88% das bacias hidrográficas do Cerrado já apresentaram diminuição da vazão de água. Agronegócio carrega o fardo de um dos principais responsáveis devido seu grande consumo do recurso além da frequente associação da prática do desmatamento.
Imagine que você precise cortar o consumo de água da sua casa em um terço. Não por economia, mas porque não existe mais água. É o que pode ocorrer com os animais, plantas e, claro, com a população que vive no Cerrado, de acordo com um estudo publicado em fevereiro na revista científica Sustainability. O bioma pode perder 34% de seu volume de água – o equivalente à vazão de oito rios Nilo – até 2050. A causa principal é o uso do solo pela agropecuária.
O estudo foi capitaneado pelo cientista florestal Yuri Salmona e teve apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Salmona e outros dez pesquisadores, que também assinam o texto, analisaram 81 bacias hidrográficas no Cerrado no período entre 1985 e 2022. Destas, 88% já apresentam diminuição da vazão. O estudo aponta que as mudanças climáticas são responsáveis por cerca de 44% da redução da vazão, e que as mudanças do uso do solo, devido à agropecuária, por 56%.
A monocultura utiliza muita água na irrigação de grãos como soja, milho e algodão; já a pecuária utiliza na irrigação de pastos e na própria dieta dos animais, já que um boi adulto, de cerca de 500 quilos, consome mais de 50 litros de água por dia.
“O desmatamento para agricultura em larga escala, que demanda intensa irrigação, altera o ciclo hidrológico de forma que diminua a vazão dos rios. Os principais problemas derivados das mudanças do clima são a evapotranspiração potencial e a chuva. Estamos tendo chuvas mais concentradas, em períodos mais curtos, e os períodos de seca estão sendo mais longos”, explicou Salmona. “E como as chuvas estão concentradas em períodos menores, infiltra menos água no aquífero subterrâneo.”
Caso não haja uma reeducação do uso da água e uma redução na taxa de desmatamento, a escassez hídrica afetará não só a fauna, a flora e a população que vive no Cerrado, mas a própria agricultura e a segurança segurança energética, já que o bioma abriga nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas mais importantes do país, abastecendo as usinas de Estreito, Sobradinho, Xingó, Furnas e Itaipu.
Além disso, o Cerrado tem o segundo maior reservatório subterrâneo natural de água do mundo, composto pelos aquíferos Guarani e Urucuia, fornecendo 70% da água do Rio São Francisco, que abastece o Nordeste. Ou seja: uma diminuição na vazão pode resultar, também, em desabastecimento de centenas de cidades e aumento nos conflitos agrários.
“A lei das águas do Brasil, de número 9433, de 1997, é boa, o problema é que não está sendo aplicada”, explicou a especialista em recursos hídricos Malu Ribeiro, diretora de políticas públicas na Fundação SOS Mata Atlântica. “Ela estabelece a cobrança do usuário pagador e do poluidor pagador, compensando quem preserva e sobretaxando quem desperdiça ou quem lança efluentes do agronegócio nos rios.”
Malu Ribeiro diz que é preciso haver um plano com três frentes para regular o uso da água – tanto para consumo quanto para lançamento de poluentes. O primeiro é a correta aplicação da lei 9433. O segundo é a restauração e conservação das florestas, que são responsáveis pela manutenção do ciclo hidrológico. E o terceiro é o enquadramento dos corpos d’água – rios, lagos, mares – em classes, de acordo com os limites de poluentes que podem receber (uma pesquisa publicada hoje pela fundação mostra que menos de 7% dos rios monitorados na Mata Atlântica têm água de boa qualidade).
“Se esse princípio da cobrança do uso da água for aplicado corretamente pro agro, isso vai forçar um investimento em tecnologia pra que haja um aproveitamento melhor da água”, concluiu.
Conferência da Água da ONU
A emergência hídrica não é exclusividade do Cerrado ou da Mata Atlântica, claro. Um relatório publicado agora em março pela Comissão Global sobre a Economia da Água, sediada na Holanda, dá conta de que a demanda por água potável deve superar a oferta em 40% já no final desta década. O estudo foi tema de uma reportagem veiculada na semana passada pelo jornal britânico The Guardian, que alertou para a existência de uma “crise tripla”.
“Estamos fazendo mau uso da água, poluindo a água e mudando todo o ciclo hidrológico global, pelo que causamos ao clima”, explicou ao jornal o pesquisador Johan Rockstrom, autor principal do estudo.
Hoje, no Brasil, 80% da água está comprometida com o agronegócio. E também hoje, no mundo, 700 bilhões de dólares (ou R$ 3,7 bilhões de reais) são gastos anualmente com subsídios para o uso da água no agronegócio, de acordo com o relatório publicado por Rockstrom. Ou seja: assim como ocorre com o combustível fóssil, o financiamento público continua fluindo em direção a quem causa, e não a quem propõe solucionar o problema. “Não haverá revolução possível na agricultura se não resolvermos o uso da água”, lamentou Rockstrom, ao The Guardian.
O tema será debatido na Conferência da Água das Nações Unidas, que se inicia hoje, 22 de março – Dia Mundial da Água – e segue até o fim desta semana, em Nova York. Será a primeira vez em mais de quatro décadas que membros da ONU se reúnem para tratar do assunto (todas as tentativas anteriores foram frustradas por relutância, dos países, em discutir qualquer forma de governança internacional sobre os recursos hídricos). Por ainda ser considerado um tema menos debatido, o encontro não deve contar com muitos chefes de Estado (o governo brasileiro será representado pelo secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco). O Brasil detém 12% da água doce do mundo.
Fonte: Observatório do Clima
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