Répteis de Fernando de Noronha, as cobras-cegas são fruto de odisseias marítimas e erupções vulcânicas
Quando o navegador italiano Américo Vespucci – o mesmo que daria seu nome ao Novo Mundo – descobriu o arquipélago de Fernando de Noronha em 1503, descreve-o “contendo tantos pássaros, tanto marinhos quanto terrestres, que eram sem número… não vimos nenhum outro animal, exceto ratos muito grandes, lagartos com duas caudas e algumas cobras.”
O grande roedor avistado por Vespucci não existe há séculos. Foi extinto pelas levas de ratos, cães e gatos introduzidos nas ilhas pelos primeiros viajantes. Seus restos foram achados nos anos 1970, o que permitiu a descrição da espécie, batizada de Noronhomys vespuccii, o roedor de Noronha de Vespucci. Já o lagarto de duas caudas se chama mabuia (Trachylepis atlantica). Ele ainda sobrevive, e não, não tem duas caudas (mas isso é outra história…).
As tais cobras não eram serpentes, mas anfisbenas de Ridley. A origem das anfisbenas naquele arquipélago é misteriosa, dado que se trata de um animal terrestre que passa a vida enterrado, cavando seus túneis. Como então seus ancestrais fizeram para cruzar os 375 quilômetros de oceano que separa Fernando de Noronha do Rio Grande do Norte?
Tal enigma acaba de ser elucidado. As anfisbenas ancestrais que colonizaram Fernando de Noronha muito provavelmente vieram flutuando desde a foz do rio Amazonas, há cerca de 12 milhões de anos, segundo um artigo publicado na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.
De acordo com um dos autores do trabalho, o herpetólogo Felipe Grazziotin, do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan, a fantástica odisseia da anfisbena de Ridley ao arquipélago de Fernando de Noronha é um enigma que, para ser solucionado, envolve desafios evolutivos, biogeográficos e históricos. Comecemos por estes últimos.
Odisseia histórica
Há mais de 200 espécies de anfisbenas espalhadas pelas Américas, África, Europa e Oriente Médio. Em sua maioria elas medem menos de 15 centímetros, e são todas carnívoras. A maior diversidade de anfisbenas encontra-se na América do Sul e no Caribe. No Brasil, até o momento, já foram descritas 72 espécies, o que torna o país o berço da maior diversidade de anfisbenas do planeta.
No caso da anfisbena de Noronha, seu nome científico, Amphisbaena ridleyi, é uma homenagem ao naturalista britânico Henry Nicholas Ridley, que em 1887 estudou a fauna e a flora de Fernando de Noronha, levando exemplares para descrição no Museu Britânico, entre eles a anfisbena.
As anfisbenas de Ridley são pequenos répteis esguios e desprovidos de patas que lembram muito cobrinhas, e que os ilhéus em Noronha desde sempre chamam de cobras-cegas, ou ainda cobras-de-duas-cabeças. Mas elas não são nem cobras nem cegas – muito menos têm duas cabeças.
Elas são répteis furtivos que vivem cavando seus túneis. Há muito a visão deixou de ser um sentido importante para a sua sobrevivência. Adaptada à escuridão, ela tem olhinhos pequenos e enxerga mal.
“Como a cabeça e a cauda são muito parecidas, ela acabou sendo conhecida como cobra-de-duas-cabeças. As anfisbenas que colonizaram Fernando de Noronha vieram flutuando. Isso não é incomum. Há diversos casos de animais que foram achados em alto-mar sobre troncos de árvores ou grandes tufos de vegetação”, diz Grazziotin.
Três hipóteses
Presume-se que foi assim que as primeiras anfisbenas aportaram no arquipélago. Mas de onde vieram? E quando? Para identificar a origem dos ancestrais da anfisbena noronhense, os pesquisadores tinham três hipóteses. Poderiam ser náufragos que vagaram à deriva desde o Caribe ou da América do Sul, ou ainda poderiam ter sobrevivido a uma travessia de milhares de quilômetros, desde a África.
O ponto de partida foi capturar três exemplares de anfisbenas em Fernando de Noronha, dos quais coletaram material genético. Amostras do DNA de A. ridleyi foram então comparadas com os dados genéticos de outras 78 espécies das seis famílias de anfisbenas.
Daí foi possível estudar não só as relações evolutivas entre A. ridleyi e as demais linhagens, como construir uma árvore filogenética revelando toda a história evolutiva do grupo Amphisbaenia. A análise sugeriu que o ancestral comum mais recente de todas as 200 espécies de anfisbenas viveu há 88 milhões de anos, no período Cretáceo Médio. Ou seja, conviveu com os dinossauros. Não por acaso, foi apenas após a extinção dos répteis gigantes há 66 milhões de anos que teve início a grande diversificação do grupo, dando origem às seis famílias de anfisbenas que conhecemos.
Os dados moleculares sugerem que a família dos anfisbenídeos, a maior de todas, com mais de 170 espécies espalhadas pela América do Sul, Caribe e África, começou a se diversificar há 42 milhões de anos, no período Eoceno.
Náufragos caribenhos
“Nosso trabalho revelou que a linhagem mais aparentada com A. ridleyi é o grupo de três espécies endêmicas de Hispaniola”, ou São Domingos, onde ficam a República Dominicana e o Haiti, diz o biólogo.
Os dados moleculares sugerem que o ancestral comum das espécies dominicanas (e também de A. ridleyi)separou-se das linhagens sul-americanas há 21 milhões de anos, no início do período Mioceno. Não se sabe exatamente como foram parar em Hispaniola, mas acredita-se que possa ter sido “pulando” de ilha em ilha, pois evidências geológicas mostram que, naquela época, havia um colar de ilhas hoje desaparecidas, e que se estendia da América do Sul até o Caribe.
O último ancestral comum das anfisbenas de Hispaniola e de sua parente de Fernando de Noronha provavelmente viveu há 13,6 milhões de anos. Mas isto não quer dizer que seus descendentes povoaram Noronha pela mesma época. O arquipélago foi formado por antigos vulcões que emergiram do fundo oceânico. As rochas mais antigas de Noronha datam de 12,4 milhões de anos. Existe aí portanto uma lapso de 1,2 milhão de anos, período durante o qual os ancestrais diretos da anfisbena noronhense poderiam ter sobrevivido colonizando uma sucessão de ilhas hoje desaparecidas. Tais ilhas poderiam ter criado uma passarela biogeográfica do Caribe até Noronha.
Atua contra esta hipótese o fato de, tanto hoje quanto no passado, a Corrente Norte do Brasil correr lambendo o litoral brasileiro no sentido leste-oeste, do Nordeste para o Caribe. Ora, para percorrer um colar de ilhas, as anfisbenas teriam necessariamente que ser carregadas de ilha em ilha em tufos de terra boiando à deriva – e na contracorrente, o que seria algo bastante improvável.
Enigma solucionado
Há uma segunda possibilidade: que o ancestral comum das anfisbenas de Hispaniola e de Noronha não seja caribenho, mas amazônico. Corrobora este cenário o fato de existir evidências geológicas de um colar de ilhas conectando Hispaniola à América do Sul: as Antilhas, as quais os ancestrais das anfisbenas de Hispaniola podem ter percorrido até lá chegar.
De outro modo, há uma corrente marinha que corre no sentido oeste-leste, chamada Contracorrente Equatorial Norte. Ela é caracterizada por sua extrema sazonalidade, tendo a sua dinâmica afetada por fenômenos climáticos como o El Niño. Nas circunstâncias corretas, a Contracorrente Equatorial Norte poderia muito bem ter carregado as anfisbenas desde a foz do Amazonas até Noronha.
Com efeito, este é o cenário mais provável para a origem das anfisbenas de Ripley. “Há 13,6 milhões de anos, o ancestral comum de A. ridleyi e das espécies de Hispaniola vivia na região da foz do Amazonas,” diz Grazziotin. “De lá partiram duas levas de migrantes, os animais carregados pela Corrente Norte do Brasil na direção oeste, e que foram dar no Caribe, e aqueles levados para leste pela Contracorrente Equatorial Norte, até as praias de Noronha, o que aconteceu necessariamente após a formação do arquipélago, há 12,4 milhões de anos.
Fernando de Noronha está localizada em um edifício vulcânico que se eleva por 4 mil metros desde o leito oceânico. Esta enorme montanha submarina foi formada durante dois eventos vulcânicos: o processo magmático inicial conhecido como Formação Remédios, com rochas datadas entre 12,3 e 8 milhões de anos, e a Formação Quixaba, com rochas entre 4,2 e 1,5 milhões de anos.
“Nosso cenário biogeográfico sugere que A. ridleyi estabeleceu-se em Noronha logo após a formação do arquipélago. As erupções magmáticas da Formação Quixaba provavelmente impactaram a viabilidade da espécie. Supomos que a baixa diversidade genética de A. ridleyi representa o sinal de um gargalo populacional associado aos eventos vulcânicos da Formação Quixaba”.
Um gargalo populacional acontece quando grande parte de um população desaparece de forma repentina, restando aos poucos sobreviventes (a baixa diversidade genética) a tarefa de resgatar a espécie de uma quase extinção,
Criaturas preciosas
As anfisbenas de Ridley são animais preciosos. Elas são o resultado de uma improvável odisseia marítima, sobreviveram à erupções vulcânicas e também à chegada do homem e suas espécies invasoras, há 500 anos. Mas hoje elas correm risco.
O arquipélago é ocupado por 3 mil habitantes. Desde os anos 1990 o turismo aumentou mais de 900%. Seus impactos nas manchas remanescentes de vegetação natural e a contínua alteração das características do solo são as principais ameaças à fauna terrestre endêmica. Além disso, espécies invasoras, incluindo ratos, camundongos e gatos selvagens, têm sido um sério problema para a fauna nativa das ilhas.
Com base na sua pequena área de distribuição, baixa variabilidade genética e no crescente impacto sobre os ecossistemas naturais de Fernando de Noronha, os autores afirmam que a anfisbena de Ridley é uma espécie criticamente ameaçada. Mas até o momento não consta da lista de espécies ameaçadas no Brasil. Para protegê-la, isto precisa mudar.
Fonte: O Eco
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