Sem investimentos, empresa pública pode abrir mão de seu papel social e virar prestadora de serviços ao agronegócio
A exemplo de outras empresas públicas, entre elas a Petrobras, a Embrapa está sob ataque. Além da redução brutal de verbas para a pesquisa operada pelo governo Bolsonaro, um projeto chamado Transforma Embrapa ameaça transformá-la em prestadora praticamente exclusiva de serviços ao agronegócio. É o maior risco que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária corre em seus 49 anos de história. O mais grave, porém, é que, para a população urbana, Embrapa é apenas uma sigla de significado obscuro. Pouco ou nada sabe de como a Embrapa está atrás de tudo que chega à mesa dos brasileiros. Da qualidade e da quantidade dos alimentos.
Nesta entrevista, o pesquisador João Carlos Costa Gomes, da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas (RS), joga luz sobre o papel social da empresa pública, a defesa do melhoramento das culturas, da soberania alimentar e da biodiversidade. Com 46 anos de atuação na linha de frente das pesquisas, doutor em agroecologia e desenvolvimento sustentável, Costa Gomes relata que a Embrapa é dona de um patrimônio de valor incalculável, inclusive de um dos maiores bancos genéticos do mundo, e o perigo que agora enfrenta. Confira:
Brasil de Fato – O que seria do Brasil sem a Embrapa?
Costa Gomes – A Embrapa é detentora de um dos maiores bancos genéticos do mundo. Para se ter uma ideia, apenas aqui em Pelotas chegamos a ter mais de 600 variedades de abóboras, mais de 400 de pimenta, quase 500 de batata, 270 de cebola, quase 70 de milho varietal – não é milho híbrido – variedades crioulas melhoradas pelos agricultores ao longo da sua relação com a natureza, cerca de 800 de feijão. Imagina o valor desse banco genético. E falo apenas de quatro ou cinco espécies de vegetais.
A etnia Krahô perdeu um milho que cultivava havia séculos e foi recuperá-lo na Embrapa
Se a gente pegar todo o banco genético da Embrapa seu valor talvez seja incalculável em termos de resgate de cultura, de hábitos alimentares. Dou um exemplo de uma contribuição da Embrapa: a tribo Krahô tinha um milho que utilizava e perdeu por alguma razão para, muitos anos depois, encontrar o mesmo material em um banco genético no Centro Nacional de Recursos Genéticos, em Brasília. E a Embrapa devolveu essas sementes para os Krahô que conseguiram voltar a ter de novo aquela variedade de milho que fazia parte da sua cultura, de seu imaginário, de sua estratégia de relação com a natureza.
Se a gente pegar tudo o que temos em termos de fruticultura tropical, de frutas nativas aqui no Sul do Brasil, de culturas alimentares, muitas delas exóticas… temos um banco de germoplasma de fruteiras de clima temperado – pêssego, ameixa, nectarina com mais de 600 materiais – que tem valor incalculável em termos até de possibilidade de uma recombinação genética para fazer face às mudanças climáticas que estão batendo na nossa porta.
Se não tem esse banco, como o geneticista buscará novos materiais que se adaptem à novas situações? Este é o grande patrimônio da Embrapa e é propriedade do povo brasileiro. Houve uma construção sócio-histórica desde que o homem deixou de ser nômade e passou a cultivar e que ele vem melhorando, selecionando e nos trouxe até aqui. É um legado de seleção por cor, aparência, gosto, finalidade. E, de repente, parece que os próprios agricultores estão sendo condenados a pagar pelo trabalho que tiveram de desenvolver esses materiais. A Embrapa, como empresa de estado, teria de valorizar esses conhecimentos, essa relação com as comunidades para poder, em determinadas situações, oferecer essas alternativas em termos de segurança alimentar, preservação da biodiversidade, da cultura…
Toda essa questão da sustentabilidade e da defesa ambiental estão na proposta da Embrapa. Se a empresa for privatizada, ou passar a trabalhar como uma espécie de prestadora de serviços das grandes empresas, serão elas que vão ficar responsáveis pela defesa ambiental e a sustentabilidade?
Não acredito. Os exemplos que temos de biomas conservados sempre tiveram a participação direta dos atores sociais, da população que vive nesses ambientes. Não são os ribeirinhos que acabam com a pesca, não são os indígenas que degradam a Amazônia. Os processos de monocultivos e de intensificação tecnológica, às vezes em áreas impróprias, é que são os grandes causadores dos impactos ambientais.
Quem paga a banda escolhe a música
Tem uma frase que se usa muito no interior, sou filho de agricultores familiares, que diz o seguinte: “Quem paga a banda escolhe a música”. Então, não precisa privatizar a empresa, pode privatizar os projetos. Se não tem grana mais para subsidiar um plano de apoio à reforma agrária – como nós já trabalhamos aqui na Embrapa, em Pelotas, um projeto junto com ao INCRA, de colocar a tecnologia da Embrapa dentro dos assentamentos de reforma agrária para melhorar sua capacidade produtiva – se não tiver política pública que trate dessas questões, o que vai sobrar? Vai sobrar a venda de projetos para quem pode pagar por eles.
E aí quem paga a banda escolhe a música. Quem paga o projeto determina que tipo de tema será pesquisado, não é? Este é um grande risco que temos. E mesmo quando se trata de agricultura empresarial, a Embrapa tem, como empresa pública, um papel relevante na definição de outras rotas de insumos para diminuir a dependência da nossa agricultura de insumos externos. Vejam o que está acontecendo agora com a questão dos fertilizantes. Temos uma dependência de quase 90% do potássio que se usa na agricultura. Não temos matéria prima ou temos muito pouca e nós dependemos de insumos importados.
Se a gente não tem a matéria prima, a rota tecnológica e nem a logística qual seria o nosso papel? Pesquisar sistemas de produção que abdicassem desse modelo intensivo de uso de insumos sobre os quais a gente não tem domínio e verificar estratégias que pudessem tornar esse sistema de produção sustentável. Então, tem muita coisa que a velha e boa agronomia já fez e que foi deixada de lado: pousio, rotação de cultura, quebra vento, controle biológico de pragas, cobertura verde que vai incorporar a matéria orgânica e sequestrar carbono no solo. Tem muitas alternativas que se praticaram no passado e das quais esse modelo de agricultura abdicou. Abriu mão delas para trabalhar num modelo que depende quase que 100% de insumos sobre os quais os agricultores ou os produtores rurais não tem controle.
A chegada destes insumos está sendo afetada pela questão da guerra?
Atualmente principalmente pela guerra. Mas a dependência não é fato recente.
O Brasil importa principalmente de onde?
Grande parte vem da China, da Rússia, do Canadá. Não são muitas as fontes desses nutrientes. Por outro lado, tem alguns exemplos de empresários da agricultura que tem tentado inovar, usando o controle biológico de pragas na cultura da soja e da cana-de-açúcar. Brasil afora tem muitas experiências. Como o uso de agrominerais em substituição aos adubos sintéticos.
Tem várias estratégias possíveis para diminuir uma parte dessa necessidade de insumos externos. Fixação biológica de nitrogênio, por exemplo. Vários pesquisadores da Embrapa trabalham esse tema. Mesmo na agricultura convencional, esta agricultura de commodities, de exportação, do agronegócio, a Embrapa teria um papel para diminuir custos de produção, de manter rentabilidade e de tornar os sistemas de produção mais sustentáveis.
Se colocamos todos os ovos na mesma cesta quando a cesta virar vamos ficar sem nada
Temos a nossa âncora verde, digamos assim, em menos do que 10 grandes cultivos ou criações. E vovó já dizia que se a gente colocar todos os ovos numa única cesta, na hora que a cesta virar vamos ficar sem ovos, não é? E vimos aí, em alguns anos, a peste suína, a aftosa no gado de corte, a gripe aviária na avicultura e a seca na soja. Foram quatro incidências em quatro grandes commodities. Se todas acontecessem ao mesmo tempo, num curto período, quebrariam a agricultura brasileira. Ou causariam um grande dano, não é? Isto mostra a vulnerabilidade que determinado sistema de produção, quando depende de uma base genética muito estreita ou de poucos insumos, fica vulnerável.
Por isso, quando a gente fala em agroecologia, em diversificação, em ciclagem de nutrientes, em sistemas biodiversos, em aumento da biodiversidade no sistema, é para poder produzir matéria-prima, maior matéria orgânica dentro do próprio sistema de produção. Isto é possível na grande agricultura? A grande escala, não é. Agora, na agricultura familiar, é sim. Temos muitos exemplos que mostram a viabilidade desse modelo.
O que é o Transforma Embrapa, proposta que está se discutindo agora?
O discurso que vem com o Transforma Embrapa é que é uma adequação da Embrapa aos novos tempos. Tempo que já não é mais o da tecnologia como determinante mas do conhecimento, da informação. E com a possibilidade de buscar uma conexão maior com o mercado. Não entrei a fundo no estudo dos documentos e também não houve uma motivação de maneira que se gerasse uma ampla discussão interna.
Até causa estranheza o fato do Transforma Embrapa estar sendo patrocinado por algumas organizações (privadas) da agricultura brasileira. Que contrataram uma fundação para fazer uma consultoria e um estudo sobre uma transformação na Embrapa da qual a maioria dos empregados não tem conhecimento e não estão participando.
Desde meados da década passada, estamos com recursos cada vez mais escassos
O que se sabe, é que a CNA, a Confederação Nacional de Agricultura e o SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural, vinculado à CNA) contrataram uma fundação para fazer esse estudo. E com o discurso de que tem que enxugar, fazer economia, racionalizar recursos. Quando estamos, desde 2016 com recursos cada vez mais escassos. Não tem mais o que economizar. Não temos mais praticamente recursos para botar a máquina a operar. Se não fossem esses dois anos de pandemia, quando boa parte dos empregados da Embrapa ficaram em teletrabalho, a falta de recursos para renovação de frota, até para consertar um pneu do carro para que ele possa andar, isso já teria aparecido há muito mais tempo.
Hoje, a gente está com um número muito reduzido de projetos de pesquisa. Laboratórios e campos experimentais ociosos. Do projeto é por onde vem o recurso. À medida em que vai se cortando o recurso operacional, que é aquele que banca viagem, instalação de pesquisa, movimentação da máquina, fica só o recurso fixo, da folha salarial. Daqui há pouco, parece que toda a grana vai apenas para pagamento de salário, quando, na realidade, corta-se o restante e isso acaba tirando a capacidade de trabalho.
É uma técnica que nós temos acompanhado, que vem sendo utilizada em praticamente em todas as estruturas estatais que estão sendo colocadas na mira. Primeiro enfraquece, fragiliza, impede ela de desenvolver seu trabalho com toda a sua potencialidade e depois entrega no colo de presente, né? E temos visto com a Petrobras, com a Eletrobras, com os Correios e tantas outras estruturas. Porque o povo ainda não assumiu a defesa da Embrapa?
Talvez as pessoas, quando sentam para tomar o café da manhã ou para almoçar e jantar, não façam uma conexão entre a comida que está na mesa e o trabalho da Embrapa. Temos milhares de variedades que foram melhoradas e desenvolvidas e elas estão na mesa. Tanto as principais culturas de exportação — soja, milho, e no arroz — quanto mandioca, laranja, feijão, batata, enfim, tudo aquilo que a gente consome no dia a dia.
As pessoas não percebem que atrás daquela comida na mesa está o trabalho da Embrapa
O cidadão comum não conecta a comida que ele consome diariamente com o trabalho feito por nós há décadas. Para fazer o melhoramento genético de um cultivar de feijão são oito a dez anos de trabalho do pesquisador. Para fazer a seleção do material até incorporar alguma qualidade que queira como um feijão com mais proteína ou mais zinco ou um milho bom para a panificação e que possa suprir o problema de quem não pode consumir trigo com glúten, por exemplo. Aqui em Pelotas, temos variedade de feijões ricos em ferro e zinco. Temos variedade de batata doce rica em carotenoides, o que é uma melhoria da capacidade nutritiva desses materiais.
As pessoas não enxergam quando estão comendo uma batata doce biofortificada que nisso tem um trabalho da Embrapa por trás. Ou que certa variedade melhorada tem a capacidade de fortalecer o organismo e prevenir algumas doenças. Talvez a gente não tenha tido habilidade suficiente para colocar essas coisas em evidência. Pode ser também um pouco da formação que predomina nos nossos ambientes acadêmicos. Que tem uma formação como se a ciência tivesse o monopólio sobre o conhecimento válido e que basta para o cientista produzir conhecimento novo. E falta essa conexão com a sociedade. A ciência tem que se conectar com a comunidade e o cientista com a sociedade inteira. Até para poder informar o que se faz e como a sociedade pode se apropriar daquilo que está sendo feito. É um grande desafio.
Soube que o ex-ministro da Agricultura do Temer, Blairo Maggi, travou um pouco esta reestruturação. O que se pode dizer sobre isso?
A tentativa de vinculação com o mercado é crescente nos últimos anos. O período em que tivemos maior abertura para uma empresa inclusiva, com responsabilidade social foi de 2003 para diante. Com políticas públicas. Lembro que, em 2003, quando assumi a chefia dessa unidade de pesquisa aqui em Pelotas, tínhamos recursos de apenas dois ministérios, os da Agricultura e de Ciência e Tecnologia para algum projeto no CNPq. A partir da concertação que a gente começou a fazer, chegamos a ter recursos de 10 ministérios diferentes. Vieram do MDS com o Fome Zero, do MDA com os programas de apoio para a agricultura familiar e reforma agrária, do próprio MCT, do MEC com a formação de jovens estudantes. Ou seja, existiam políticas públicas que permitiam uma visão mais plural e mais democrática.
O mercado de ciência e tecnologia não é um cifrão
Nunca se deixou de trabalhar para as culturas de exportação mas se trabalhava também com um bom aporte de recursos e de pessoas para os processos de segurança alimentar, de valorização da biodiversidade, de diversificação da agricultura, enfim, produção de comida e comida de qualidade, em processos agroecológicos principalmente. Depois de um determinado período, essas políticas deixaram de existir.
Essa coisa de diminuir o tamanho da empresa, de vincular organicamente com o mercado, é recente, de uns dois anos para cá. Tem uma discussão que ninguém faz é que, quando as pessoas falam em mercado, elas enxergam o mercado como um cifrão. E o mercado de ciência e tecnologia não é um cifrão. É a produção de comida. É evitar que os jovens saiam do campo, que eles possam ter uma vida digna quanto agricultores que produzem alimentos de qualidade em uma conexão mais direta do rural com o urbano e vendo o rural também com um espaço não só de produção agrícola. E isso tem acontecido por conta de muitos jovens que não encontram espaço no meio urbano e vão buscar no meio rural um outro estilo de vida. Aí tem atividades relacionadas como o ecoturismo e outros tipos de atividade que surgem no espaço rural e que não são essencialmente agrícolas.
Uma empresa pública de pesquisas tem que estar atenta a esses movimentos que a sociedade produz para poder dar conta, não é? E as perguntas mudam a cada período histórico. A sociedade vai mudando e o papel do estado e das suas instituições também teria que se adaptar às novas circunstancias. É um equívoco pretender que uma empresa pública se vincule exclusivamente a um único segmento de mercado ou do mercado que pode pagar pelo produto que produzimos, que é a tecnologia.
Não é necessariamente uma privatização no sentido duro da palavra mas uma captura por parte de quem contrata a banda e escolhe a música, não é? Aí nós temos dois aspectos. O risco de privatização, que está presente, e o risco dessa captura que tem toda uma maquiagem bonita, essa proposta de modernização que tende a seduzir quem está desavisado. Como enfrentar isso?
Uma coisa que um grupo dos que estamos aqui na Embrapa, em Pelotas, tentamos fazer é uma conexão muito forte com o meio real onde as coisas acontecem. A reciprocidade do relacionamento da instituição pública do estado com as organizações sociais talvez seja a maior fortaleza que a gente tem. É porque tem credibilidade.
Anos atrás, uma liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores nos procurou com uma lista de de 18 demandas. Depois de uma reunião, no final, ela tinha solução para 22 e não 18 demandas. Tinha mais quatro sobre as quais não imaginava que a gente pudesse ter alguma contribuição. E ela disse: “Olha, vim com 18 demandas e estou levando 22 soluções”.
Não estamos fazendo uma pesquisa para os agricultores mas com os agricultores
É o reconhecimento de que estamos fazendo uma pesquisa não para os agricultores mas com os agricultores. Isto implica na adoção de um novo método. Não é o método do cientista que se isola num laboratório ou no campo experimental com fatores isolados para poder ter controle sobre eles. É trabalhar no meio real. Lá onde os agricultores podem participar do processo da produção do conhecimento e, ao mesmo tempo que o conhecimento vai se produzindo, dele ir se apropriando.
É a ação dialógica de que o Paulo Freire falava. Não é uma relação entre um sujeito e um objeto mas entre dois sujeitos. Cada um com o seu acúmulo de conhecimentos que, juntos, podem produzir um conhecimento de terceiro nível. Isto implica sair do paradigma mais racionalista, mais empirista, que é o que domina as nossas academias, para ir para uma situação mais de reconhecimento do saber dos outros atores e da valorização dos processos participativos. Pretende-se que a ciência tenha um monopólio sobre o conhecimento válido e se ignora todo o acúmulo de conhecimento que a civilização vem produzindo a não sei quantos milhares de anos. Então é tirar esse ranço. Sair dessa soberba e reconhecer aquilo que os agricultores podem oferecer e a aportar como novas perguntas para o nosso trabalho.
Para mim, seria um grande desafio ter uma Embrapa mais democrática, que tenha responsabilidade com uma sociedade menos assimétrica, mais fraterna e mais amorosa.
Tive uma oportunidade ímpar, antes da pandemia, de acompanhar uma visitação de três pesquisadores da Embrapa que trabalham com milho. O cientista da academia e o cientista da tradição da vida, do contato direto com a terra e a planta. Mas o diálogo precisa chegar também à população urbana, não é? E essa talvez seja a barreira mais difícil de ser suplantada…
A nossa formação foi muito empirista, racionalista, positivista. Significa que as pessoas acham que o conhecimento acadêmico se basta por si só. E que não necessita de uma interface com quem vai consumir esse conhecimento. Somos treinados para responder muito bem o como, mas não nos ensinaram a pensar sobre o quê, por quê? para quê ou para quem? Quem vai ser afetado com aquele tipo de conhecimento? Em que condição aquele conhecimento pode ser utilizado? Qual é locus social em que ele tem sentido? É um grande desafio para a maior parte das academias brasileiras que ainda estão assentadas em correntes filosóficas que nasceram na Idade Média. Uma grande crítica que se fazia às universidades é que elas não dialogavam com o local onde estavam inseridas, com a população do entorno.
Tentamos sempre nos despojar da soberba de que os cientistas tem um conhecimento de nível diferente
Hoje existe uma nova expressão acadêmica. Os professores levam os alunos para conhecer o entorno onde estão trabalhando. Para dialogar com os agricultores, com as agricultoras. Para identificar as dificuldades que eles têm com a formação de um cientista cidadão que consiga interpretar o fato social e não somente a questão tecnológica. Se tivermos a concepção da tecnologia que estamos produzindo, (saber) que ela é amigável com o ambiente, que vai fazer o agricultor manter a sua renda e ainda vai proporcionar prazer a quem está consumindo isso na forma de comida, estabelecer um diálogo transversal com todos esses públicos, nós estaremos conseguindo, talvez, criar uma condição de reconhecimento do papel de uma instituição como a Embrapa. Mas não nos prepararam para fazer isso, não é?
Estamos permanentemente tentando não só romper as barreiras das disciplinas, entre a formação teórica e técnica que temos, mas também tentando nos despojar dessa soberba de que os cientistas tem conhecimento de um nível diferente. Afinal de contas, nenhum conhecimento tem atributos que os tornam superiores ou inferiores a outros produzidos em outros contextos, em outros lugares da história ou em outras geografias.
Acho que esta é a grande barreira a superar, a questão da comunicação. O que faz a Embrapa, qual é o papel da Embrapa na vida brasileira? Para a maioria das pessoas que vivem nas cidades a Embrapa é uma sigla. É preciso mostrar de que maneira, digamos, o alimento chega mais qualificado e mais acessível à mesa e qual é o papel da Embrapa nisso…
Eu gostaria de ver um Transforma Embrapa que nos facilitasse a expressão disso que nós estamos conversando. Vou te dar um exemplo prático. Tem um agricultor aqui, perto de Porto Alegre, que utiliza um material de mandioca produzido pela Embrapa lá de Brasília. É uma mandioca diferenciada. Tem uma qualidade na culinária, no sabor, na aparência, que agrada muito a quem a consome. E esse sujeito tinha uma relação com uma rede de supermercados e queria colocar lá a mandioca Embrapa. Mas não foi possível superar essa barreira. Não foi possível viabilizar o uso da marca Embrapa em um produto que faz a felicidade do cara lá do supermercado que está vendendo e do consumidor que está consumindo.
Nós temos o caso do milho. O pessoal da Cooperativa União e da Cooperfumos têm interesse em colocar nos milhos – os brancos varietais, que são aptos a produzir a panificação e que são tão produtivos ou mais do que os materiais híbridos, convencionais e transgênicos – a marca Embrapa. Mas a nossa burocracia interna nos emperra tanto que a gente não consegue fazer isso. O que eu queria ver é um Transforma Embrapa que abra a possibilidade do consumidor enxergar na gôndola aquele produto identificado como uma batata de variedade tal desenvolvida pela Embrapa. Mas é muito difícil fazer isso.
Cada vez que saía em algum grande jornal ou num programa de televisão, uma referência ao trabalho da Embrapa, os colegas da comunicação diziam assim: `Olha, na segunda-feira vai ter uma enxurrada de pedido de explicação ou de acesso a esse conhecimento”. Por quê? Porque a dificuldade que a gente tem de fazer essa comunicação com o público urbano é tão grande que o simples fato de sair uma notícia gerava uma enorme demanda e isso talvez devesse ser um dos grandes eixos do trabalho. Não só a produção do conhecimento mas estratégias de vulgarização deste conhecimento.
Tivemos o enfrentamento do problema da fome na primeira década dos anos 2000. Com resultados positivos e num período relativamente curto de tempo. Até 2016. A Embrapa teve um papel muito importante nesses resultados enquanto estavam positivos. E agora a fome está batendo na porta das pessoas. A Embrapa, sob ataque, precisa ser novamente chamada a esse front. Como é que você avalia essa situação complicada? Essa sinuca de bico que a gente está inserida agora?
É realmente uma sinuca de bico. Porque nesse período que você fala de superação ou diminuição da linha da miséria tínhamos políticas públicas específicas. Tínhamos o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) que coordenava o programa Fome Zero. Nós aqui, em Pelotas, tivemos dez atividades relacionadas ao Fome Zero, como os Quintais Orgânicos de Frutas que nasceu nesse período e está completando 20 anos em 2023, sempre patrocinado por recursos externos à empresa. Recentemente a Embrapa pelo Projeto Quintais, juntamente com outros projetos desenvolvidos em outras unidades da Embrapa, recebeu o reconhecimento da FAO por sua contribuição ao avanço dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, (ODS) e à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Tratar da segurança alimentar, como a melhoria da qualidade genética dos rebanhos dos assentamentos da reforma agrária também foi possível. Fizemos coisas desse tipo. E tinha espaço para fazer.
É só com política pública que se enfrenta essa situação
Trabalhamos com o INCRA de 2003 até 2015, capacitando os assentados, levando tecnologia para produzir, viabilizando o seu espaço produtivo. Tínhamos o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) que adquiria alimentos dos agricultores e os redistribuía. Tínhamos o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com várias chamadas para capacitação de técnicos, inclusive das ONGs. Chegamos a receber cinco mil pessoas por ano para fazer capacitação, agricultores familiares, quilombolas, assentados da reforma agrária, com tecnologias relacionadas à segurança alimentar e biodiversidade.
Mas quando a política pública desaparece, e quando não tem mais recursos, o que a gente faz? Mesmo sendo portador de um arsenal de conhecimentos? Como se consegue fazer com que as pessoas tenham a acesso ao conhecimento? Dizem que o Brasil produz comida para alimentar não sei quantos milhões de pessoas. Mas se as pessoas não tiverem recurso como vão pagar as três refeições por dia? E não adianta ter o estoque de comida que tiver se a pessoa não tem como chegar até ele. É só com política pública que a gente pode enfrentar essa situação. É um período muito complicado da vida política, da vida institucional, da vida cidadã também.
Os bancos de germoplasma podem acabar atendendo só ao interesse do agronegócio
BdF RS – Tenho uma informação aqui que a Embrapa tem 165 bancos de germoplasma. É este o número correto?
Costa Gomes – Sim. São 165 bancos genéticos de espécies vegetais, animais e de microorganismos.
BdF RS – Com este processo que está acontecendo, de captura pelos grandes produtores, é possível pensar que esses bancos podem correr risco?
Costa Gomes – O grande risco em relação aos bancos de germoplasma, se vierem a ser privatizados, é de que seus proprietários se interessem apenas por aquilo que pode render algum recurso. Eliminando aquela base genética das culturas que não tem expressão econômica dentro do agronegócio. Por exemplo, banco genético de germoplasma de abóbora, de pimenta, de batata doce, de sementes crioulas, de variedades crioulas, de feijão, de milho. Falo daquelas mais comuns aqui na região de clima temperado. Se isso fosse apropriado por alguém da iniciativa privada, que só tivesse interesse por exemplo em arroz, quase certamente preservaria o banco de germoplasma de arroz e os outros correriam o risco de serem eliminados ou perdidos. É uma grande preocupação que temos na Embrapa. Da salvaguarda desse recurso que é um repositório para o futuro.
Outra questão é a perda do conhecimento tácito. São aquelas pessoas que conseguem identificar uma variedade no campo pela forma com que ela vem se desenvolvendo e, daqui a pouco, a gente não ter mais o apoio delas nesses processos. Estamos enfrentando isso. Na estação Experimental Cascata somos 12 técnicos e cinco pessoas que fazem o trabalho de apoio. Saíram cerca de 10 nos últimos tempos e não tem reposição. Fala-se em terceirizar o trabalho de campo. A relação do pesquisador com o experimento é mediatizada por alguém que vai operar o trabalho dele para preparar o terreno que vai fazer a colheita, a coleta, a observação. Colocando terceirizados, um dia pode ser uma pessoa e, quando aquele for treinado, já pode ser outra, ou já nem existir mais, não é? Tem-se um ciclo de conhecimentos que se perde neste processo.
Nos programas de melhoramento genético da Embrapa existem pessoas que fazem cruzamento genético há 15 ou 20 anos. Sabem que flor tem que pegar de uma planta. O pólen daqui, para botar no estigma da outra lá, para fazer esse trabalho. Quando se perde o controle sobre esse tipo de trabalho, perde-se a confiança no que está sendo feito também. Se acontecer uma saída massiva, possivelmente uma boa parte desse trabalho venha a ser comprometido.
O povo brasileiro merece uma Embrapa que o atenda de forma plural, inclusiva, que atenda suas necessidades de forma ampla e irrestrita
BdF RS – Nestes 46 anos como pesquisador, quando sentistes que estavas cumprindo a tua função de agente público em relação à sociedade? Qual é o momento em que dizes “Bom, isso aqui valeu a pena”?
Costa Gomes – Olha, eu tenho vários. Tem uma coisa na minha trajetória, da qual eu me orgulho muito, foi em 2003, quando assumi a chefia da Embrapa, aqui em Pelotas, uma das primeiras decisões que tomamos foi a de que a Estação Experimental Cascata iria se dedicar exclusivamente à agroecologia. Isso fez a diferença. Conseguimos construir um grupo de pesquisadores, de técnicos, que enxergam esse processo. Cada vez que discutimos um novo projeto de pesquisa pensamos de forma transdisciplinar, de forma participativa e sempre buscando a conexão com o meio real, onde as pessoas estão trabalhando para poder dar sentido ao nosso trabalho. Não se trata de produzir conhecimento, se trata de produzir um conhecimento com alguém que vai utilizá-lo.
Acho que esse é o grande desafio e os grandes motivos pelos quais ainda pessoas como eu e outros que estão por aí ainda não saímos. É tentar deixar esse legado e participar de um processo de formação de novos quadros também. Porque durante muito tempo participamos da formação de pessoas para poder ter esse entendimento de que o cientista apenas domina algumas coisas que outras pessoas não dominam. Mas não é por isso que ele tem superioridade e jamais vai ter em relação aos conhecimentos produzidos em outros contextos.
Fonte: Brasil de Fato
Comentários