A mineradora canadense Cabral Gold acredita ter feito um negócio da China. Graças a uma manobra articulada por políticos para lá de enrolados com empresários do setor, em janeiro deste ano a empresa conseguiu o direito de explorar até 100 mil toneladas de ouro anualmente em uma área de floresta no sudeste do Pará – antes mesmo de ter o licenciamento ambiental e a concessão definitiva de lavra no local. A empresa já escava a área sem nenhum tipo de autorização desde 2017 – para a Cabral Gold, trata-se da terceira maior mina de ouro do Brasil.
O que permitiu à canadense dar esse jeitinho e levou o CEO da empresa, Alan Carter, a sair à caça de investidores pelo mundo foram duas Guias de Utilização, as GUs, emitidas pela Agência Nacional de Mineração, a ANM. Na peregrinação por dinheiro, Carter saiu mostrando pepitas de ouro e até uma pedra maciça de 18 quilos coletadas nos riachos de Cuiú-Cuiú.
Até pouco tempo atrás, a GU era uma autorização que funcionava apenas em caráter excepcional, como forma de uma empresa extrair quantidades limitadas de minério por tempo determinado. O carimbo permitia ao minerador fazer análises e testes para entender se fazia sentido continuar o empreendimento. Desde 4 de junho de 2020, porém, quando foi publicada a resolução 37, que mudou as regras para emissão de GUs, a exceção se tornou atalho para antecipar a operação de projetos minerários dos mais diferentes portes e tipos de exploração, como o da Cabral Gold.
A canetada veio menos de dois meses depois da infame reunião ministerial em que o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu “ir passando a boiada” enquanto o país estava distraído com a pandemia de covid-19. Como se provou nos meses seguintes, o governo aceitou a proposta e encaminhou dezenas de medidas que diminuíram a proteção ao meio ambiente.
A mudança nas regras da GU foi gestada em dezembro de 2019, em uma reunião com o Instituto do Desenvolvimento da Mineração, o IDM, uma organização que se apresenta como órgão técnico e científico da Frente Parlamentar da Mineração. Quem conduziu o encontro foi o então ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, um deputado federal do DEM-RS que manteve reuniões com o grupo em 2019 e 2020 com promessas de pautar demandas da mineração no governo.
Onyx, hoje ministro do Trabalho e Previdência, viabilizou as mudanças na Guia de Utilização, segundo anunciou o próprio IDM, e abriu as portas do governo Bolsonaro para atender o setor: “nunca anteriormente em nosso país, um ministro da Casa Civil havia demonstrado tanto respeito e comprometimento com o setor de mineração brasileiro”, manifestou a entidade. Em 2019, por exemplo, foi Onyx quem anunciou a disposição do governo para liberar mineração em terras indígenas.
Com a nova resolução, a licença ambiental, que antes era pré-requisito para a emissão da Guia de Utilização, não é mais obrigatória. A manobra também inverteu a ordem das exigências e, agora, as mineradoras primeiro obtêm a autorização da ANM para depois buscarem o aval do órgão ambiental. Ou seja, a agência autoriza a atividade antes mesmo de saber o seu potencial impacto sobre o meio ambiente.
A mudança causou tanta estranheza entre os servidores da ANM que a agência teve que lançar uma nota técnica reforçando que, sim, as GUs devem ser emitidas sem a licença ambiental. Na nota, a ANM defende as novas regras em nome da desburocratização e reforça que “não devem prosperar interpretações que dificultem ou atrasem a emissão da GU, bem como que imponham ônus ao minerador”. Tal qual propôs o ministro Ricardo Salles na reunião ministerial, “mudando todo o regramento e simplificando normas [ambientais] […] de baciada”.
A mesma resolução também diz que o licenciamento ambiental ou documento equivalente deve ser apresentado até 10 dias depois da emissão da guia, sob pena de cancelamento da permissão. No entanto, o próprio processo da Cabral Gold mostra como essa é uma regra para inglês – ou canadense – ver. Passado quase um ano desde a emissão da Guia de Utilização para lavra experimental, a empresa ainda não obteve licenciamento ambiental, e sua GU segue ativa.
Segundo a Secretaria do Meio Ambiente do Pará, ainda não foi apresentado nem o plano para a bacia de rejeitos, local para onde é descartado o material que sobra da mineração do ouro e uma parte importante do projeto. Isso aponta para outro problema causado pela mudança nas regras da GU: a pressão ainda maior sobre os órgãos ambientais, que precisam analisar o licenciamento de projetos que já chegam com aval da Agência de Mineração.
“As propostas de licenciamento ambiental que estão surgindo pressupõem que os locais que possuem algum tipo de atividade sejam considerados de menor impacto. Essas atividades [autorizadas com a GUs] já poderão ser consideradas como atividades iniciais, fazendo com que se tenha licenciamento flexível ou até mesmo rápido, pois podem considerar não uma nova atividade, mas uma expansão da exploração, e esse é um risco desta resolução”, explicou o pesquisador Luiz Jardim Wanderley, Coordenador do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil.
Mineradoras em Itaituba, em que está localizada Cuiú-Cuiú. A região já foi palco da maior corrida do ouro do país nas décadas de 1970 e 1980. Mais de 100 mil pessoas estiveram por lá escavando em busca do minério, superando até os números da mais conhecida Serra Pelada.
Foto: Mônica Raymunt/picture alliance via Getty Images
O mapa da mina
Doutor em geologia, o empresário Alan Carter passou os últimos 13 anos trabalhando para as gigantes da mineração, como Rio Tinto e BHP Billiton, até se aventurar na busca de ouro no Pará pela Cabral Gold. Ele se apresenta como principal investidor do negócio, com 1,7 milhão de dólares. O que não significa que esteja sozinho nessa.
Entre os diretores mais recentes anunciados pela Cabral Gold está Carlos Vilhena, um advogado com larga experiência no setor minerário brasileiro. Sócio do escritório Pinheiro Neto, uma das maiores bancas de advocacia do país, em 2015 Vilhena foi acusado de alterar trechos da então minuta que previa mudanças no Código de Mineração. Mais de 100 alterações no relatório final do então relator do projeto, deputado Leonardo Quintão, do MDB mineiro, foram realizadas no computador de Vilhena, como mostrou a BBC. Na época, o advogado afirmou que colaborou “voluntariamente” no texto do projeto de lei.
O relatório de Quintão não prosperou, mas a ideia de alterar o Código de Mineração segue mais viva do que nunca. Artigos do relatório de Quintão, o mesmo construído com a colaboração do agora diretor da Cabral Gold, Carlos Vilhena, foram incorporados na proposta preliminar do novo Código de Mineração da deputada Greyce Elias, do Avante de Minas Gerais, apresentada na Câmara em novembro deste ano.
Um dos artigos pede a ampliação da validade da Guia de Utilização por tempo indeterminado até a concessão definitiva de lavra – hoje, o limite é de três anos.
Como se não bastasse, o grupo, apoiado pela mesma IDM que gestou as mudanças, também pretende tornar a mineração uma “atividade de utilidade pública, de interesse nacional e essencial à vida humana”, o que confere ao setor prerrogativas especiais diante de outras áreas da sociedade.
Greyce Elias é casada com o empresário Pablo Cesar de Souza, o Pablito, ligado ao setor de mineração e empossado como diretor do IDM em 2019 sob aplausos de Quintão e empresários da mineração.
Antes de chegar ao IDM, Pablito ocupou cargos de confiança no antigo Departamento Nacional de Produção Mineral, substituído pela ANM, na gestão Temer, e manteve sociedades com empresas de mineração. Atualmente está lotado no gabinete do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD mineiro.
A união do casal gerou polêmica na comissão que discute a matéria na Câmara, e deputados de oposição apontaram conflito de interesses no relatório de Elias. Mas a deputada não é a única nessa situação. Pelo menos seis parlamentares do atual Grupo de Trabalho que discute o assunto na Câmara receberam doações de donos de empresas de mineração.
Garimpo ilegal por contrato
O projeto da Cabral Gold pretende ocupar cerca de 10 mil hectares do distrito de Cuiú-Cuiú, que já foi palco da maior corrida do ouro do país nas décadas de 1970 e 1980. Mais de 100 mil pessoas estiveram na região escavando em busca do minério, superando até os números da mais conhecida Serra Pelada.
Após décadas fora do radar, no início dos anos 2000, diversos projetos estrangeiros aportaram no rio Tapajós para buscar ouro nas profundezas dos grandes garimpos. Foi aí que a Associação dos Posseiros do Garimpo Cuiú-Cuiú viu uma oportunidade. Em 2004, a entidade cedeu a área para a canadense Magellan iniciar pesquisas em busca de minérios. Depois, em 2017, o projeto foi comprado pela Cabral Gold. As autorizações de pesquisa para recolher material na área estavam vencidas desde 2013.
Segundo a ANM, em 2017 a empresa chegou a solicitar pesquisa complementar, no entanto, nenhuma nova autorização para escavar o terreno foi incluída no Sigmine, o sistema de acompanhamento dos processos minerários ativos no Brasil.
No contrato com a associação, a Cabral Gold autorizou a permanência dos garimpeiros no local com a promessa de pagamento que varia entre 2 e 6 milhões de dólares, dependendo do tamanho da mina a ser descoberta, pagos após a ANM liberar a concessão de lavra para a exploração da mina em profundidade.
A legislação brasileira não permite a instalação de garimpos em áreas que já são requeridas para mineração industrial. Mesmo assim, a Cabral Gold autorizou a continuidade dos garimpos em Cuiú-Cuiú. Mas com um detalhe: se eximiu de qualquer responsabilidade sobre a legalidade das operações, que, segundo indica a empresa no texto, deve ser requerida à Agência Nacional de Mineração.
Segundo a própria a ANM, apesar de possuir Guia de Utilização, a empresa ainda não tem licenciamento ambiental para iniciar nem a lavra experimental. Ou seja, desde 2013, nenhuma nova autorização foi emitida para o projeto de ouro da mineradora, o que indica que a Cabral Gold escavou a área em situação irregular.
As imagens de satélite confirmam o que Alan Carter divulga nas suas investidas em buscas de novos investidores: as atividades em Cuiú-Cuiú de fato são intensas desde 2017. O Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite, o Prodes, mostra que diversas áreas dentro do projeto da canadense foram desmatadas.
Imagens de satélite da área minerada pela Cabral Gold em 2021 e em 2017, antes da empresa começar a “pesquisar” a existência de ouro na região.
“Nos últimos 15 anos da minha carreira, eu estive obcecado em descobrir de onde veio todo esse ouro”, disse Alan Carter no começo de dezembro em entrevista no Mines and Money London, maior evento de investimentos em mineração da Europa. O CEO da Cabral Gold não perdeu a oportunidade de repetir novas descobertas que confirmam o potencial da mina e, consequentemente, também das ações da empresa.
A Cabral Gold entrou na Bolsa de Toronto no mesmo ano em que comprou o projeto da Magellan, em novembro de 2017. No início de 2020, as ações da empresa valiam 0,19 centavos de dólar. Em janeiro deste ano, mês em que recebeu a Guia de Utilização da ANM, os papéis dispararam e chegaram a 0,78 centavos, uma valorização de mais de 310% – apesar da autorização só ter sido publicada no Diário Oficial no mês seguinte.
Cada GU permite que a empresa minere até 50 toneladas de ouro, o que daria à Cabral Gold, que tem duas Guias de Utilização, carta branca para minerar 100 toneladas por ano do material. Isso alerta para outro problema, como lembrou Wanderley, do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil. Quem controla o volume de minério extraído dessas áreas por meio das Guias de Utilização?
Em setembro, mostramos no Intercept como a novata Gana Gold, que conseguiu uma GU para testar a viabilidade da mineração de ouro na Amazônia, faturou mais de R$ 1 bilhão em pouco mais de um ano explorando 32 vezes mais do que o previsto com a autorização experimental.
Aos investidores e ao mercado, a Cabral Gold promete ter encontrado a terceira maior mina de ouro do Brasil. Na prática, com as Guias de Utilização, a empresa aproveitou para instalar uma planta para extrair ouro da superfície a fim de ampliar o capital da empresa — uma espécie de garimpo com maquinários mais modernos: “eu acho que para os nossos investidores e acionistas esta é uma opção muito atraente”, declarou Carter ao site americano Crux Investor.
No final de novembro, em Londres, Alan Carter disse ainda que a Cabral Gold “tem cinco sondas girando”, extraindo minério para análise, e que já escavou mais de 25 mil metros cúbicos no local. A promessa é de que em até um ano estarão com a operação completa em funcionamento.
Ao Intercept Alan Carter voltou a afirmar que “no momento a empresa está realizando pesquisa mineral” na área do projeto Cuiú-Cuiú, mas sem indicar quais tipos de licenças a empresa possui. Nós também conversamos com Ruari McKnight, que é representante legal da Cabral Gold no Brasil, e que disse ter obtido autorização da prefeitura de Itaituba para pesquisas na área.
As informações contradizem o que aponta a ANM, de que a empresa não tem autorização válida para qualquer tipo de atividade na área desde o fim do prazo da pesquisa, que encerrou em 2013.
Após décadas fora do radar, no início dos anos 2000 diversos projetos estrangeiros aportaram no rio Tapajós para buscar ouro nas profundezas dos grandes garimpos.
Foto: Leondro Milano/AFP via Getty Images
Nem só de ouro
Mas a canadense Cabral Gold não foi a única beneficiada com a boiada da GU. Enquanto se notabilizava pela distribuição de Ivermectina e pelo incentivo a tratamentos mirabolantes e não comprovados contra o coronavírus, como uso de solda elétrica, o ex-governador e ex-senador Ivo Cassol, do PP de Rondônia, tirava do papel o projeto de uma nova mina de calcário dolomítico, utilizado como fertilizante pelo agronegócio.
Com quatro Guias de Utilização em mãos, em 17 de agosto, o Grupo Cassol inaugurou a segunda usina de beneficiamento de calcário do grupo, em Nova Brasilândia D’Oeste, Rondônia. Assim como no caso da Cabral Gold, o processo foi feito antes da conclusão do licenciamento ambiental e da concessão definitiva de lavra pela ANM.
E mesmo que cada GU permita a exploração de até 20 mil toneladas de calcário por ano, a inauguração da usina foi anunciada como em pleno funcionamento, com capacidade para produzir mil toneladas da substância por dia que será destinada para produção de fertilização. O Grupo Cassol, que estima produzir 500 mil toneladas de calcário por ano para abastecer as regiões agrícolas do Mato Grosso, Rondônia e Acre.
Em maio deste ano, Cassol esteve com Jair Bolsonaro na inauguração da ponte do Abunã, na BR-364 sobre o rio Madeira, que vai ligar o Acre a Rondônia. Em vídeo publicado nas redes, Cassol aparece ao lado de presidente afirmando “estamos juntos em 2022”. Recentemente, o político liderou uma comitiva de prefeitos em encontro com Bolsonaro para pedir a construção de outra ponte, desta vez sobre o rio Guaporé, na fronteira de Costa Marques com a Bolívia.
Em entrevista a um site local, Cassol diz que a ponte inaugurada no Madeira, que recebeu emendas de quando ele era senador, vai melhorar a logística para distribuição do calcário. “O agricultor comprava o calcário no Acre, por exemplo, e o frete era um absurdo”, comentou.
Além do calcário, as empresas do Grupo Cassol também possuem requerimentos ativos para exploração de ouro, cobre e diamante. O grupo já explora uma mina em Parecis, também em Rondônia, onde prevê a construção de uma pista de pouso.
Em 2008, Ivo Cassol, ainda governador, declarou durante visita a uma usina de calcário interditada pelo Ibama que, se não liberassem o calcário no estado, o desmatamento aumentaria. Com o passar dos anos, tanto o calcário foi liberado em Rondônia, como os próprios negócios da família Cassol, antes concentrados em energia hidrelétrica, expandiram justamente para este setor.
Fonte: The Intercept
Comentários