“Estas são algumas reflexões que trago sobre a reforma tributária em curso na Câmara dos Deputados. Uma reforma que se aproxima mais de um consenso do desastre.”
Farid Mendonça Junior
_____________________
É preciso mudar. Sim, é preciso. A sociedade está em constante evolução, a tecnologia, o direito, o Estado, nossas vidas. Mas o mudar precisa ser para melhor e não mudar simplesmente por mudar ou mudar para dar uma satisfação a outrem.
É isso que percebo que vem ocorrendo nas propostas de reforma tributária, as PECs 45 e 110, ambas de 2019. As PECs do “main stream”, pois não se ousa discutir absolutamente nada que não for isso.
Não resta dúvidas de que nosso sistema tributário é caótico, ineficiente, desigual, estimula a sonegação e a informalidade, é pouco atraente para investidores estrangeiros.
As discussões da reforma tributária já se arrastam há quase quatro décadas. E é comum até escutar nas palestras e nos corredores de Brasília que quanto mais o tempo passa, mais próximo estamos da aprovação da reforma. E eu geralmente respondo que quanto mais o tempo passa, mais próximo estamos do fim, até porque um dia o sol vai deixar de brilhar e vai se extinguir, levando-nos a extinção daqui a bilhões de anos. Então, cada vez mais estamos mais próximo disso, assim como a reforma tributária, que pode durar mais quatro décadas ou alguns bilhões de anos.
Mas a depender do ritmo imposto pela liderança da Câmara dos Deputados, a votação se dará a toque de caixa, sem direito a muitas discussões ou apresentação de emendas e nem destaques no plenário. E talvez tudo isso seja para agradar a outrem, o tal do mercado, precisamente o mercado financeiro.
Já o “mercado” do dia a dia das pessoas, das empresas, tende a ser brutalmente afetado por esta reforma.
Até aqui, segunda a versão apresentada pelo relator Aguinaldo Ribeiro, o relatório pretende substituir cinco tributos.
ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI, por dois tributos, o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS (no lugar do ICMS e ISS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços- CBS (no lugar do IPI, PIS e COFINS) com uma alíquota menor para saúde, educação, serviços de transporte público coletivo urbano, semiurbano ou metropolitano, medicamentos, dispositivos médicos e serviços de saúde, produtos agropecuários, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura, insumos agropecuários, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal, atividades artísticas e culturais nacionais.
Alguns produtos e serviços poderão ter um tratamento específico por apresentarem peculiaridades, como é o caso de combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de saúde e compras governamentais.
O relatório prometeu manter o Simples Nacional e a Zona Franca de Manaus.
O relatório também estipula a criação de um imposto seletivo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, a exemplo de cigarros e bebidas alcoólicas.
Há também o “cashback” que é a devolução de impostos para um público determinado, como a população de baixa renda, quando da compra da cesta básica.
Em relação à transição, o relatório estipulou que a mudança da cobrança do imposto da origem para o destino se dará de 2029 a 2078. Ou seja, toda a cobrança será feita no município e no estado onde ocorre o consumo do bem ou do serviço, diferentemente de hoje, onde a cobrança ocorre no Estado produtor.
Já a transição para o modelo IVA dual ocorrerá entre 2026 a 2032. Os cinco tributos já mencionados serão substituídos gradativamente pelos novos tributos, IBS e CBS.
Ainda segundo o relatório, teremos dois fundos.
O Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, que servirá para compensar benefícios fiscais já concedidos hoje e que estão garantidos até 2032 (a famosa Lei Complementar 160 de 2017 que convalidou os benefícios fiscais concedidos de forma irregular), com um valor total de R$ 160 bilhões.
E o Fundo de Desenvolvimento Regional – FDR, que terá o objetivo de reduzir as desigualdades regionais, com um valor previsto de R$ 40 bilhões. Os Estados poderão realizar obras de infraestrutura, estimular atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, e promover o desenvolvimento científico e tecnológico da região.
O relatório cita o Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, que será criado com o objetivo de realizar a gestão compartilhada por estados, Distrito Federal e municípios, ou seja, gerir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que vai substituir o ICMS (estadual) e o ISS (municipal).
O relatório trouxe também a extensão da cobrança do IPVA para jatinhos, iates e lanchas, e a possibilidade de o imposto ser progressivo em razão do impacto ambiental do veículo.
E por último, o relatório previu a tributação progressiva sobre heranças, o
ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação). Além de permiter cobrança sobre heranças no exterior.
Bem. Vamos às críticas!
Imagina que você é convidado de repente para ir ao cinema, na modalidade “cada um paga o seu”. Você não tem tempo de se aprontar. Tem que decidir agora se quer ir porque o carro do seu amigo já vai sair. Mas você ainda consegue fazer uma pergunta a ele, “Quanto é a entrada do cinema?”, e seu amigo responde: “Cara, eu não sei bem ao certo. Parece que é 25 reais a entrada. Mas dependendo do dia pode chegar a 29 reais, eu só sei que não passa de 30 reais. Só sei que vai ser legal e muito divertido. Mas, enfim, vc quer ir ou não quer?”
Esta história acima descrita é uma comparação com a alíquota do IVA DUAL (a somatória do IBS e do CBS). Ninguém sabe ao certo quanto vai ser a alíquota. Ninguém definiu nada. O que temos até agora são chutes. Os defensores da proposta argumentam que a carga tributária será mantida, e que o brasileiro não irá pagar mais tributos além do que já paga.
Mas os mesmos defensores são incapazes de dizer quanto será a alíquota. Eles apenas dizem que é preciso testar o modelo pra saber efetivamente quanto será a alíquota e que a economia vai crescer com esta mudança. E por último ainda prometem que a alíquota não vai passar de 30%. Você embarcaria nesta história? Acho que não.
Agora vamos imaginar uma outra situação. A de que a entrada do cinema era pra ser 25 reais. Mas no dia, teve muita gente pagando meia entrada com carteirinha de estudante. Logo, estas pessoas pagaram cada R$ 12,50. Diante disso, o gerente refaz as contas e decide que o preço não será mais 25 reais a inteira. Vai ser 29 reais, para compensar a grande quantidade de estudantes que pagaram meia entrada.
Esta história acima descrita é uma comparação com os diversos segmentos que vão pagar metade e outros que terão algum tipo de isenção do tributo. Por causa disso, os outros setores vão ter que arcar com a diferença. Logo, muitos setores terão aumento da carga tributária.
Agora vamos imaginar uma situação em que você é uma pessoa independente, trabalha e tem seu sustento e faz a administração da sua vida. Daí, o seu marido resolve fazer a seguinte proposta pra você: “olha, fulana, vamos facilitar as coisas. Eu falei com teu patrão e disse pra ele que todo mês a partir de agora é pra ele depositar teu salário na minha conta, pois eu que vou administrar pra ti, e vou te repassar, fica tranquila”.
Bem, esta história retrata o Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, que vai passar a administrar o IBS dos Estados e dos Municípios. Na prática, estes entes vão perder o controle sobre suas arrecadações, e vão ficar aguardando o dinheiro ser repassado e cair nas suas contas.
Vamos a uma outra situação. Uma família tem 27 filhos. Cada um sai diariamente para conseguir seu pedaço de pão. Chegam a oferecer seus serviços abaixo do valor de mercado para garantir a comida. Os pais, preocupados com esta situação, determinam que os filhos parem de sair na rua para fazerem isso e garantem que vão fornecer o pão para todos dividirem entre si. Ocorre que, o pão servido pelos pais só é suficiente para a metade dos filhos. Ou a metade come tudo e a outra fica sem, ou eles decidem dividir o pão de forma igual e mesmo assim ainda vão ficar com fome.
Bem, a história acima retrata o fim dos incentivou fiscais (da guerra fiscal) e a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional de 40 bilhões de reais. Ou seja, um recurso que não irá conseguir substituir a equivalência dos atuais incentivos fiscais e os Estados vão ter que brigar e dividir estes 40 bilhões entre si. Tanto é assim, que muitos governadores já manifestaram sua insatisfação e estão exigindo o aumento do valor para o mínimo de 75 bilhões. Ou seja, o lençol está muito curto pra cobrir todo mundo.
Agora vamos imaginar a seguinte situação: existem 3 irmãos que moram em casas distintas e precisam ir à escola todos os dias. Eles se chamam indústria, comércio e serviços. A indústria é a que percorre o caminho mais longo, por isso vive chegando atrasada. O comércio não mora tão longe e nem tão perto. Já a casa dos serviços é a que fica mais perto da escola. Diante desta situação, os pais decidem que todos os 3 irmãos vão morar numa casa só e que portanto, vão percorrer a mesma distância à escola. A questão é que a situação da indústria vai melhorar, a do comércio vai ficar praticamente na mesma e a situação dos serviços vai piorar muito.
Bem, a história acima retrata a homogeneização de alíquotas que se quer dar de maneira geral para os setores. Neste caso, a indústria, de forma geral, será beneficiada, enquanto que a carga tributária de serviços vai aumentar muito, o que acarretará no aumento de preços neste setor e, consequentemente, em inflação e possível perda de milhões de empregos.
Por último, vamos a mais uma história. Você mora há 56 anos na mesma casa, numa fazenda. Seu modo de produção segue regras rígidas. Você ajuda bastante na preservação da natureza. Seus empregados possuem trabalho e renda. A economia gira e acaba irradiando seus efeitos positivos para as outras comunidades e trabalhadores. Um determinado dia vem o governo e diz que você não poderá mais ficar ali e que terá que se mudar, mas eles garatem que você irá sobreviver, só não te falaram como.
Bem, esta é uma história que demonstra a situação da Zona Franca de Manaus, um modelo econômico exitoso, que segue normas rígidas de produçãoe controle, responsável por mais de 500 mil empregos diretos e indiretos, garantindo trabalho e renda para a população, que ajuda efetivamente na preservação da floresta amazônica, e que possui 56 anos de história de desenvolvimento para uma região tão importante para a humanidade, ainda mais nestes tempos de aquecimento global. Enfim, o relatório disse que a Zona Franca de Manaus será mantida, mas não disse como.
Estas são algumas reflexões que trago sobre a reforma tributária em curso na Câmara dos Deputados. Uma reforma que se aproxima mais de um consenso do desastre.
Ainda bem que ainda existe o Senado Federal logo ali ao lado!
Farid Mendonça Júnior é advogado, economista e administrador
Comentários