A Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, aguarda desde a década de 1980 por demarcação, sendo protegida por apenas uma portaria de restrição de uso que a Fundação Nacional do Índio (Funai) renova a cada seis meses, quando está prestes a expirar. Enquanto isso, o território é cada vez mais pressionado. Na TI Piripkura vivem dois indígenas – Baita e Tamanduá -, que optaram pelo isolamento voluntário e estão em condições de ameaça e vulnerabilidade devido à presença de fazendeiros e madeireiros que cercam o território.
A última renovação da portaria foi assinada pela Funai no dia 17 de março deste ano e publicada no Diário Oficial da União (DOU) no dia 4 de abril. A portaria vale apenas até o dia 16 de setembro. No entanto, existe uma decisão da Justiça Federal em Mato Grosso do dia 25 de março que determina que a Funai renove a portaria até a conclusão da Ação Civil Pública do Ministério Público Federal (MT) que pede a demarcação em definitivo da TI Piripkura. Ou seja, a decisão não dá prazo para a vigência da portaria.
“Isso (renovação por apenas seis meses) tem funcionado como grande incentivo à ocupação ilegal e ao aumento da degradação do território”, diz o procurador Ricardo Pael, do Ministério Público Federal em Mato Grosso. Segundo ele, a situação se agrava com as declarações do presidente Jair Bolsonaro (PL), que “propala a quem quiser ouvir que não demarcará um centímetro de terra indígena”.
Procurada ao longo de 12 dias pela reportagem para saber se vai cumprir a decisão judicial ou recorrer, a Funai não respondeu.
“A prorrogação até o término da ação judicial, por não ter um prazo certo, minimiza as expectativas de ocupação do território por não índios e, sim, confere mais segurança aos indígenas”, avalia o procurador Ricardo Pael.
Para Angela Kaxuyana, diretora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o governo brasileiro nega o direito de viver desses povos indígenas. “O risco é de que muitos povos desapareçam. Tem algumas situações em que há poucos indivíduos, como é o caso dos Piripkura, que podem ser dizimados, extintos, assassinados. Esse é o risco real”, denuncia a liderança indígena.
O juiz Frederico Pereira Martins, da Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Juína, no Mato Grosso, diz, em sua decisão que “as provas dos autos são fartas em demonstrar sério e grave risco de degradação ambiental e ocupação irregular pela qual passa a TI Piripkura, de modo que a não renovação da Portaria da FUNAI, somada a sua inércia no processo demarcatório, demonstraria um relaxamento na proteção indigenista e ambiental, de modo a incentivar que terceiros adentrem à área novamente”. O magistrado determinou multa diária de R$ 500 para o caso de a Funai não cumprir a decisão.
Enquanto as autoridades não se resolvem, Baita e Tamanduá, os dois últimos isolados do território Piripkura, ficam à mercê da sorte e dos interesses econômicos de grupos ligados ao agronegócio em Mato Grosso, com trânsito fácil junto ao governo Bolsonaro. A liderança Angela Kaxuyana reitera que a demarcação é a garantia de vida dessas pessoas.
“Quando a gente fala de povos indígenas, as pessoas olham como se fossem coisas. A gente está falando de seres humanos. Então, o estado brasileiro está prevaricando sobre o que é sua obrigação em defender os territórios indígenas, especialmente na questão dos isolados”, reforça Angela. A Coiab realiza desde agosto de 2021 uma campanha de mobilização em defesa dos isolados, chamada #isoladosoudizimados.
A TI Piripkura conta com apenas três sobreviventes da etnia, sendo que dois deles (Baita e Tamanduá) vivem em isolamento voluntário e resistem há décadas aos ataques dos invasores. Já Rita Piripkura, tia de Baita e irmã de Tamanduá, encontra-se atualmente em uma aldeia do povo Karipuna, localizada em Rondônia. Em janeiro, a Amazônia Real entrevistou Rita para saber da situação dos parentes, antes da atual renovação da portaria do território. Eles também tiveram sua história contada no filme “Piripkura”, de 2017, dirigido por Mariana Oliva.
Desde 2013 o Ministério Público Federal em Mato Grosso move a Ação Civil Pública para demarcar o território Piripkura em definitivo. Em 2008 foi publicada a primeira portaria de restrição de uso e, desde então, o MPF já fez pelo menos quatro pedidos de atualização do documento. O último ocorreu em 17 de março, quando venceu novamente a portaria, e a Funai atendeu ao pedido do MPF, ao publicar o documento no DOU, 19 dias depois, com data retroativa.
Liderança diz que Funai desrespeita decisões
Apesar de reconhecer a importância da decisão, Angela Kaxuyana vê a determinação da Justiça Federal com ceticismo, levando em conta que a Funai tem desrespeitado constantemente as decisões judiciais.
“Isso não garante, infelizmente, o cumprimento, porque a Funai não tem cumprido várias decisões judiciais, várias recomendações. E me parece que tem ficado nisso: sai a recomendação, a Funai é punida, paga a multa, mas efetivamente, para os territórios indígenas, isso não tem efeito prático. Mas claro que a recomendação de reforçar que seis meses não são suficientes [para demarcar] é extremamente importante. Isso faz com que tenhamos uma esperança de que as ações da Funai sejam de acordo com o que a lei assegura”, ponderou a liderança da Coiab.
O indigenista Elias Bigio, da Operação Amazônia Nativa (Opan), por sua vez, avalia que a decisão dá sinais de que Justiça, de alguma forma, compreendeu a gravidade da situação dos dois Piripkura isolados e que podem ser mortos a qualquer momento devido à constante interação com os invasores de suas terras.
“A decisão do juiz fala da vulnerabilidade dos indígenas e de certa forma é um freio para que os invasores não fiquem tão alvoroçados a continuar a invadir. No entanto, a Funai tem a autonomia ou não de cumprir essa decisão. Existe a multa diária sim [de R$ 500]. Mas para que a multa comece a ser aplicada, o órgão precisa ser notificado, coisa que não sabemos se aconteceu. Então, para todos efeitos, até a publicação de uma nova portaria, fica valendo a atual, do último dia 4 de abril”, observa Bigio, ex-coordenador de índios isolados e de recente contato da Funai (2006-2011).
Atualmente, há quatro territórios onde vivem povos isolados que dependem da renovação da portaria de restrição de uso, um mecanismo de proteção territorial enquanto a Funai não faz a demarcação. Somente com a vigência desta portaria, mesmo que no papel, é que o território tem respaldo para que não ocorram invasões, embora a realidade aponte o contrário.
Além da Piripkura, as outras TIs são: Ituna Itatá, no Pará; Pirititi, em Roraima; e Jacareúba/Katawaxi, no Amazonas. Nos últimos meses, a Funai vem dificultando ou atrasando a renovação das portarias, facilitando a invasão das terras indígenas que já estão impactadas e pressionadas, como o caso de Ituna Itatá.
Para Leonardo Lenin, indigenista do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), as renovações de apenas seis meses das portarias de restrição de uso envolvendo os territórios da Amazônia fragilizam um instrumento que em sua natureza já é muito frágil.
“Apesar de ser uma política de povos isolados importante, com objetivo de demarcar os territórios, a restrição de uso é um ato discricionário, ou seja, sua realização pode ser feita pela oportunidade e conveniência administrativa de quem está à frente da Funai. E não é nenhuma novidade que esse governo [Bolsonaro] tem ojeriza aos povos indígenas”, pontua.
Ele destaca que, historicamente, as restrições de uso sempre foram renovadas por um período de um ano, podendo, em muitos casos, chegar a até quatro anos. “Todo esse tempo é necessário, pois os estudos de demarcação são complexos, envolvem viagens, contratação de pessoas, estudos historiográficos e etnográficos da região. Envolve toda uma logística”.
Leonardo Lenin entende que as renovações curtas estão alinhadas para atender aos interesses econômicos de “grupos empresariais e do agronegócio, além de criar uma insegurança jurídica que dá segurança para os antigos invasores, além dos novos, que se sentem autorizados pelo governo a adentrar nos territórios indígenas”.
Desmatamento e invasões
Desde o início do governo Bolsonaro, as invasões aos territórios dos povos isolados aumentaram drasticamente. Um dossiê do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), em parceria com a Coiab, mostra que, só na TI Piripkura, o desmatamento aumentou mais de 27 mil por cento nos últimos dois anos, chegando a 2.400 hectares desmatados na TI.
Antes de a portaria ser renovada, os invasores tentaram vender, via leilão, 12 mil hectares da fazenda Concisa, que está sobreposta à TI Piripkura. O objetivo da venda era quitar dívidas na Justiça. A situação foi denunciada pela Opi e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). E não se trata de um caso isolado. Dados do Sistema de Cadastro Ambiental Rural (CAR) revelam 131.870 hectares de propriedades ilegais cadastradas no território Piripkura. As informações constam no Boletim Técnico Bimestral Sirad-Isolados (Sirad-I), produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), nos primeiros dois meses de 2022.
No momento, a situação mais dramática tem sido a da TI Piripiti, em Roraima, cuja portaria de restrição vence em julho de 2022. O tempo curto de renovação deu confiança aos invasores. Prova disso é que o Sirad – I já detectou sete novos pontos ilegais de desmatamento a menos de dois quilômetros da TI, no período de novembro de 2021 a janeiro de 2022. Um desses pontos, conforme o ISA, “já invadiu o território” e um ramal, que conta com quase oito quilômetros de extensão, e “está a uma distância de 0,5 quilômetro de ultrapassar os limites do território”, aponta o relatório.
A Opi, por sua vez, aponta que as maiores pressões na TI vem pelo desmatamento e retirada de madeiras. A presença de indígenas isolados na região é relatada desde os anos 1980, pelos Waimiri- Atroari, que é um grupo indígena histórico em Roraima e que possui uma TI vizinha ao território Pirititi. A primeira portaria para resguardar esses indígenas foi publicada em 2012 pela Funai e vinha sendo renovada a cada três anos desde então. Mas a última foi renovada por apenas seis meses, tempo considerado insuficiente por indígenas e pesquisadores.
Já a TI Ituna Itatá, nos municípios de Senador Porfírio e Altamira, região do Médio Rio Xingu, no Pará, é pressionada pela grilagem vinda de cidades como Altamira e Anapú, conforme o dossiê da Opi. Desde 2018 os monitoramentos já identificaram avanço do desmatamento, além da abertura de estradas, bem como registros irregulares do CAR. Essa TI teve a sua portaria de restrição de uso renovada em 1º de fevereiro deste ano, depois de muita pressão de organizações indígenas e por decisão judicial.
“A Funai negou a existência desses indígenas, apesar da expedição, de uma equipe da própria Funai, encontrar vestígios contundentes, no segundo semestre do ano passado. Em função de uma determinação da Justiça Federal do Pará, a Funai foi obrigada a publicar a portaria. O Ministério Público solicitou que ela fosse por um tempo maior e eles publicaram por seis meses”, detalha Leonardo Lenin, da Opi.
Na TI Jacareúba/Katawaxi, situada entre os municípios de Lábrea e Canutama, no sul do Amazonas, um grande problema, além dos ataques dos invasores, é a pavimentação da BR-319, que atinge drasticamente os modos de vida do povo Katawixi, principalmente no uso dos recursos da floresta amazônica. A última restrição de uso dessa TI ocorreu em primeiro de dezembro de 2017, com prorrogação de quatro anos. Ela venceu em dezembro passado e, por enquanto, não foi revista pela Funai.
A portaria de restrição de uso é uma ferramenta jurídica criada pelo Decreto 1.775 de 1996. Em tese, ela serve para impedir a entrada e circulação de pessoas estranhas no local, para que todos os estudos de demarcação de uma determinada TI sejam realizados por um Grupo de Trabalho (GT) da Funai, que precisa localizar e monitorar os indígenas isolados.
Fonte: Amazônia Real
Comentários