Manter a atenção e ter sempre um pé atrás com alegações pouco precisas e/ou suspeitas parece ser a dica mais importante para não acabar comprando gato por lebre, recomendam especialistas
“É mais do que propaganda enganosa”, indigna-se Marcos Felipe Falcão, professor do Departamento de Administração da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). “Porque não sou só eu, como consumidor, que está sendo lesado. São todos os habitantes da Terra. Mesmo sem querer, eu acabo financiando empresas que estão prejudicando o planeta”, continua buscando contextualizar o que torna a prática do greenwashing tão problemática. Junto com outros professores da UFRPE e o aluno de mestrado Sebastião de Freitas Netto – o idealizador da empreitada –, Marcos é um dos autores de uma meta-análise que mergulhou em dezenas de artigos acadêmicos sobre greenwashing para sistematizar o conhecimento a seu respeito.
Traduzido para o português às vezes como “maquiagem verde”, o greenwashing é uma série de estratégias adotadas por empresas para tentar construir uma imagem favorável para seus produtos e serviços alegando que fazem mais pelo meio ambiente do que realmente fazem – muitas vezes com o objetivo consciente de desviar a atenção dos consumidores de práticas nem sempre virtuosas.
Até onde se sabe, o termo estreou no jargão ambientalista em 1986, num ensaio do ativista norte-americano Jay Westervelt. No texto, ele criticava um hotel onde ficou durante uma viagem para Samoa que apelava à consciência ecológica dos hóspedes para que eles evitassem trocar suas toalhas com frequência sob a alegação de que isso levaria à economia de água. Além de resultados ambientais pífios no contexto de uma operação hoteleira de grande porte, os maiores beneficiados seriam os donos do hotel, que reduziriam seus custos. A hipocrisia estarreceu o ambientalista.
Consumidores estão mais exigentes
Passados quase 40 anos, a tentação de usar posturas ambientais fingidas como argumento de vendas está ficando cada vez maior. “Temos visto que os consumidores estão ficando cada vez mais exigentes [em relação às práticas socioambientais das empresas]”, opina o especialista em conteúdos do Instituto Akatu, Bruno Yamanaka. Um atrás do outro, diversos estudos corroboram a percepção de Bruno.
Um levantamento conduzido pela Nielsen Media Research em 2015 revelou que 66% dos consumidores em nível global topariam pagar mais por produtos ambientalmente amigáveis. Já uma pesquisa de 2017 da SPC Brasil mostrou que 71% dos entrevistados preferiam comprar de empresas comprometidas com ações socioambientais.
Junto com a consultoria GlobeScan, o próprio Akatu vem coletando informações sobre o peso das questões socioambientais para os consumidores brasileiros por meio da pesquisa Vida Saudável e Sustentável. De acordo com a edição de 2021, mais de 86% dos brasileiros querem reduzir seu impacto ambiental pessoal – mais do que a média global, de 73% – e 60% estão dispostos a pagar mais por produtos de marcas que trabalham para melhorar a sociedade e o meio ambiente.
Problema vem aumentando
Mais consumidores e preços maiores. Não chega a surpreender, portanto, que um número expressivo de empresas cedam à tentação de “maquiar” seus produtos.
Segundo o relatório “Mentira Verde”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) cerca de três anos atrás, um levantamento avaliou 509 produtos dos segmentos de higiene e cosméticos, limpeza e utilidades domésticas, vendidos em supermercados do Rio e São Paulo, cujos rótulos tinham pelo menos uma alegação socioambiental. Praticamente metade deles (48%) praticavam alguma forma de greenwashing – na categoria utilidades domésticas, o problema era mais prevalente, sendo encontrado em três de cada quatro produtos pesquisados.
O problema é mundial. No começo do ano passado a Comissão Europeia conduziu uma varredura em websites de empresas de diversos ramos para analisar alegações ambientais desses negócios. Em 42% dos casos, as informações foram consideradas, exageradas, falsas ou enganosas.
“O problema tem uma dimensão considerável e vem aumentando e as respostas para solucioná-lo são muito tímidas diante da expectativa dos consumidores”, diz o coordenador de consumo sustentável do Idec, Rafael Arantes, destacando que nem sempre as marcas estão simplesmente mentindo para os consumidores.
O problema mais frequente encontrado pela pesquisa do Idec foi a falta de comprovação das alegações feitas nos rótulos dos produtos. “Ainda é tímido o que as empresas fazem em termos de demonstrar que suas práticas são sustentáveis. Sem isso, acaba sendo muito mais uma alegação mercadológica do que uma garantia de que seus produtos são, de fato, sustentáveis”, completa.
Falta orientação dos governos
Um dos problemas é que ainda falta uma orientação mais clara do que as empresas podem e do que elas não podem fazer. “Embora o Código de Defesa do Consumidor proíba a propaganda enganosa, ele é genérico. Precisamos de uma legislação específica sobre [alegações ambientais]. Essa é uma discussão longa e estamos muito atrasados nesse debate”, diz o professor Marcos Falcão, acrescentando que mais de um projeto de lei nesse sentido já foi apresentado no Congresso, mas, até agora, nenhum deles avançou.
A falta de uma instância que regulamente a comunicação ambiental das empresas também foi destacada por Rafael. “Realmente não existe um monitoramento ou endereçamento [da prática do greenwashing] pelo governo brasileiro”, ressalta.
Mesmo fora do Brasil, o entendimento sobre a questão ainda é incipiente. Não faz nem um ano que a Autoridade de Competição e Mercados (CMA, na sigla original) do Reino Unido publicou seu “Guidance on Environmental Claims on Goods and Services” (“Guia Sobre Alegações Ambientais para Bens e Serviços”, em tradução livre), codificando uma série de princípios que, se não eliminam, reduzem “a probabilidade de que as empresas enganem seus consumidores”.
Por meio da rede One Planet, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um grupo de trabalho que vem focando em definir diretrizes de comunicação com os consumidores para produtos e serviços sustentáveis.
Lista ajuda a identificar o greenwashing
Uma das maiores dificuldades de lidar com greenwashing quando se está de frente para uma gôndola de supermercado é a natureza labiríntica do problema.
Entre 2007 e 2010, a consultoria canadense TerraChoice (posteriormente absorvida pela UL Solutions) elaborou uma lista dos “Sete Pecados do Greenwashing”, criando uma tipologia das principais práticas de greenwashing. A lista se tornou uma espécie de referência informal para quem se interessa pelo assunto e ajuda a identificar melhor práticas problemáticas:
1 – Custo camuflado: quando se sugere que um produto seja “verde” com base num conjunto restrito de atributos, sem levar em conta outras questões igualmente ou até mais relevantes.
Exemplo: Fabricantes de papel ressaltam que seu produto vem de florestas plantadas, mas não mencionam sobre o uso de químicos agressivos no processo de branqueamento.
2 – Falta de prova: é cometido quando uma empresa não oferece provas facilmente acessíveis para dar suporte às suas alegações ambientais.
Exemplo: Vários produtos alegam ter material reciclado em sua composição sem fornecer evidências.
3 – Imprecisão: acontece quando uma declaração ambiental é mal definida ou vaga a ponto que seu real significado não ficar claro para os consumidores.
Exemplo: Produtos que alegam serem “naturais” ou “verdes” sem explicar o que querem dizer com isso.
4 – Irrelevância: é a falta cometida por empresas que fazem alegações ambientais que não têm qualquer importância por já serem práticas obrigatórias ou comuns.
Exemplo: Desodorantes ou aerossóis que se declaram “livres de CFCs” mesmo com o uso de CFCs sendo proibido há vários anos.
5 – Menor de dois males: quando um exemplar particular de uma categoria de produtos intrinsecamente insustentáveis é enquadrado como “menos nocivo”.
Exemplo: Veículos utilitários esportivos (SUVs) que anunciam ser menos “beberrões” que outros carros dessa classe.
6 – Mentira: quando uma alegação ambiental é simplesmente inventada.
Exemplo: Fabricantes de carros envolvidos no “dieselgate”.
7 – Culto a falsos rótulos: surge quando o rótulo de um produto inclui palavras ou imagens que dão a impressão de que ele conta com certificações que não possui de fato.
Exemplos: Empresas que declaram não fazer testes com animais e incluem imagens parecidas com os selos de certificadoras.
Se acabasse aí já seria bastante coisa. Mas essa, segundo o aluno de mestrado Sebastião Netto, é só a ponta do proverbial iceberg. Desenvolvida como parte de sua dissertação de mestrado pela UFRPE, a meta-análise da literatura científica sobre greenwashing buscou refinar ainda mais a classificação do fenômeno.
Segundo ele, a forma mais comum é a maquiagem dos produtos e serviços por meio de campanhas publicitárias ou rótulos que contenham alegações ou tenham sido executados carregados de imagens e simbologias associadas à causa ambiental. “No nível do produto, temos essa questão que são os rótulos e comunicações verdinhas, cheios de imagens e sons que remetem à natureza, e aqueles bordões que dizem que aquele produto é ambientalmente amigável sem dizer o porquê”, resume.
Há, no entanto, um segundo nível de complexidade, que é quando as empresas levam o greenwashing para suas políticas e práticas empresariais. “Quando vai para o nível da empresa, fica mais difícil, porque exige ver os relatórios e ter o conhecimento técnico multidisciplinar para realmente conseguir entender”, continua.
“As empresas exploram o desconhecimento dos consumidores. Elas colocam o dado positivo e o consumidor acaba só vendo uma parte”, diz Ana Regina Bezerra Ribeiro, que foi coorientadora de Sebastião e que também assina o artigo.
Fique atento e tenha um pé atrás
Manter a atenção e ter sempre um pé atrás com alegações pouco precisas e/ou suspeitas parece ser a dica mais importante para não acabar comprando gato por lebre. Uma dose de ceticismo é a principal recomendação.
“Claro que o ideal seria ter toda a informação relevante à disposição, mas é importante o consumidor ter um papel ativo e refletir sobre o que está comprando”, diz Bruno Yamanaka, aconselhando desconfiar especialmente do uso de linguagem pouco clara e de bordões.
O representante do Akatu também aconselha buscar a presença de certificações reconhecidas na hora de comprar e pesquisar sempre que se deparar com um selo pouco familiar no rótulo de algum produto. “Pode parecer difícil, mas quando a gente adquire o hábito, começa a ficar mais atento”, diz. “Tem uma série de selos que têm credibilidade e respaldo, como os selos de produção orgânica e de eficiência energética”, afirma Rafael, do Idec.
Outro caminho para tentar evitar o greenwashing é acionar os canais dos serviços de atendimento ao consumidor dos fabricantes sempre que se deparar com um produto com alegações difíceis de comprovar. “Foi o que a gente fez [na pesquisa de 2019]”, informa, acrescentando que isso – em tempos de ESG – também é uma forma de pressionar as empresas a melhorarem sua transparência. “É uma forma bastante clara de cobrar as empresas”, afirma.
Startup quer ajudar nessa luta
Tudo isso exige tempo e paciência do consumidor. Mas flagrar casos de greenwashing pode ficar mais fácil. Um dos objetivos do trabalho conduzido pelos pesquisadores da UFRPE é justamente desenvolver uma metodologia que permita identificar práticas problemáticas.
Chamada de Greenwashing Accusation Score, a ideia foi uma das selecionadas pelo Programa Centelha para receber financiamento e criar uma startup que vai avaliar a comunicação das empresas e identificar situações problemáticas. “Não seria uma ferramenta punitiva, mas de diagnóstico, para que você saiba qual a situação de sua empresa em termos de processos e produtos”, diz a professora Ana.
Marcos Falcão admite que ainda falta chão para tirar a ideia do papel e que o grupo vem trabalhando com alunos do curso de computação para desenvolver um algoritmo capaz de automatizar o processo. “Ainda estamos fazendo testes para lançar um protótipo. Temos uns dois anos de desenvolvimento pela frente”, admite.
Se a empreitada tiver sucesso, será um grande passo adiante para nivelar o mercado a favor das empresas que realmente levam a sustentabilidade a sério e investem para tornar seus produtos mais verdes de fato. “Precisamos pegar os caras de pau e proteger os mocinhos”, arremata Sebastião.
Fonte: Um Só Planeta
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