Paulo dos Reis Veloso, dentro do objetivo da integração nacional.
Como alguns Estados, particularmente Minas Gerais – que havia perdido cerca de 14 por cento de sua população total pelas migrações internas em busca de oportunidades de emprego, durante a década dos anos 1960 – também desenvolveram novas instituições, novos instrumentos e mecanismos para a atração de projetos de investimentos privados. O resultado finalístico é o de que ocorreu um processo de despolarização, com as regiões e os Estados menos desenvolvidos crescendo mais rapidamente do que as regiões e os Estados mais desenvolvidos. Minas Gerais, por exemplo, conseguiu atrair cerca de 510 novos projetos de investimento entre 1968 a 1975, assumindo o segundo lugar na economia nacional.
Pode-se afirmar, pois, que o Brasil iniciou o século 21 com a questão dos desequilíbrios regionais de desenvolvimento relativamente bem equacionada graças às políticas, aos programas e aos projetos concebidos e implementados pelos três níveis de Governo dentro de um estilo de planejamento indicativo. Uma questão que, bem confrontada pelas políticas públicas, contribuiu para o processo de consolidação da democracia no Brasil, pois como afirma uma das lições do Budismo: “Não há nada mais democrático que o sol, pois ilumina igualmente todas as regiões”. Contribuiu, também, para reduzir sensivelmente os preconceitos e as discriminações sociais no espaço nacional através do aprofundamento do processo de integração nacional.
ASSIMETRIAS SOCIAIS
Em 1970, um grupo de pessoas chega na varanda do 2º andar do Palácio dos Bandeirantes no Morumbi, em São Paulo. Uma delas mira o horizonte e observa uma paisagem relativamente preservada da Mata Atlântica, salpicada de pequenos barracos e comenta que essa paisagem parecia ser a de um presépio. Ocorre, porém, que “esse presépio” iria se transformar na Favela Paraisópolis, onde atualmente residem mais de 100 mil habitantes, através da dinâmica da reprodução da pobreza. Foi formada inicialmente pela ocupação de um loteamento por migrantes nordestinos, o qual era destinado à construção de residências para grupos e famílias de alta renda.
Atualmente, há, no Brasil, segundo os dados preliminares do Censo de 2022, mais de 16 milhões de pessoas morando em favelas, sendo que a maior delas é a Favela Sol Nascente em Brasília, com 87.184 habitantes. A formação de uma favela pelos migrantes de áreas mais pobres em busca de alternativas de emprego, renda e serviços públicos é uma evidência de como um problema regional pode se transformar numa questão social; são duas faces do mesmo problema, a pobreza no Brasil.
O Ranking das maiores favelas do Brasil pela prévia do Censo de 2022 inclui: Rio das Pedras (Rio de Janeiro), Beiru/Tancredo Neves (Salvador), Heliópolis (São Paulo), Paraisópolis (São Paulo), Pernambués (Salvador), Coroadinho (São Luiz), Cidade de Deus/Alfredo Nascimento (Manaus) e Comunidade São Lucas (Manaus). Destaca-se, pois, que, nas grandes cidades, há geralmente uma dualidade espacial fundamental; uma cidade das classes média e alta e uma cidade dos pobres e miseráveis;numa o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) se assemelha ao da Suíça, e, na outra, ao dos países pobres da África.
Tanto no Primeiro Ciclo de Expansão da Economia Brasileira (anos1950 do Plano de Metas do Presidente JK), quanto no Segundo Ciclo de Expansão da Economia Brasileira (anos do “milagre econômico” dos anos 1970), ocorreu uma aceleração do crescimento econômico do PIB e da Renda Nacional, mas não um processo de desenvolvimento sustentável. Uma sociedade se encontra em um processo de desenvolvimento sustentável quando a sua economia está crescendo de forma sustentada e competitiva globalmente, com equidade social e espacial e com sustentabilidade ambiental.
Como a questão da conservação, da preservação e da recuperação dos ecossistemas não se colocava como um objetivo prioritário de desenvolvimento nos dois Ciclos de Expansão, há que registrar a intensa concentração de renda e de riqueza durante os anos 1970, a qual persiste e se reproduz até os dias de hoje. Julia Lynch*, cientista política da Universidade da Pennsylvania, defende a tese de que não se deve analisar a métrica das desigualdades sociais considerando apenas um indicador como, por exemplo, a renda real domiciliar per capita. Propõe que se trabalhe com o conceito de regimes de desigualdade.
Ao estudar as relações da Economia Política da saúde e da riqueza em três países (Inglaterra, França e Finlândia), Julia Lynch sugere que deveríamos pensar em termos de regimes de desigualdades em lugar apenas da política da desigualdade econômica (o nível e a taxa de crescimento do PIB per capita ou da renda domiciliar per capita, por exemplo) ou apenas da desigualdade de saúde, separadamente. O contexto histórico no qual as desigualdades sociais existem é importante para compreender a política da desigualdade. Os regimes são um tipo particular de contexto. Como são constituídos por partes interrelacionadas (configurações de poder, ideias , instituições e práticas), os regimes tendem a ser relativamente estáveis e formatar a desigualdade dentro de características resilientes ao longo do tempo. Exemplo prático: no Governo A de um país, ampliaram-seas políticas sociais compensatórias, as quais podem perder intensidade no outro Governo B que o sucede. A métrica tradicional pode afirmar que houve redução das desigualdades no Governo A e reconcentração no Governo B; mas em ambos os casos o regime de desigualdades permanece invariante.
Outro exemplo*: de 2010 a 2020, todos os 9 Estados da Amazônia tiveram uma redução do percentual da população em situação de extrema pobreza graças às políticas sociais compensatórias, tendo como referência a renda mensal per capita, a qual inclui as transferências fiscais do Governo Federal. Ao mesmo tempo, as estatísticas de saneamento básico divulgadas preliminarmente pelo Censo de 2022 mostram que as Regiões mais pobres do País apresentam os piores indicadores e que as restrições de acesso são maiores entre jovens, pretos, pardos e indígenas. O Norte é a região com menor percentual da população com acesso a uma estrutura adequada de saneamento (46,4%), quando comparado com o percentual do Sudeste (90,7%).
Ou seja, quando tomamos um indicador isolado, o contexto das desigualdades sociais no País e em suas regiões pode estar aumentando (a qualidade da educação, por exemplo) ou diminuindo(o desemprego conjuntural ou cíclico por exemplo). Um desencontro que desaparece quando se examina o problema do ponto de vista dos regimes de desigualdade.
De fato, manifestações múltiplas das desigualdades se combinam para reforçar uma com as outras, assim como comas características das políticas prevalecentes. De fato, as famílias mais pobres dos Estados e Municípios, residentes em áreas economicamente deprimidas ou nas periferias das grandes cidades, sem dúvida se beneficiaram das políticas sociais compensatórias previstas na Constituição de 1988 ou politicamente negociadas, as quais são, na verdade, versões contemporâneas do gênero das políticas sociais propostas pelas “Leis dos Pobres” do Reverendo Robert Malthus, em 1790, como estratégia de subsistência para idosos, deficientes, desempregados, subempregados na economia informal*.
EXISTE UM APARTHEID SOCIOESPACIAL NO BRASIL?
A expressão Apartheid é uma expressão que significa “separação”, “o estado de ser separado”, “segregação”. É mais conhecida pelo regime de segregação racial imposto na África do Sul pelo Partido Nacional de extrema–direita durante quase cinco décadas, estendendo-se de 1948 a 1994. A expressão apartheid ficou então, de um lado, para registrar um sistema oficial de segregação racial praticado na África do Sul para proteger a minoria branca; por outro lado, um sentido geral de separação ou de segregação como por exemplo, quando o sociólogo Herbert José de Sousa(o Betinho) lançou o seu Programa Ação da Cidadania no Combate à Fome, utilizava frequentemente a expressão “Apartheid Social” para caracterizar o drama dos 30 milhões de brasileiros que passavam fome. Uma das formas de ilustrar um apartheid socioespacial é quando ocorre um enraizamento da pobreza social no espaço geográfico em territórios definidos (no Sertão e no Agreste do Nordeste ou nas favelas das grandes metrópoles, como exemplos).
François Perroux, o principal economista francês do Pós-II Grande Guerra, destacando-se, inclusive, como pioneiro na concepção da União Europeia, afirmava que o desenvolvimento é um processo seletivo e acumulativo que não aparece em todo lugar ao mesmo tempo, mas torna-se manifesto em certos pontos do espaço, com intensidade variável. De fato, no caso dos 5.565 municípios brasileiros, cerca de 1.700 se localizam em áreas economicamente deprimidas. Em Minas Gerais, dos 853 municípios, quase 180 se encontram em áreas economicamente deprimidas.
Uma área economicamente deprimida se caracteriza como um conjunto de municípios com um baixo nível de PIB per capita (inferior a 30 por cento do PIB per capita brasileiro), elevados índices de pobreza e de carência de serviços sociais básicos, insuficiência de absorção de mão de obra (elevadas taxas de desemprego aberto, de subemprego ou de desemprego disfarçado). Essas áreas se encontram, principalmente, no Sertão e no Agreste do Nordeste, nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, em quatro Microrregiões do Vale do Rio Doce, no Norte de Minas Gerais, em áreas de desmatamento antigo na Amazônia (PA e TO).
Essas áreas têm em comum o fato de que utilizaram, historicamente, a sua base de recursos naturais renováveis de forma predatória (florestas tropicais – Mata Atlântica e Amazônia) e não renováveis (ciclos do ouro e do diamante em Minas Gerais). Na perspectiva da Ecologia Integral não se pode segmentar de forma isolada e parcial os indicadores de desenvolvimento econômico social e os indicadores de sustentabilidade ambiental. A evolução da Humanidade e a evolução da Natureza são consideradas capítulos da mesma história, segundo destaca Papa Francisco na Encíclica LAUDATO SI` de 2015.
Essa realidade pode ser observada também em favelas das grandes e médias cidades, as quais a ONU Habitat define “como assentamentos informais onde se destacam a falta de direito ou certificado de posse do terreno, áreas inadequadas do ponto de vista de um conjunto de riscos, precariedade dos serviços públicos essenciais, precariedade dos materiais de construção e discordância dos códigos urbanísticos, número de moradores por cômodo”. É preciso acrescentar: renda familiar per capita dos habitantes muito baixa, indicadores de desenvolvimento humano (emprego e renda, educação, saúde) entre os mais baixosdo País, a presença nefasta de milícias que transformam em reféns a população favelada em suas atividades de emprego, de renda e de consumo.
É, portanto, no processo de ocupação do território urbano e regional que ocorre a integração dialética entre Homem e Natureza, entre grupos e classes sociais segundo os modos de acumulação, de produção e de consumo.
O que fazer? Cinco sugestões:
A.1 – retomada do crescimento através da construção do Terceiro Ciclo de Expansão da Economia Brasileira;
A.2 – a complementação das políticas de estabilização monetária com as políticas de desenvolvimento;
A.3 – a revitalização e a atualização das políticas públicas interrompidas;
A.4 – a mudança no estilo de governar;
A.5 – o resgate dos processos de planejamento de médio e de longo prazo.
O FUTURO DA ECONOMIA: EXPECTATIVAS, ESPERANÇAS E SONHOS
A.1 Durante o período de 1900 a 1980, a economia brasileira cresceu 5% ao ano, configurando uma etapa em nossa história de grande progresso econômico e social, apesar das duas Grande Guerras Mundiaiseda Crise de 1929. Depois da II Grande Guerra, ocorreram dois ciclos de expansão econômica, durante o Plano de Metas do Presidente JK (1955–1960) e os anos do “milagre econômico”, na década de 1970, quando a economia crescia, em média, mais de 7% ao ano.
Se a nossa economia tivesse mantido, de 1980 a 2023, a taxa de crescimento de 5%, os brasileiros teriam hoje o padrão de vida médio dos italianos ou dos espanhóis e o PIB teria dobrado de 14 em 14 anos. Contudo, desde 1980, o ritmo de crescimento do País se desacelerou e, no século 21, enquanto a China cresceu 345% no acumulado, o Brasil cresceu apenas 26% no acumulado, ficando entre os países de médio-baixo crescimento durante os últimos vinte anos.
O Brasil precisa voltar a crescer a uma taxa anual em torno de 5%, a taxa necessária para gerar o excedente econômico capaz de dinamizar o mercado de trabalho, melhorar a distribuição de renda, ampliar o gasto público para financiar a modernização da infraestrutura econômica e social, garantir recursos para as políticas sociais compensatórias. Ao longo dos últimos anos, diferentes setores produtivos e não produtivos vieram formulando projetos de desenvolvimento para a economia nacional. Um deles incorpora a concepção e a implementação de um novo ciclo de expansão da economia brasileira a partir da duplicação da produção de alimentos desde que sustentáveis, saudáveis e resistentes às mudanças climáticas, desenvolvidas a partir do Terceiro Salto de Inovações Schumpeterianas da Agropecuária Brasileira. Esse projeto incorpora uma logística de saída para o Pacífico para acessar competitivamente os crescentes mercados do Sudeste Asiático (China, Japão, Coréia do Sul, Vietnã).
A.2 – Desde 2014, o Brasil adotou como base para a formulação e a execução de sua política econômica, o modelo de equilíbrio fiscal expansionista, segundo o qual se o governo equilibrar as suas contas consolidadas (preferencialmente com déficit zero), haverá uma mudança nas expectativas de produtores, de consumidores e de investidores que irão impulsionar a demanda agregada do consumo e do investimento trazendo um ciclo longo de crescimento econômico de volta.
Esse modelo que se estruturou a partir da crise mundial de 2008, é filho bastardo do neoliberalismo, o qual propugna pelo mínimo de intervenção direta e indireta dos governos no funcionamento operacional e estratégico do sistema econômico, o Estado mínimo. Equilibre as contas públicas e a retomada do crescimento econômico virá por acréscimo (sic). Um argumento que levanta duas dúvidas: as implicações políticas de sua implementação e o tempo apropriado para a suaconcreta efetivação.
O déficit fiscal do Brasil é estrutural e tem uma longa história. Do lado das receitas tributárias, com a desaceleração do crescimento econômico, a expansão da base tributável também encolheu relativamente, enquanto do lado das despesas públicas ocorreu uma aceleração a partir da arquitetura dos compromissos político-institucionais assumidos pela sociedade, a partir da Constituição de 1988.
Assim, foi se configurando um descompasso entre uma avalanche de demandas de gastos públicos legitimamente delimitadas pelos grupos organizados da sociedade civil, enquanto as receitas dos Governos padeciam da desaceleração da expansão econômica do País. Qualquer esforço para equilibrar as contas públicas vai esbarrar em algum grupo social organizado, em grupos de interesses regionais e setoriais, em movimentos sociais, etc., o que certamente irá provocar conflitos e tensões levando o governo a um processo recorrente de barganha do tradicional “toma lá, dá cá”.
Por outro lado, como destacou Robert Skildesky* o tempo econômico e o tempo político não se confundem: o tempo político é mais acelerado e muitas vezes não espera acontecer reformas político-institucionais necessárias para efetuar o equilíbrio fiscal visando o controle do déficit, a demora na volta da expansão da economia pode demorar e até não vir, o que acaba caracterizando esse modelo de política econômica como uma experiência de “sadismo intelectual”.
O que se propõe é, sem perder o controle das contas públicas, equacionar com estabilidade monetária os desequilíbrios fiscais pelo lado das receitas através de um novo ciclo de expansão que poderia levar a um crescimento acelerado da base tributável do País.
Enfim, propõe-se equilibrar as contas públicas não pelo corte e pelo contingenciamento de gastos públicos essenciais, na verdade, esses gastos teriam que aumentar para eliminar as filas do SUS, para modernizar a nossa infraestrutura econômica e social, para melhorar a qualidade dos serviços públicos tradicionais – mas pela expansão acelerada das receitas tributárias através da retomada do crescimento sustentado e sustentável da nossa economia. Ao contrário do que afirmava Margareth Thatcher, há alternativas*.
A.3 – Apesar do bom desempenho dos sistemas nacional e estaduais de planejamento social e econômico no pós II Grande Guerra em termos dos três objetivos fundamentais de um sistema econômico (estabilização, distribuição e crescimento) os problemas estruturais da nossa economia persistem:
- De 2000 a 2022, o crescimento econômico foi de 2,2% ao ano o qual, reduzido pelo crescimento da população, se caracteriza como uma expansão pífia face ao imenso potencial de desenvolvimento do País;
- ainda persistem os indicadores de desigualdades socioespaciais: as taxas de pobreza com maior proporção em 2022 estão no Norte e no Nordeste; a maior proporção de pobres está nos Estados do Maranhão (57,90%), Amazonas (51,42%), Alagoas (50,36%) e Pernambuco (50,32%); as menores taxas encontram-se em Santa Catarina (10,16%), Rio Grande do Sul (13,53%) e Distrito Federal (15,70%); há uma concentração de pobres nas favelas das grandes cidades independentemente do nível de desenvolvimento local.
Esses problemas estruturais não encontram solução através apenas de políticas de estabilização macroeconômica, as quais são políticas de curto prazo, na esperança de controlar a inflação (com a distribuição de renda corroendo o poder de compra dos assalariados) e de retomar o crescimento (através da queda na taxa real de juros e da formação de expectativas favoráveis entre os diferentes agentes econômicos)
Entretanto, não se estrutura um ciclo de expansão sustentado e sustentável sem projetos de desenvolvimento no médio e no longo prazo, capazes de reduzir drasticamenteas incertezas futuras da economia. Os agentes econômicos que conhecem as experiências passadas dos ciclos econômicos e políticos, que analisam a dinâmica dos conflitos presentes para tomar decisões sobre os investimentos e sua rentabilidade nos períodos, não se deixam seduzir apenas pela conquista de uma estabilidade monetária de curto prazo. É preciso, pois, articular políticas de curto prazo com políticas de desenvolvimento de médio e de longo prazo, como ocorreu no período Campos-Bulhões com a articulação do PAEG (de estabilização) com o Plano Decenal (de desenvolvimento), o que implica na revitalização e atualização das políticas públicas, interrompidas a partir do período em que ocorreu o império do curto prazo nas ações programáticas do Governo Federal.
A.4 – Os indicadores socioeconômicos e socioambientais do Brasil, nas duas últimas décadas, mostram que necessitamos de mudanças em nossa economia, as quais não irão ocorrer apenas por medidas de ajustes incrementais. Essas transformações incluem um novo ciclo de expansão, com a economia crescendo a uma taxa de 5% ao ano durante pelo menos uma década, necessária para gerar renda e emprego para os 25 milhões de brasileiros desempregados, subempregados e desalentados, assim como para os novos entrantes nos mercados, até que se chegue a uma taxa de desemprego considerada “normal” ou “natural”em uma economia de mercado. Uma expansão que ocorra dentro de um modelo de desenvolvimento com distribuição da renda e da riqueza geradas no ciclo, assim como de políticas públicas ambientais para conservar, preservar e regenerar os nossos ecossistemas, dos Pampas à Amazônia. Ou seja, crescimento sustentado com equidade social e sustentabilidade ambiental a partir da reconstrução e do aggiornamento das políticas públicas multifacetadas.
A tradição do sistema político brasileiro, quando confrontado com profundas crises econômicas e sociais, vinha sendo a de estruturar as aspirações e as expectativas da sociedade inconformada em um processo de planejamento de médio e de longo prazo.
A partir do final da II Grande Guerra, iniciou-se no Brasil uma tradição de todos os Presidentes da República elaborarem e executarem um processo de planejamento durante o seu mandato. O primeiro foi o Plano SALTE, elaborado na administração do Presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), que tinha como objetivo estimular o desenvolvimento dos setores de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia. Um plano elaborado com a cooperação técnica norte-americana (Missão Abbink).
O Plano de Metas do Presidente Juscelino Kubistchek (1956–1960) conseguiu transformar a economia brasileira de um modelo primário-exportador na mais industrializada e moderna entre os países do Terceiro Mundo, no início dos anos 1960. E com a construção de Brasília, avançamos a interiorização do desenvolvimento. O Programa de Ação Econômica (PAEG), a partir de 1965, sob a coordenação do Ministro do Planejamento Roberto Campos, e do Ministro da Fazenda Gouveia de Bulhões, integrou uma política de estabilização monetária com um Plano Decenal de Desenvolvimento, criando as pré-condições para o ciclo de expansão dos anos 1970, sob a coordenação do Ministro Delfim Netto.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND (1975–1979), arquitetado por João Paulo dos Reis Veloso, Mário Henrique Simonsen e Severo Gomes, visava enfrentar os problemas de inflação e de crescimento advindos da crise do petróleo e da consequente crise internacional. Foi formulado e implementado no Governo Geisel, tendo promovido uma profunda transformação na matriz energética do País e também uma revolução da agropecuária, que se tornou um celeiro mundial de proteína animal e vegetal. A partir dos anos 1990, destaca-se o Plano Real do Governo Itamar Franco, sob a liderança do Ministro Fernando Henrique Cardoso.
Por que esses planos tiveram resultados que trouxeram grandes benefícios para a sociedade brasileira? Não se prenderam a nenhuma ortodoxia ideológica. Articularam, de forma inteligente, as políticas de estabilização com as políticas de desenvolvimento. Utilizaram com eficiência e eficácia os quadros de servidores públicos e as instituições da administração direta e indireta devidamente dinamizadas. Tiveram a característica de planejamento indicativo e não apenas de comando e controle centralizado.
Assim, vista do ponto de vista histórico, a política econômica do Governo Federal tem praticado a difícil arte de não crescer em uma economia prenha de potencialidades, a duvidosa política de assistencialismo social para erradicar a pobreza e a miséria, a fragilização das instituições que fazem e implementam as políticas públicas ambientais.
O resgate do processo de planejamento no Brasil deve se inspirar nos fundamentos da democracia participativa, nos modernos métodos de planejamento estratégico das empresas privadas, mas também no compromisso inequívoco com a estabilidade monetária e a responsabilidade fiscal. Por outro lado, o ajuste fiscal não pode ser implementado em uma perspectiva tão somente de equilíbrio de valores agregados, mas deve também se comprometer com o uso dos instrumentos e mecanismos fiscais e monetários, para viabilizar os objetivos de desenvolvimento sustentável.
A.5 – No início de cada administração do Governo Federal, tem sido comum que haja uma indiscutível opção, em relação às políticas públicas, a ser implementada ao longo do mandato presidencial. Será estabelecida uma política incremental de ajustes em relação aos problemas que prevalecem nas estruturas e instituições da sociedade visando tão somente à sua consolidação e aperfeiçoamento, ou, ao invés disso, deve-se optar por uma política de grandes transformações em tais estruturas e instituições, a partir de “uma visão de futuro do país que almejamos”? Exemplificando:
- ou se fazem ajustes localizados na estrutura de distribuição da renda e da riqueza nacional, através de políticas sociais compensatórias e de auxílios emergenciais, ou se busca a construção de um novo modelo de crescimento com distribuição, através de políticas públicas com inclusão social;
- ou se reduzem os desequilíbrios regionais de desenvolvimento, através de transferências de renda e de recursos financeiros, constitucionais ou politicamente negociadas, para as regiões menos desenvolvidas, ou se procura promovê-las, através de políticas de desenvolvimento regional visando à convergência das condições de vida entre os brasileiros de todas as regiões, à semelhança das políticas de ordenamento territorial da França;
- ou se trata a crise ambiental apenas com medidas de regulamentações e de fiscalização menos contundentes e mais flexíveis ou se implementam políticas públicas ambientais de conservação, de preservação e de reabilitação dos ecossistemas que sejam resilientes a governantes populistas, os quais têm uma política de “porteiras abertas” de acesso livre aos ativos e serviços ambientais nos diferentes Biomas.
Guimarães Rosa dizia que “uma coisa é pôr ideias arranjadas; outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e tantas misérias… De sorte que carece de escolher”. De fato, após o longo ciclo de progresso e de expansão do pós-II Grande Guerra, o crescimento econômico tem legado, para a nossa população no século 21, um país com uma das piores estruturas de concentração de renda e de riqueza do Mundo, um descompasso no desenvolvimento científico e tecnológico, uma inquestionável destruição do valor econômico e cultural dos seus cinco Biomas, dos Pampas à Amazônia. Novas escolhas são inadiáveis a partir da renovação das ideias. Senão continuamos a fazer mais do mesmo e pior.
Peter Drucker dizia que “o plano de longo prazo não lida com decisões futuras, mas com o futuro das decisões presentes”. Assim, é necessário que se estabeleça um processo de planejamento de longo prazo para tratar as nossas questões estruturais, articulado com um conjunto de políticas econômicas que cuidam dos problemas conjunturais. A nova administração federal não pode ter uma atitude de conformismo ou de complacência neomalthusiana diante da crise social e da crise ambiental.
Ou seja, um plano que estruture as condições para engatilhar um ciclo de expansão econômica sustentada e sustentável, visando a superar a crise social e a crise ambiental que assolam o País, e que funcione, no dizer de Roberto Campos, como lanterna de popa para direcionar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), os Orçamentos Anuais e o Plano Plurianual de Investimentos. De outra forma, prevalecerá a norma de Sêneca: “Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”.
Sem essa estrutura político-ideológica para se organizar uma administração do Governo Federal, assistiremos a uma sequência de decisões ad hoc, quando o casuísmo decisório e o oportunismo político prevalecerão sobre a racionalidade e a ciência, de maneira exclusiva para validar cada evento, um a um, normalmente no campo das racionalizações a posteriori engenhosamente construídas por assessores úteis.
Pode-se afirmar que a conjunção das políticas de desenvolvimento regional e as políticas sociais compensatórias previstas na Constituição de 1988 ou politicamente definidas após a redemocratização do País, contribuíram para que não se configurasse um apartheid socioespacial no início do século 21, a partir de programas de integração nacional. Regiões pobres cresceram mais rápido do que regiões ricas e famílias mais pobres se beneficiaram das políticas sociais do Bolsa Família, Lei Orgânica de Assistência Social, da Previdência Social, entre outras nos três níveis de governo. Contudo, o apartheid socioespacial continua latente na sociedade brasileira.
Nas primeiras décadas do século 21 ainda persistem os desequilíbrios regionais de desenvolvimento entre as Macrorregiões, entre as Unidades da Federação e intraestaduais, Exemplos: o padrão e as condições de vidado alagoano ou do maranhense são hoje três vezes inferiores aos do brasileiro que mora nas áreas desenvolvidas do Sul e do Sudeste. Persistem os regimes de desigualdades em todas as Macrorregiões do País que se configuram como áreas economicamente deprimidas ou como assentamentos informais nas grandes cidades do País. Esse contexto de assimetrias estruturais pode reavivar um novo tipo de apartheid socioespacial onde o CEP e o RG das pessoas acabam pesando nas relações pessoais e sociais.
Uma sequência quase interminável de políticas de curto prazo, como tem ocorrido no Brasil durante os últimos anos e com sucesso muito limitado para a retomada sustentada e sustentável do crescimento, pode impactar sensivelmente os problemas das desigualdades, dos desequilíbrios, do atraso tecnológico, da má qualidade dos serviços públicos tradicionais, etc., induzindo à deterioração dos seus indicadores de resultados. O atual ajuste fiscal tem contribuído com suas políticas de curto prazo para aumentar a concentração da renda e da riqueza em função das excessivas taxas reais de juros, das elevadas taxas de desemprego, de subemprego e da perda de qualidade dos serviços públicos que mais interessam aos grupos sociais de baixa renda.
Em outras palavras, sem uma articulação inteligente entre as políticas de estabilização de curto prazo com as políticas de desenvolvimento sustentável de longo prazo, dificilmente haverá uma reversão de expectativas e de confiança das instituições e dos protagonistas sociais na retomada da trajetória de crescimento econômico e do progresso social do Brasil. E a demora nessa retomada tem um elevado custo social, particularmente para os desempregados, para os subempregados e para os desalentados.
Para Keynes, o futuro é incerto. Ele pode se configurar como uma projeção adaptada do que aprendemos no passado. Mas o futuro é, antes de tudo, dominado por expectativas, esperanças e sonhos. No Brasil, não é proibido sonhar.
* Paulo R. Haddad – Três Ensaios Sobre a Economia Brasileira. e-Galáxia, 2022.
* Julia Lynch – Regimes of Inequality – The Political Economy of Health and Wealth.Cambridge University of Press, 2022.
* Paulo R. Haddad – Amazônia – Crise Social e Crise Ambiental. Ed. Caravana, 2023.
* Paulo R. Haddad – Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Narrativas para a Construção do Futuro, Ed. Caravana / e-Galáxia, 2023.
* Robert Skildesky – Money and Government – A Challenge to Mainstream Economics, Penguin, 2019
* Paulo R. Haddad – 2023 – Crônicas Sobre o Presente e o Futuro da Economia Brasileira – O Curto e o Longo Prazo: Amazon.com.br., 2024
Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior.
Comentários