Na madrugada envolta pelo aroma salgado do mar, no entorno do tradicional mercado Ver-O-Peso, em Belém, o movimento dos pescadores é intenso. Mesmo àquela hora, às 3h30, as negociações ecoam com dezenas de vendedores buscando atrair clientes para suas mercadorias. “Vendo por R$ 10 o quilo, vai querer?”, indaga um deles, apontando para o que parece ser um pechincho: o cação ou tubarão.
Entretanto, uma observação mais detalhada desses pescados revela uma prática preocupante. Diferentemente de outros peixes expostos, os tubarões têm suas cabeças e barbatanas meticulosamente removidas. “Esse aí é conhecido como filhote de tubarão”, esclarece um vendedor, entusiasmado. “Sua carne é excelente para moqueca.”
Porém, uma análise de sequenciamento genético do peixe à venda revelou uma realidade alarmante. O peixe em questão é identificado como cação-azeiteiro ou cação-mole (Carcharhinus porosus), uma espécie atualmente listada como “criticamente em perigo” pela Avaliação do Risco de Extinção da Fauna do ICMBio.
Apesar do consumo anual elevado de cação no Brasil, estimado em 17 toneladas, a maioria dos consumidores permanece inconsciente da ameaça que essa prática representa para esses animais e da ilegalidade envolvida. Economicamente falando, são os subprodutos do tubarão, especialmente suas barbatanas, que atraem a maior atenção. No mercado global, particularmente no asiático, as barbatanas podem alcançar valores astronômicos de até US$ 1.000 o quilo.
Alberto Akama, ictiólogo e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, explica: “A pesca de tubarão ocorre principalmente pelo chamado ‘bycatch’. Em outras palavras, os pescadores podem mirar em uma espécie específica e acabar capturando outras, incluindo tubarões.”
Embora a pesca incidental de tubarões seja legalmente permitida no Brasil, quando se trata de uma espécie ameaçada de extinção, a atividade é estritamente proibida. No entanto, muitas vezes, na realidade, os tubarões, uma vez capturados, não são devolvidos ao mar, como indicam as apreensões dos órgãos de fiscalização e diversos estudos.
Em uma investigação recente, a Folha coletou 11 amostras de peixes vendidos como cação ou similares no mercado Ver-O-Peso. Assustadoramente, 9 dessas amostras pertenciam a espécies listadas como “criticamente em perigo”, conforme análises laboratoriais encomendadas pela reportagem.
Com isso, o cenário atual evidencia uma necessidade urgente de aumentar a conscientização sobre essa prática de pesca e fortalecer as medidas de fiscalização, para proteger essas espécies vulneráveis e preservar a biodiversidade marinha do Brasil.
O mercado Ver-O-Peso, em Belém, ressoa com o eco da rica biodiversidade da Amazônia. Mas entre os peixes e frutos do mar oferecidos, uma realidade mais sombria se desvenda. Muitos dos tubarões vendidos ali chegam à costa já sem cabeça, uma medida tomada para evitar a identificação da espécie e consequentemente, possíveis punições. E a ausência das valiosas barbatanas indica um mercado paralelo, onde essas partes são vendidas por preços exorbitantes, especialmente na Ásia.
Essa “limpeza” praticada por algumas embarcações não é apenas preocupante, é ilegal. Uma portaria conjunta do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Pesca de 2012 estipula que os animais sejam desembarcados inteiros. O documento também proíbe expressamente o “finning”, prática que envolve a remoção e venda das nadadeiras de tubarões e raias, enquanto o restante do animal, de menor valor comercial, é descartado.
As recentes apreensões mostram que a fiscalização vem intensificando seus esforços para coibir tais práticas. Em junho deste ano, uma operação conjunta da Polícia Federal e do Ibama apreendeu em Santa Catarina mais de 28 toneladas de barbatanas de tubarão. Um mês depois, a Segup, em Pará, encontrou aproximadamente R$ 400 mil em pescado ilegal e mais de 50 kg de barbatanas avaliadas em R$ 239 mil.
Mas o desafio é grande. Com a crescente demanda, principalmente na Ásia, e os altos lucros envolvidos, muitas espécies continuam sob grave risco. O Ver-O-Peso, o coração pulsante da Amazônia, revelou recentemente a presença de tubarão-martelo e Carcharhinus leucas, ambos com diferentes graus de ameaça de extinção. Dado que as informações sobre espécies na costa brasileira são limitadas, muitos outros tubarões e raias podem estar sendo ilegalmente pescados.
Luiza Baruch, bióloga que recentemente concluiu sua dissertação de mestrado sobre o peixe-serra, comenta: “Aproximadamente 60% das espécies de tubarões e raias recifais hoje estão ameaçadas de extinção. Estamos diante de um cenário extremamente preocupante.”
Os tubarões e raias, coletivamente conhecidos como elasmobrânquios, têm ciclos de vida particulares, onde a maioria é vivípara e demora a atingir a maturidade sexual. Isso torna a pesca desenfreada ainda mais devastadora para suas populações.
Dados em destaque:
- 17 toneladas: consumo anual de carne de tubarão no Brasil.
- 28 toneladas: barbatanas apreendidas em junho de 2023.
- 50%: espécies de tubarões e raias do Norte com algum grau de ameaça.
- 9 em 11: amostras de tubarão no Ver-O-Peso eram de espécies em perigo crítico.
- 2.000: embarcações atuando no Norte, segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura.
- Ásia: principal destino das partes ilegalmente pescadas na Amazônia.
A medida em que a demanda global por barbatanas e carne de tubarão cresce, a necessidade de proteger essas espécies e coibir práticas ilegais torna-se cada vez mais urgente. A riqueza biológica da Amazônia e a sobrevivência desses animais magníficos estão em jogo.
*Com informações *FOLHA
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