Encravada no meio do bioma amazônico, a Zona Franca ignora a floresta. Um novo estudo mostra que é possível aprimorar a política e colher benefícios ambientais
Não é difícil entender como uma zona franca funciona. O modelo surgiu por volta do século XII e consiste em oferecer incentivos fiscais para as empresas que operam em determinada região — geralmente, um lugar próximo de um porto fluvial ou marítimo, ou uma região de fronteira entre países.
Nas zonas francas, as montadoras não pagam impostos quando importam peças, por exemplo. Além disso, seus produtos não são taxados quando exportados. O objetivo de uma zona franca, grosso modo, é tornar as indústrias que funcionam ali competitivas no cenário internacional. Na superfície, não há grande mistério.
Por isso mesmo, foi grande a surpresa da economista Amanda Schutze quando decidiu estudar o funcionamento da Zona Franca de Manaus (ZFM). “Ela não se parece em nada com uma zona franca típica”, conta a pesquisadora. A começar pela localização: encravado na floresta amazônica, o Polo Industrial de Manaus (PIM) — onde são produzidos de aparelhos de ar-condicionado a refrigerantes gaseificados — fica a 1.6 mil km de distância do mar. Enquanto em zonas francas típicas a maior parte da produção é destinada ao mercado internacional, os artigos produzidos na ZFM fazem o caminho inverso: 92% do faturamento do PIM resulta da venda para o mercado interno.
Por fim, apesar da proximidade com o bioma amazônico, nada do que é produzido ali tem relação com a floresta. Isso significa dizer, segundo o jargão dos economistas, que sua localização não oferece vantagens comparativas aparentes.
Vista de perto, Amanda descobriu que a ZFM parece sofrer de uma espécie de crise de identidade. Na melhor das hipóteses, isso representa uma oportunidade perdida. Para a população local e para a floresta. Mas é possível mudar esse cenário. Segundo Amanda, com os incentivos certos, a Zona Franca de Manaus pode se tornar um estímulo para manter a floresta em pé.
As conclusões da economista foram reunidas no artigo “Aprimorando a Zona Franca de Manaus: lições da experiência internacional”. Recém-publicado, o trabalho é parte do projeto Amazônia 2030 — um imenso esforço de pesquisa coordenado por quatro instituições brasileiras. O objetivo do grupo é traçar um plano capaz de garantir que a Amazônia dê um salto de desenvolvimento econômico e humano, preservando seus recursos naturais, nos próximos dez anos. Aprimorar o funcionamento da Zona Franca de Manaus é parte importante dessa receita.
A proposta de criar uma zona franca em Manaus surgiu nos anos 1950. Inicialmente, previa-se a construção de um porto franco capaz de armazenar mercadorias estrangeiras destinadas à exportação, ou direcionadas ao consumo interno da Amazônia. A ideia sairia do papel em 1957, no governo de Juscelino Kubitscheck, mas já ligeiramente modificada.
A política implantada permitia a instalação de indústrias privadas responsáveis pelo beneficiamento das matérias-primas que passassem pelo porto de Manaus. Os artigos produzidos recebiam isenções tributárias quando exportados. Mas pagavam impostos quando eram vendidos no mercado interno.
A ZFM mudaria de natureza anos depois, durante a ditadura militar. Sob a premissa de que era preciso “integrar para não entregar”, os militares reestruturaram a política, de modo a atrair empresas que desenvolvessem a região — e trabalhadores que a ocupassem. A prioridade, então, era integrar a Amazônia ao restante do país. As isenções passaram a valer também para os produtos vendidos internamente.
Hoje, as empresas instaladas no Polo Industrial de Manaus empregam mais de 80 mil pessoas. A remuneração é baixa: a maioria dos trabalhadores recebe até 2 salários mínimos. A política é importante para a região, mas tem um custo: só em 2019, foram oferecidos mais de R$24 bi em incentivos fiscais.
Para operar na ZFM, é preciso seguir as regras descritas no chamado Processo Produtivo Básico (PPB). Elas variam a cada setor, e estabelecem contrapartidas para que as empresas recebam incentivos fiscais. Da maneira como o PPB está desenhado hoje, conta Amanda, as empresas são estimuladas a tomar “decisões logísticas ineficientes”. Ela cita um caso ilustrativo: para receber incentivos fiscais, as empresas produtoras de ar condicionado devem usar compressores nacionais.
O compressor é a peça responsável pelo resfriamento do ar. No Brasil, eles são fabricados em São Paulo, e são de qualidade inferior aos compressores importados. Precisam ser enviados para Manaus, onde os aparelhos de ar condicionado são montados e, posteriormente, despachados pelo país — vendidos em São Paulo, inclusive. É um caminho rocambolesco, que faz disparar os custos de transporte. O problema se repete para outros itens, cujas peças não são produzidas na região. “Não são usadas matérias-primas do bioma amazônico”, diz a economista.
Recorrendo à literatura internacional, Amanda percebeu que a experiência de Manaus não lembra em nada a de uma zona franca típica, mas se encaixa em outra classificação: a de zona empresarial. Mais comuns em países desenvolvidos, as zonas empresariais são políticas territoriais criadas com o objetivo de alavancar o desenvolvimento econômico de uma região. A intenção pode ser, por exemplo, oferecer condições para que as empresas que operam na área abram postos de trabalho qualificados e bem remunerados. Parece ser essa a vocação da ZFM.
Não se trata de uma simples mudança de nomenclatura. “Para que uma política pública dê certo, é preciso entender, com clareza, quais seus objetivos”, conta Amanda. Só assim é possível definir como melhorá-la. “Definir o que é a Zona Franca é essencial para definir o que deve ser alterado para aprimorá-la”, afirma.
Se a ZFM fosse entendida como uma zona empresarial, mudariam as políticas de incentivo para a região. A mudança abre uma avenida de possibilidades: o PPB poderia ser ajustado, de modo a incluir requisitos ambientais e de eficiência energética, algo que hoje não existe. Possivelmente, mudariam os setores beneficiados pelas isenções fiscais. “Diversas são as possibilidades contempladas para uma maior associação entre os incentivos fiscais e a sustentabilidade”, escreve a autora.
Seria possível, por exemplo, estimular o desenvolvimento de indústrias que produzam em sintonia com a floresta. E que utilizem seus recursos de maneira sustentável. “Poderiam ser indústrias farmacêuticas ou alimentícias”, arrisca Amanda. “Algo que chamamos de bioeconomia industrial”.
Além de vantagens econômicas, essa mudança de curso traria benefícios ambientais. “Hoje, quem vive e trabalha na Zona Franca não se sente parte da Amazônia. Porque acha que não precisa da floresta para sobreviver”, diz Amanda. “ Se as pessoas perceberem que a floresta tem mais valor em pé, vão trabalhar para preservá-la”, completa.
Por ora, a crise de identidade da ZFM é ainda uma questão não resolvida. Em 2014, o governo federal prorrogou sua existência por mais 50 anos — até 2073. O argumento central utilizado pelos seus defensores é o de que a ZFM gera empregos. Para que a sociedade colha os melhores benefícios dessa decisão, vai ser preciso reavaliar os objetivos e os resultados da política. “É preciso conversar sem medo. E com transparência de dados”, afirma Amanda. É bom para a economia e para a floresta.
Fonte: Um só Planeta
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