Nova regra pode destravar projetos de gigantes da mineração. Levantamento do InfoAmazonia revela que mais de 20 mil requerimentos estão em assentamentos da reforma agrária. Dinheiro da contrapartida será negociado de forma privada com famílias que deveriam cumprir com função social da terra.
A Instrução Normativa 112, publicada no apagar das luzes de 2021 e em vigor desde 3 de janeiro de 2022, que regulamenta a negociação de terras da União em assentamentos da reforma agrária diretamente com o Incra para a instalação de projetos de mineração, energia e infraestrutura, pode destravar mais de 20 mil pedidos de mineração em projetos de assentamentos no país. Especialistas ouvidos pelo InfoAmazonia avaliam que a medida terá impactos diretos na preservação da floresta e promoverá deslocamento e reassentamento de milhares de famílias.
Essas negociações já vinham sendo tratadas no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão do Ministério da Agricultura, antes mesmo de publicar as regras para esse tipo de negociação.
Em novembro de 2021, o Incra firmou contrato de R$1,3 milhões com a canadense Belo Sun e autorizou a redução do Projeto de Assentamento (PA) Ressaca e da gleba Ituna, onde vivem cerca de 600 famílias, no Pará, para exploração de ouro. O caso foi revelado pelo Estadão.
A Defensoria Pública da União e o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas questionaram a negociação. A defensora regional de Direitos Humanos no Pará, Elisângela Machado Côrtes, aponta que as negociações foram realizadas sem consulta aos moradores e sem publicidade: “vamos pedir a anulação do contrato [entre a mineradora e o Incra] ainda este mês”, disse ao InfoAmazonia. A defensora lembra que a negociação ocorreu antes da publicação da Instrução Normativa, sem qualquer tipo de respaldo legal.
É uma inversão completa da política de reforma agrária. Sem consulta pública e sem se reconhecer o bem da União, que é de toda a nação, se transfere áreas públicas para mineradoras e outros grandes empreendimentos.
Raimundo Silva, diretor da Associação Brasileira da Reforma Agrária
Para Raimundo Silva, diretor da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), a Instrução Normativa do Incra coloca interesses privados acima da coletividade e transforma assentamentos em ativo financeiro.
“É uma inversão completa da política de reforma agrária. Sem consulta pública e sem se reconhecer o bem da União, que é de toda a nação, se transfere áreas públicas para mineradoras e outros grandes empreendimentos. Famílias terão que ser novamente reassentadas por conta de um interesse que não está bem equacionado. Isso é preocupante”, declarou o diretor da ABRA.
A norma é omissa, apontam especialistas, ao não estabelecer nenhuma forma de consulta pública. “O que cria é uma negociação privada entre assentado e mineradora”, explica Raimundo. Por outro lado, institui pagamento aos assentados e à União, mas não deixa claro os critérios para estipular esses valores.
“Uma das coisas mais sérias nessa discussão é o Estado tratar a terra pública como se fosse uma negociata e se igualando ao ente privado, quando sua função seria fiscalizar essa questão. A Instrução Normativa coloca os poderes dessa negociação nas mãos do superintendente do Incra, sem necessidade de discussão pública sobre impactos desses projetos”, avalia Raimundo.
Atualmente, mais de 20 mil requerimentos minerários ativos na Agência Nacional de Mineração (ANM) pedem liberação para explorar, principalmente ouro, ferro e cobre, em áreas de assentamentos do Incra. A maioria está nos estados da Amazônia Legal.
Dos 8.372 assentamentos listados pelo Incra em todo país, 3.309 (39%) são alvos de requerimentos minerários. Desses, 1.480 projetos (44,7%) de assentamentos estão na Amazônia Legal e poderão ser desocupados mediante acordos firmados entre empresários e a cúpula do Incra. O Pará é o estado amazônico com o maior número de requerimentos minerários sobrepostos a assentamentos. São mais de 4 mil requerimentos em 617 assentamentos (59% dos 1.049 assentamentos no estado). O Mato Grosso é o segundo na lista, com 1.875 pedidos em 279 assentamentos do estado (68% do total).
Essa é a primeira vez que o governo federal estipula regras específicas para a cessão de áreas em assentamentos para projetos de mineração. A norma estende a autorização também a projetos de energia hidrelétrica e obras de infraestrutura. Até então, inexistiam regras sobre os procedimentos a serem adotados nos casos de interferência de grandes projetos nessas áreas.
“Via de regra, todo grande empreendimento com impactos em áreas de assentamentos da reforma agrária deveria ser alvo de consulta pública”, explica Adriana Ramos, assessora de políticas públicas do Instituto Socioambiental (ISA).
A assessora lembra que as novas regras para negociação dessas áreas públicas ocorrem no momento em que o Congresso discute a revisão do Código de Mineração, que está a cargo de um Grupo de Trabalho da Câmara. Adriana destaca que uma das mudanças previstas, caso avancem as mudanças no novo Código, é afrouxar a legislação com a simplificação ou até mesmo dispensa de licenciamento ambiental para projetos de mineração considerados de baixo impacto.
Via de regra, todo grande empreendimento com impactos em áreas de assentamentos da reforma agrária deveria ser alvo de consulta pública. Muitos desses projetos poderão até ser autodeclaratórios, como querem os deputados do novo Código de Mineração, podendo ser implantados sem vistoria, sem licenciamento ambiental e sem consulta. Cria-se um fato consumado.
Adriana Ramos, assessora de políticas públicas do Instituto Socioambiental
Ramos explica que uma eventual combinação dessas mudanças legislativas pode tornar a remoção de famílias e a instalação destes projetos em áreas de assentamento ainda mais fáceis.
“Muitos desses projetos poderão até ser autodeclaratórios, como querem os deputados no novo Código de Mineração, podendo ser implantados sem vistoria, sem licenciamento ambiental e sem consulta. Cria-se como um fato consumado ”, observa a assessora do ISA.
Ela aponta que a instalação dos projetos de mineração em áreas de assentamentos vão representar apenas o início de grandes empreendimentos na Amazônia, que serão seguidos de obras de infraestrutura, como rodovias e portos, além de abrir caminho e facilitar a instalação de hidrelétricas. A assessora reconhece que intervenções pontuais em assentamentos possam ser discutidas, quando se trata de exceção de obra de interesse público. “A área cedida a um assentado para atividade de produção rural requer contrapartidas do ponto de vista da consolidação. O que se pretende com a Instrução Normativa vai na contramão disso. Estamos falando de empreendimentos privados”.
Ouro em áreas de assentamento
A reportagem do InfoAmazonia cruzou dados dos requerimentos minerários registrados na ANM com os limites dos projetos de assentamentos disponibilizados no site do Incra. São 20.353 requerimentos minerários ativos em áreas de assentamentos, em diferentes fases do processo. A maioria dos pedidos, mais de 4,5 mil, é para extração de ouro.
Só na Amazônia, são 10.806 requerimentos em 1.480 assentamentos de reforma agrária.
Grandes mineradoras, como Vale, Belo Sun e Nexxa, pediram à agência nacional o direito de explorar minério em terras delimitadas para assentamentos. Sem regras claras sobre a situação, a maioria desses processos enfrentava dificuldades para avançar, já que a exploração do subsolo pressupõe outorga dos donos ou ocupantes dessas áreas.
A Belo Sun, que pretende instalar o maior projeto de mineração a céu aberto do Brasil, tem 83 requerimentos para extrair ouro na região conhecida como Volta Grande do Xingu. Mais da metade deste projeto (44 requerimentos) é para explorar áreas onde já há assentamentos. Outros 11 requerimentos da mineradora incidem em terras indígenas.
Em 30 de dezembro, a Divisão de Pesquisa e Recursos Minerais da ANM no Pará aprovou relatório de pesquisa da Belo Sun na área do assentamento Ressaca, no Pará, destacando a cifra investida no projeto, 33,19 milhões de dólares, e a geração de 500 empregos: “Há que se levar em conta também que esse empreendimento contribuirá para recuperação do grande passivo ambiental causado por garimpeiros que há décadas se instalaram na região, assim como também a melhoria da qualidade de vida e indicadores sociais local e regional”, destacam os técnicos, sem citar que o requerimento está situado em área de assentamento da reforma agrária e o que acontecerá com os assentados do projeto Ressaca.
Nas negociações com o Incra, a empresa comprou uma fazenda no Mato Grosso, mais de 1,5 mil km distante da Volta Grande, mas não há informações se as famílias serão reassentadas neste local.
Parte do projeto da Belo Sun, em Senador José Porfírio (PA), está dentro de área desapropriada em 2001 para implantação de Projeto de Assentamento Ressaca
Segundo o levantamento do InfoAmazonia, a mineradora Vale tem 237 pedidos minerários para ouro, cobre, níquel, ferro, manganês, entre outros, em assentamentos. A Nexxa Recursos, controlada pelo grupo Votorantim e que explora cobre, zinco e ouro, tem 411 requerimentos em assentamentos.
Em 2021, a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) aprovou R$ 115 milhões em aportes para execução do projeto de ampliação da capacidade de produção de minério da Nexxa no município de Aripuanã, no Mato Grosso, onde a mineradora tem pedidos no assentamento Medalha Milagrosa, criado em 2007.
A norma também poderá acelerar os planos do governo federal para legalizar garimpos que operam irregularmente em áreas de assentamentos da Amazônia, como os que voltaram a operar na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, reconhecida como área de desenvolvimento sustentável pelo Incra em 2004 e onde 19 famílias estão assentadas.
Depois de 14 anos fechados, os garimpos retomaram as atividades na região em 2019 e agora estão a um passo de se legalizarem com a norma. Os garimpos nessa região foram desativados em 2004, após intensos conflitos fundiários na região que é cercada pelas terras indígenas Cachoeira Seca e Xipaya, na bacia do rio Xingu.
O Incra informou ao InfoAmazonia que a negociação direta com o assentado ocorrerá somente com “beneficiário titulado ou proprietário do lote impactado, com a prévia anuência do Incra”.
Segundo o órgão, o objetivo da Instrução Normativa é “orientar procedimentos internos e processuais de anuência do uso de áreas em assentamentos do Incra para atividade ou empreendimento minerário, de energia e de infraestrutura”. Questionado sobre a consulta pública, o Incra disse apenas que “os extratos dos instrumentos de anuência concedidos serão disponibilizados no portal do Incra para consulta”.
Questionada pela reportagem, a Belo Sun afirmou, em nota, que o contrato firmado com o Incra para desocupar o assentamento Ressaca e a Gleba Ituna “resolve uma sobreposição entre uma pequena porção de terra do Incra e a área que será afetada pelas operações do Projeto Volta Grande”. A empresa não se posicionou sobre os questionamentos da legalidade do negócio (leia a nota na íntegra aqui).
Fonte: InfoAmazônia
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