Como não há no orçamento nem um Real de despesas que não esteja apoiado ou monitorado por alguma organização da sociedade civil ou por algum grupo estruturado de interesse regional ou setorial, é extremamente difícil que essa grande transformação orçamentária seja realizada por governos populistas e conformistas, cuja base política esteja alicerçada em grupos de interesse nem sempre orientados para o bem comum. A reconstrução dos fundamentos do Orçamento Geral da União em um novo mandato presidencial envolve, pois, grandes riscos e incertezas no campo do confronto político. Mas, como diz Peter Drucker: “Há riscos que não se pode correr, mas há riscos que não se deve deixar de correr” ou como dizia Immanuel Kant: “Avalia-se a inteligência de um indívíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar”.
Por Paulo Roberto Haddad
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Essa é a terceira parte do artigo, caso não tenha lido a parte I e a parte II, clique nos respectivos links e acompanhe!
1. No início, a Esperança: Karl Popper, considerado o filósofo da ciência mais influente do século 20, advertia que muitas pessoas bem-intencionadas, ao assumirem uma posição de responsabilidade na vida pública, precisam estar conscientes de que suas decisões relativas às políticas socioeconômicas e socioambientais podem trazer mais perdas e danos para a população do que inicialmente era esperado. Dizia que a tentativa de trazer o céu para a terra, invariavelmente produz o inferno e que não devemos aceitar, sem qualificação, o princípio de tolerar os intolerantes, senão corremos o risco de destruirmos a nós mesmos bem como à própria atitude de tolerância.
A economia brasileira tornou-se um cipoal com muitas entradas e poucas saídas, pleno de problemas complexos e interdependentes. Desde 2014, têm sido tomadas decisões de políticas públicas que tornaram a solução desses problemas ainda mais difícil e penosa para a sociedade brasileira. Uma das características principais dessas políticas tem sido a de um escapismo intelectual na sua concepção e implementação. Diante de uma lista crescente dos problemas socioeconômicos e socioambientais que nos atormentam, os formuladores das políticas têm manifesta preferência por concentrar os seus objetivos na busca do equilíbrio fiscal ampliado, como condicionante decisiva para se equacionarem todas as demais graves questões que se exprimem pelo baixo crescimento econômico, pela concentração de renda e de riqueza do País e pelo uso não sustentável dos ecossistemas.
Há uma crença na ideia de que o equilíbrio fiscal é, por si só, capaz de trazer a retomada do crescimento, uma vez que as forças de mercado seriam dinamizadas pelo novo ambiente macroeconômico após os ajustes. Banerjee e Duflot, Prêmio Nobel em Economia de 2019, lembram que, embora as forças de mercado possam reequilibrar as condições gerais da economia no médio prazo, precisamos nos preocupar com os choques que ocorrem nos períodos de transição entre os ajustes, pois os mais vulneráveis podem ser os mais atingidos nesses períodos. A transição importa, porque o tempo pode ser impiedoso e cruel.
A experiência histórica mostra que as decisões tomadas nos 100 primeiros dias de uma nova administração pública quase sempre são de extrema relevância para o sucesso ou fracasso futuro dessa administração, por diferentes motivos. São decisões que se ramificam e se empoçam em todos os centros de decisão das máquinas administrativas dos três níveis de governo, impactando os interesses, as expectativas e as aspirações de grupos sociais, regiões e setores produtivos. Decisões muitas vezes que geram trajetórias irreversíveis dentro de um único mandato ou reversibilidades que trazem novos problemas para a sociedade. Frequentemente, pode-se dar um passo à frente e dois para trás.
Se as condicionalidades político-institucionais que permeiam o processo decisório no primeiro momento de uma nova administração, não forem devidamente avaliadas e incorporadas em suas estruturas mentais e em suas crenças, acabam levando os dirigentes a um voluntarismo inconsequente, a um sequenciamento de movimentos casuísticos e erráticos, à perda da cadência e da intensidade das ações programáticas, tornando-os reféns de interesses velados de grupos autocentrados em seus privilégios, capazes politicamente de privatizar benefícios ao mesmo tempo que socializam os prejuízos dos eventos econômicos.
De fato, não se pode iniciar um novo mandato presidencial com ideias vagas e diretrizes genéricas, baseadas em ideologias históricas ultrapassadas (Millôr Fernandes dizia que quando as ideologias se aposentam, elas vêm morar no Brasil) ou estratégias mal concebidas, difusas e incompatíveis com a realidade político-institucional do País. Menos ainda com a tentativa de usar instrumentos econômicos e mecanismos institucionais que se mostraram ineficazes no passado recente.
Frequentemente, decisões econômicas tomadas no passado são determinantes de decisões a serem tomadas no futuro pelo seu rígido enraizamento nas estruturas administrativas e pelas expectativas que geram entre os que produzem, consomem ou acumulam capital. O sucesso de uma política pública depende relativamente menos de critérios de eficiência e mais de critérios de confiabilidade. E a confiança se assemelha à esperança “que, quando acaba, pode não mais voltar ou voltar sob forma desidiosa”.
2. O Curto e o Longo Prazo: Karl Polanyi, que analisou a Grande Transformação do capitalismo nos EE.UU. e na Suécia, a partir da crise de 1929, concluiu que: “A crença no progresso espontâneo pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica. Este papel consiste, muitas vezes, em alterar o ritmo de mudança, apressando-o ou diminuindo-o, conforme o caso. Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou, o que é pior, se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele, então não existe mesmo campo para qualquer intervenção”. Assim, propor programas de governo para o novo mandato presidencial, baseados apenas em mudanças incrementais dos hiatos observados, pode significar uma conduta insuficiente pela sua baixa capacidade transformadora e tímida para os limites do possível que se abrem para o futuro do nosso País.
A nova Administração do Governo Federal, a partir de 2023, enfrentará dificuldades para apresentar à opinião pública brasileira uma estratégia realista que possa articular as políticas compensatórias de curto prazo e, ao mesmo tempo, equacionar as descontinuidades e os impactos socioeconômicos da pandemia do coronavírus com as políticas de reformas institucionais de médio e de longo prazo, visando à retomada do crescimento econômico. A perspectiva de 2023 é a de um campo minado de incertezas e de problemas críticos para o bem-estar sustentável da população brasileira.
Durante os últimos anos, o Governo Federal concentrou os seus recursos humanos e institucionais na formulação das políticas de curto prazo, ora no combate à aceleração inflacionária, ora no ajuste das contas públicas. Com a exceção solitária de algumas iniciativas setoriais de poucos órgãos da administração direta e indireta, as atividades de planejamento de médio e de longo prazo estavam sendo postergadas até o momento em que o Ministério do Planejamento foi absorvido pelo novo Ministério da Economia. Para economistas que tiveram sua formação profissional estritamente nos mercados financeiros onde, em geral, o que conta são as decisões de um dia após o outro, o planejamento de longo prazo pode ser considerado uma atividade supérflua. Grande engano, pois como afirma Peter Drucker: “O planejamento de longo prazo não lida com decisões futuras, mas com o futuro de decisões presentes”.
Todo governo tem que dispor de estruturas de planejamento, que possam exercer as funções programáticas de mitigar, de compensar e de transformar. Mitigar determinados impactos maléficos e desastrosos, tais como aqueles provocados pelas mudanças climáticas. Compensar muitas desigualdades sociais entre pobres e ricos, tais como a concentração da renda e da riqueza. Transformar estruturas produtivas anacrônicas com a incorporação de inovações científicas e tecnológicas.
O hábito que se criou nas burocracias estatais, desde o fim das últimas experiências de planejamento de longo prazo, no início dos anos 1980, de atuar através de uma sequência interminável de intervenções casuísticas não pode perdurar. Sem uma perspectiva de longo prazo em suas ações, os agentes e as instituições governamentais se entrelaçam nos mecanismos que eles próprios criaram e passam a ser conduzidos por uma espécie de processo acumulativo, aparentemente sem limites. Ao sobrepor ações de curto prazo, desencadeiam forças que não podem controlar, induzem efeitos inesperados, promovem desencontros e expectativas e chegam à perda de confiabilidade junto à opinião pública. O tempo da economia e o tempo da política se confundem, gerando decisões casuísticas ou oportunistas, como afirma Jean Ladrière, da Universidade de Louvain.
É preciso articular as políticas econômicas de curto prazo, de austeridade fiscal por exemplo, com o planejamento de longo prazo, o qual funciona como uma lanterna de popa, na expressão de Roberto Campos, a orientar o que fazer e como fazer no curto prazo, sem comprometer os objetivos de longo prazo.
No caso presente, é necessário articular as políticas compensatórias indispensáveis durante o período de confinamento das famílias e de hibernação dos negócios, com uma política de expansão econômica pós-pandemia visando a gerar renda e emprego em um ambiente econômico com expectativas degradadas. Se nada for feito e continuarmos a fazer políticas econômicas de curto em curto prazo, poderemos chegar ao momento em que o Gato Que Ri afirma para Alice no País das Maravilhas: Se você não sabe aonde quer ir, qualquer caminho serve.
Especificamente no contexto de novo mandato presidencial, é preciso retomar a articulação técnica e a integração institucional do planejamento de longo prazo (que cuida das questões estruturais da economia), com o planejamento de médio prazo (orientado principalmente para o desenvolvimento econômico e político-institucional) e com os ajustes das políticas macroeconômicas de curto prazo. Nesse contexto, coloca-se a ideia de se construir um orçamento de base-zero
3. O Orçamento de Base-Zero: O Diagrama 1 ilustra os objetivos e as alternativas de intervenção governamental na economia, tomando como exemplo as políticas de desenvolvimento da sustentabilidade ambiental. Em geral, as políticas públicas se apoiam intensamente no uso de regulamentações (leis, decretos, portarias etc.) e de mecanismos institucionais. Muitas utilizam os mecanismos de mercado, sendo que o principal instrumento de intervenção, nesse caso, é o orçamento, tanto no seu lado das despesas (a distribuição dos recursos fiscais em programas, projetos e atividades) quanto no seu lado das receitas (impostos, taxas, contribuições parafiscais). O orçamento do Governo Federal é, pela sua escala (mais de 30 por cento dos recursos nacionais) e pela sua capilaridade sistêmica, o instrumento mais poderoso para promover a estabilidade macroeconômica, a distribuição da renda e da riqueza social e regional, e a alocação eficiente dos recursos escassos.
Em um processo orçamentário, a estrutura das despesas tem de estar articulada com as prioridades dos objetivos de planejamento que, em princípio, deveriam refletir o presente e o futuro da sociedade que a população deseja e aspira. Assim, essa estrutura não é arquitetada por uma lista de reivindicações casuísticas com base nos interesses legítimos ou velados de diferentes grupos sociais, setores produtivos de regiões e localidades, pois como afirmava Winston Churchill: “Os sonhos dos planejadores podem morrer no orçamento”.
O orçamento tem uma dimensão anual e um dimensão plurianual para levar em consideração o tempo ótimo para a implementação das ações programáticas de um Plano, a partir dos três componentes de uma Rede de Precedência (ver. R. Caporalli e P. Volker, SEBRAE):
a) sequência das ações: por sequência, entende-se o conjunto de ações e iniciativas que deveriam vir antes ou depois, e sua ordem de inserção no plano, com implicações relativas ao momento em que uma ação deve ser idealmente aplicada relativamente a outras ações que também deverão ser executadas; esse deve ser o objetivo essencial de um bom cronograma, que será tanto mais sofisticado e preciso quanto mais se tiver uma boa ideia de timing, uma conjugação entre o tempo certo requerido para cada ação e o momento ideal de sua execução;
b) cadenciamento das ações: definido como a rapidez com que um sistema econômico real consegue se transformar, assimilar novas práticas, técnicas e atitudes, e, assim, criar uma nova realidade; esse conceito oferece aos planejadores condições de refletir sobre o ritmo dos diferentes componentes do plano;
c) intensidade das ações: dimensionada pela concentração do uso de recursos (humanos, materiais, institucionais, etc.) no tempo; as intensidades das ações dependem de sua exequibilidade em função da disponibilidade dos recursos, do grau de mobilização de atores sociais e protagonistas do plano, do estágio de evolução dos seus componentes.
Apesar de ser o instrumento econômico e o mecanismo institucional mais poderoso para a intervenção direta e indireta na economia, o orçamento tem sido o espaço preferencial para as práticas da corrupção administrativa, do fisiologismo político e dos penduricalhos eleitoreiros. É indispensável resgatar o orçamento anual e plurianual como a coluna vertebral do sistema de planejamento de médio e de longo prazo, viabilizar as suas políticas, programas e projetos.
Na elaboração do orçamento de base-zero, destacam-se três argumentos. Primeiro: a carga tributária é elevada, mal distribuída e de alto custo administrativo; a reforma tributária não deveria aumentá-la ainda mais. Segundo: o Governo deve se reorganizar para viver com os recursos que tem; não devem ser criadas artimanhas administrativas para ultrapassar o teto constitucional dos gastos. Terceiro: o Governo deve avaliar, recorrentemente, a sua estrutura de gastos e adequá-la às prioridades atualizadas para equacionar os problemas socioeconômicos e socioambientais críticos da sociedade brasileira. Na verdade, o orçamento de base-zero é um processo endógeno de reprogramação político-institucional das estruturas das despesas e das receitas governamentais.
A pandemia escancarou a dramática realidade do imenso número de pobres e miseráveis na população brasileira. Ao mesmo tempo, mostrou a necessidade de serem reforçados institucionalmente os sistemas de saúde pública e de ciência e tecnologia. O recente desmonte das políticas públicas ambientais revelou, para a opinião pública nacional e internacional, o profundo descaso das atuais autoridades com o processo de degradação dos nossos ecossistemas. Da mesma forma, são escassos os recursos financeiros e institucionais para a segurança pública nas grandes metrópoles e nas fronteiras do País.
O que fazer, então, para reestruturar as despesas públicas e realocar mais recursos para programas e projetos de saúde pública, ciência e tecnologia, meio ambiente, combate à pobreza e miséria social, e segurança pública. Uma alternativa para promover essa reestruturação é a elaboração do orçamento de base zero. É bom lembrar que a última reestruturação de maior escala do orçamento do lado da despesa pública foi promovida a partir da Constituição de 1988, com a expansão das políticas sociais compensatórias, cujas despesas eram equivalentes a 5% do gasto total do Governo Federal e que, no início do século 21, alcançaram um valor superior a 20%.
Diferentemente dos orçamentos tradicionais que são de natureza repetitiva, o orçamento de base zero não produz apenas pequenas variações na estrutura das despesas que se repetem ano após ano. O orçamento de base-zero permite incorporar a nova agenda de prioridades da sociedade nas políticas, programas e projetos, ao longo do processo de alocação dos recursos escassos disponíveis. Identifica e elimina atividades e funções programáticas obsoletas e socialmente supérfluas. Amplia o grau de comunicação transversal e de interdependência entre políticas públicas de diferentes órgãos. Descortina oportunidades de privatizações, de terceirizações e de concessões de bens e serviços semipúblicos. Impõe a necessidade de que servidores públicos organizem metas e objetivos em função de sua missão, a partir de retreinamento metodológico específico.
De acordo com a metodologia do orçamento de base-zero, nenhum órgão da administração direta e indireta dispõe, inicialmente, de cotas preestabelecidas ou corrigidas segundo regras uniformes. Deve haver uma sólida justificativa para cada programa, subprograma ou atividade a ser iniciada no orçamento a fim de ter acesso aos recursos fiscais. Essa função de reprogramação orçamentária deverá ser articulada com um projeto de Reforma do Estado, pois poderá resultar na desativação, na reordenação e na integração de programas e projetos de diferentes instituições do setor público.
Como não há no orçamento nem um Real de despesas que não esteja apoiado ou monitorado por alguma organização da sociedade civil ou por algum grupo estruturado de interesse regional ou setorial, é extremamente difícil que essa grande transformação orçamentária seja realizada por governos populistas e conformistas, cuja base política esteja alicerçada em grupos de interesse nem sempre orientados para o bem comum. A reconstrução dos fundamentos do Orçamento Geral da União em um novo mandato presidencial envolve, pois, grandes riscos e incertezas no campo do confronto político. Mas, como diz Peter Drucker: “Há riscos que não se pode correr, mas há riscos que não se deve deixar de correr” ou como dizia Immanuel Kant: “Avalia-se a inteligência de um indívíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar”.
O presidente Roosevelt, em uma atitude de estadista para confrontar, com sucesso, as mazelas econômicas e sociais da crise de 1929, afirmou: “O que precisa ser feito, tem de ser feito”. Na verdade, o que as administração federais mais recentes vêm realizando são reprogramações ad hoc dentro dos limites constitucionais, para atender pressões políticas localizadas d base aliada, dos movimentos sociais, das crises conjunturais, ou de ações emergenciais. E la nave va!
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