Autor: Amália Safatle
Na diversidade cultivada desde tempos remotos pelos povos originais está a senha para o presente e o futuro da Amazônia: abraçar a complexidade como um dado da realidade e transformá-la em um ativo. A partir desse entendimento, fruto de uma série de encontros realizados em 2020, mais de 200 participantes da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia buscam saídas para o desenvolvimento da região. Conheça a seguir as principais ideias debatidas
As matas prístinas, as montanhas sublimes, o conhecimento ancestral, a riqueza arqueológica, o patrimônio sociocultural. A sensível teia de vida que habita as águas, as terras, a flora, e constitui a base de sustentação de milhões de pessoas que lá habitam. Se nada disso sensibilizar a sociedade brasileira e internacional para a urgência de conservar a Amazônia, há razões de ordem pragmática também, que afetam o cotidiano de cada um, como a produção de alimentos, o equilíbrio do clima, a oferta de água e a geração de energia.
No atual ritmo de devastação, a maior floresta tropical do mundo poderá atingir em poucas décadas o ponto de não-retorno, convertendo-se em uma savana. Além da destruição de potencialidades ligadas à biotecnologia, aos biofármacos e a todos os ativos e serviços ambientais que podem compor uma bioeconomia, isso trará sérias implicações para o clima regional, para a mudança climática global e para o regime de chuvas no eixo Centro-Sul do País.
O resultado direto é o impacto na produtividade agrícola, no abastecimento hídrico e na geração hidroelétrica. E nem é preciso esperar para ver. Cientistas observam alterações que têm ocorrido desde já, tais como estiagens mais intensas e frequentes. A estação seca no sul da Amazônia, por exemplo, está três a quatro semanas mais longa em comparação aos últimos 40 anos, especialmente em áreas desmatadas.
Embora exuberante, o bioma amazônico contém fragilidades. Sem a ciclagem da matéria orgânica das próprias florestas e a retenção da umidade pela vegetação, o solo arenoso torna-se incapaz de sustentar tamanha diversidade de vida. Em razão do alto volume de chuvas e da lixiviação, 86% dos solos da Amazônia são considerados pobres em termos de nutrientes.
Como diz o climatologista Carlos Nobre, “as florestas tropicais existem porque as florestas tropicais existem”.
Os povos originais que habitavam a região há 12 mil anos sabiam lidar com essa situação, produzindo alimentos de uma forma diversificada, em sistemas que hoje são denominados de agroecológicos. Também produziam as chamadas terras pretas para aumentar fertilidade do solo, e que são utilizadas por agricultores até os dias de hoje.
Como mostram as pesquisas do arqueólogo Eduardo Neves, professor do Museu de Arqueologia da USP, os habitantes da Amazônia cultivaram ao longo de milênios espécies de ciclo de vida longo, como a castanheira, mas também a goiaba, o tubérculo ariá e o fruto piquiá, manejados há cerca de 9 mil anos. Há 5.800 anos, predominavam culturas como abóbora, feijão, mandioca e a palmeira tucumã.
Mal podiam imaginar os povos ancestrais que ali já estava a senha para o presente e o futuro da região: o reconhecimento da diversidade como um norte para orientar as políticas de conservação ambiental na Amazônia. Diversidade ganha aqui um sentido amplo, ou seja, abarca culturas, cultivos, povos, espécies, atividades econômicas.
Diversidade gera complexidade, como bem mostra Fernanda Rennó, doutora em Planejamento Territorial pela Universidade de Toulouse. Neste estudo, ela identifica ao menos nove grupos populacionais que hoje coabitam a Amazônia Legal, estabelecendo um emaranhado de interações, tantas vezes sobrepostas entre si, como por exemplo na colagem de Moara Tupinambá (abaixo). São povos indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, garimpeiros, madeireiros, assentados rurais, grandes proprietários de terra e os amazônidas urbanos – estes, o maior grupo populacional, com 24,5 milhões de pessoas (saiba mais aqui).
Pesquisadores e atores envolvidos com a temática amazônica estão, portanto, cada vez mais convencidos de que não existe “bala de prata”, ou seja, não há uma solução única que traga prosperidade à região e seus habitantes, com respeito às questões ambientais. É preciso abraçar a complexidade, entendê-la como um dado da realidade e transformá-la em um ativo. Da mesma forma, a floresta, complexa como ela só, deve ser entendida como um imenso manancial de oportunidades – e não como um empecilho ao crescimento econômico, como rezavam cartilhas ultrapassadas de desenvolvimento.
Provocar essa “virada de chave” na compreensão sobre a Amazônia entre a opinião pública, o setor privado e os formuladores de políticas é o que tem motivado diversos atores reunidos na iniciativa Uma Concertação pela Amazônia. Criada em 2020, já congrega cerca de 200 membros. A ideia é buscar sinergias nas iniciativas pró-Amazônia que já existem, valorizando a diversidade de papéis, fortalecendo a rede de conhecimento e as pessoas que se dedicam a esse tema, de forma a trazer mais profundidade para as discussões sobre a região.
Para isso, busca conectar os diferentes atores, como setor empresarial, financeiro, Forças Armadas, ciência e tecnologia, cultura e organizações locais. Por meio de encontros virtuais, produção de conhecimento e debates abertos ao público, alternativas têm sido buscadas para a Amazônia nas mais variadas frentes. Grupos de trabalho, por exemplo, buscam se aprofundar nos temas de ordenamento territorial e regularização fundiária, bioeconomia, cultura, engajamento do setor privado e advocacy.
Tempestade perfeita
Tal iniciativa é mais que oportuna. Segundo Adalberto (Beto) Veríssimo, que há 35 anos pesquisa a temática da Amazônia, a região vive um momento dramático, pois reúne uma “tempestade perfeita” de problemas sociais, subdesenvolvimento econômico e degradação ambiental. A ilegalidade e a violência na região afastam investidores e empreendedores, enquanto o atual contexto político é desfavorável, na medida em que a coordenação federal da agenda ambiental é sofrível, somada ao enfraquecimento dos órgãos de controle e ao menor orçamento do Ministério do Meio Ambiente do século em 2021, segundo o Observatório do Clima, mesmo depois de dois anos consecutivos no aumento de desmatamento e queimadas.
Na mesma linha, Carlos Nobre vê o modelo de exploração da Amazônia vigente até agora como insustentável, ao não valorizar os ativos florestais. Segundo ele, a exploração que vem sendo praticada na Amazônia nos últimos 40 anos, baseada no desmatamento da floresta e conversão dos solos para pecuária e agricultura, não se sustenta por várias razões. Uma delas, já citada, é o solo pobre. Os nutrientes esgotam-se rapidamente com o uso intensivo das monoculturas, o que leva à necessidade de abrir continuamente novas fronteiras, expandindo a degradação.
Com isso, o desmatamento já atinge 17% de toda a Bacia Amazônica, e a degradação de área equivale a 8%. Ao exceder a taxa de desmatamento de 20% a 25%, pode-se atingir o mencionado ponto de não-retorno. Isso significa que 70% da Amazônia se transforma em savana, com grande extinção da biodiversidade, drásticas mudanças no ciclo hidrológico e perda de 300 bilhões de toneladas de carbono para atmosfera. A partir daí, Nobre prevê uma mudança considerável da estabilidade climática do planeta todo, afetando os modos de vida locais e em diversas regiões do mundo, em especial da América do Sul.
O que fazer?
Diante desse quadro sombrio, cabe à sociedade um esforço conjunto em torno de uma nova agenda de desenvolvimento, calcada em fortalecimento das ações de comando e controle, combate à ilegalidade por meio de instrumentos de crédito, proteção aos povos indígenas e populações tradicionais, valorização da diversidade cultural, ordenamento territorial, Pagamentos por Serviços Ambientais, infraestrutura física e digital, licenciamento ambiental, aprimoramento da governança e das instituições, fortalecimento dos governos locais, investimentos em saúde, educação e formação técnica profissionalizante, e promoção do turismo.
Para contribuir com o cumprimento dessa agenda, a rede da Concertação vê com relevância a participação dos atores locais e das novas gerações, compondo um quadro multifacetado, com capacidade formativa, debate qualificado, interlocução com governo, impacto na gestão pública e, sobretudo, atuação cooperativa, inspirada nas características da própria floresta.
“A floresta não é contemplativa, ela coopera para viver”, compara Guilherme Leal, fundador do Instituto Arapyaú.
Por onde começar?
Um dos primeiros passos nesse esforço é o reconhecimento das diferentes amazônias que compõem a região, que se relacionam, mas que apresentam características muito distintas entre si e que demandam agendas diferenciadas para políticas públicas, como a do fomento da bioeconomia e a do ordenamento territorial. As quatro amazônias identificadas são a da região conservada, a do Arco do Desmatamento, a área já convertida e a área urbana.
A conservada localiza-se especialmente na porção oeste na Amazônia, onde predominam a bioeconomia de baixo impacto (compatível com a floresta em pé) e os serviços ambientais. Deve ter como agenda específica os investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento, o debate sobre mineração em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, e parcerias de cooperação internacional.
Na região do Arco do Desmatamento, onde a bioeconomia de baixo impacto convive com a de alto impacto (baseada em commodities) e atividades agrícolas sob restrições ambientais, é preciso criar condições tecnológicas, econômicas, políticas, fiscais e institucionais. O objetivo é fortalecer os Sistemas Agroflorestais (SAFs) e a Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF), assim como as atividades de restauração com plantio de nativas, as áreas de manejo sustentável e o desenvolvimento de novos mercados.
Para a região já convertida, onde as florestas deram lugar a áreas para produção de commodities agrícolas e minerais, a agenda proposta é promover a rastreabilidade total, especialmente do gado e da soja, e reverter para a conservação da floresta os incentivos fiscais e financeiros concedidos para a ocupação e conversão de terras. A arte de Denilson Baniwa também inspira reflexões sobre a velocidade e a dimensão das áreas convertidas:
Já na Amazônia urbana, com serviços e indústria como atividades preponderantes, a agenda é focada no saneamento básico e também na reversão de incentivos fiscais das atividades industriais em prol da conservação florestal.
Um framework para a bioeconomia
Com base nesse mapeamento, o grupo de trabalho de bioeconomia da Concertação acaba de estruturar um arcabouço que identifica possibilidades de ação considerando a diversidade dos territórios. O framework baseia-se no conceito de contínuo (agro)florestal, em que a paisagem se modifica conforme o grau de interferência humana, mas sempre oferece oportunidades de exploração bioeconômica. Assim, é possível atuar no espaço entre dois extremos – desde os maciços florestais preservados até a monocultura de espécies nativas ou exóticas.
Assim, configuram-se três vertentes de atividade: a bioeconomia “tradicional”, baseada na biodiversidade; a florestal, baseada em manejo; e a de commodities, baseada na produção intensiva (saiba mais aqui). Segundo Tatiana Schor, secretária executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado do Amazonas, que integra o grupo de trabalho da Concertação sobre bioeconomia, esse enquadramento já traz resultados práticos, pois ajuda a direcionar tipos de investimento, de financiamento, formas de participação do setor privado e programas de proteção dos povos da floresta.
“Esse framework é muito importante para se aplicar a política pública mais adequada a cada território, considerando as suas dinâmicas econômicas”, afirma a secretária.
Como financiar a bioeconomia nessas três escalas será justamente um dos assuntos em fórum estadual sobre o tema a ser realizado neste ano.
O conceito de bioeconomia, contudo, não está fechado. Há muitas visões diferentes em debate. Roberto Silva Waack, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú, também responsável pela construção do framework, observa que bioeconomia é entendida de diferentes formas no mundo, muitas vezes associada por investidores ao capital natural (saiba mais sobre evolução histórica e conceitual da bioeconomia em estudo elaborado pela Concertação, acessível aqui.)
Nesse debate, há quem veja riscos em tratar como bioeconomia as commodities associadas a monocultura, caminho que poderia confundir uma agenda de transformação necessária para a Amazônia. “Na discussão sobre o desenvolvimento da região, é trágico empacotar conceitualmente bioeconomia como tudo o que se relaciona à biomassa pois, desta forma, os números da pecuária e da agricultura, por exemplo, poderiam justificar que o cenário está bom”, adverte Tasso Azevedo, coordenador-geral do MapBiomas.
Já o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Marcello Brito, discorda. Em sua visão, o processo bioeconômico em um país deve ser inclusivo e transformador, e não definido por entendimentos individuais sobre o que pode ou não ser considerado bioeconomia. “Se excluirmos de início setores importantes, precisaremos descobrir como financiar o processo como um todo”, argumenta.
Waack lembra que os Sistemas Agroflorestais e a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, por exemplo, são alternativas para o Arco do Desmatamento e para zonas hoje sob risco de conversão da floresta. Além disso, a biologia molecular de fibras florestais – importante driver da bioeconomia no Hemisfério Norte, trabalhado no Brasil por empresas de papel e celulose – é capaz de desempenhar função importante na valorização de essências nativas, entre outras possibilidades.
Do básico ao avançado
A bioeconomia também pode partir de tecnologias já conhecidas até as mais avançadas, na fronteira do conhecimento. Somente o mercado global dos produtos não-madeireiros e agroflorestais é estimado em US$ 60 bilhões por ano. O Brasil, embora já domine essa tecnologia e seja um país megabiodiverso, participa com míseros 0,7% desse montante, alerta Beto Veríssimo, que coordena a Amazônia 2030, uma iniciativa conjunta do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do Centro de Empreendedorismo da Amazônia com a Climate Policy Initiative e o Departamento de Economia da PUC-Rio.
Se o Brasil já enfrenta dificuldades em atuar no campo das oportunidades mais básicas, as quais contribuiriam para conservar maciços florestais e reduzir a pressão de desmatamento, o que dizer do desenvolvimento de tecnologias mais avançadas?
Ainda assim, há esforços nessa direção, como o Projeto Amazônia 4.0. “O modelo utiliza as modernas tecnologias da indústria 4.0 [sistemas ciberfísicos, internet das coisas, redes de comunicação], criando um círculo virtuoso com o aproveitamento dos valores biológicos e biomiméticos da riquíssima biodiversidade amazônica, somado ao conhecimento tradicional”, diz Carlos Nobre.
Dois pilotos do Projeto Amazônia 4.0 já estão em curso: os Laboratórios Criativos da Amazônia e a Rainforest Business School. Os laboratórios são biofábricas compactas, equipadas com tecnologias da indústria 4.0 para processar insumos amazônicos de cadeias como cacau, cupuaçu, castanha; açaí e óleos comestíveis, além do laboratório de genômica, cujo objetivo é demonstrar que é possível sequenciar genoma de qualquer planta, animal e microrganismo de origem amazônica.
Com o apoio do Instituto Arapyaú, Instituto Humanize e Instituto Clima e Sociedade, já foi iniciada a construção do laboratório da cadeia produtiva do cupuaçu e do cacau. Para atuar nele, será feita a capacitação da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela), que reúne mulheres produtoras de Belterra, no Pará.
A ideia é replicar esse modelo de treinamento em outras comunidades e também em campus universitários de Manaus, Belém e Santarém (PA), atraindo jovens para o mundo do empreendedorismo sustentável, criando as bases para startups muito inovadoras, especialmente no modelo business-to-business (B2B).
Já a Rainforest Business School é uma parceria com o Instituto de Estudos Avançados da USP e Universidade do Estado do Amazonas, que prevê a oferta de um curso de MBA sobre negócios sustentáveis da floresta e a capacitação de jovens universitários de graduação e pós-graduação, com o objetivo de preparar as lideranças para a economia do século XXI.
De acordo com Nobre, estes são alguns caminhos para que o Brasil saia do processo de desindustrialização e deixe de ser apenas um fornecedor de commodities agrícolas e minerais para as nações industrializadas. “Com uma bioeconomia baseada na biodiversidade e com soluções sustentáveis para as crises ambientais e de saúde, o Brasil pode se tornar a primeira potência ambiental da sociobiodiversidade”, diz o climatologista.
Há, contudo, desafios de primeira ordem a serem enfrentados, como o isolamento e a precária infraestrutura e logística da região; o fato de os processamentos de matérias-primas serem complexos; o acesso a mercados, além de equipamento e treinamento para que esses negócios prosperem.
Corrida de obstáculos
As demais frentes da bioeconomia também enfrentam obstáculos. “Não temos estrutura de certificação fitossanitária, a conectividade por internet é muito baixa e há buracos negros de informação sobre mercado ao longo de todas as cadeias produtivas, o que dificulta a atração de investimentos”, afirma Schor, secretária executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado do Amazonas.
Na bioeconomia florestal, segundo Waack, as barreiras vão desde o ambiente de ilegalidade que envolve a extração de produtos da biodiversidade à falta de fiscalização e de padronização de insumos, além de questões fitossanitárias, dificuldades impostas pela legislação de acesso aos recursos genéticos, baixo investimento em Pesquisa & Desenvolvimento e o que ele chama de “preconceitos entre a linha de frente da academia e a lógica dos negócios”.
Além disso, a economia baseada na biodiversidade da floresta é altamente dependente da consolidação de áreas protegidas: “Não adianta falar em bioeconomia sem falar da conservação de áreas, principalmente as que ainda estão intocadas”, afirma o presidente do Conselho do Arapyaú.
Quanto à bioeconomia baseada em commodities, esta sofre expressiva influência política e de grupos econômicos. Segundo Waack, ainda há uma “inércia comportamental” diante da produção em monoculturas de grande escala e seus impactos, embora uma parte importante do agro esteja caminhando para padrões de sustentabilidade, como o cumprimento do Código Florestal e a valorização de serviços ambientais. O desafio, segundo ele, é a adoção de práticas ambientais que para reduzam as externalidades negativas.
Mariano Cenamo, diretor de novos negócios do Idesam, vê potencial tanto para sistemas agroflorestais, como na biotecnologia de commodities, na intensificação produtiva e na produção sustentável em cadeias tradicionais – como a própria agropecuária, a piscicultura e o biorrefino para aproveitamento de biomassa em larga escala. Mas Cenamo alerta para a necessidade de uma melhor infraestrutura que viabilize tudo isso, como logística, distribuição e rastreabilidade, além da reestruturação de cadeias de fornecimento, com o componente social.
“Buscamos uma economia que reduza desigualdades e gere renda para as comunidades, pois não adianta falar de grande cadeia de produção de açaí se não se resolverem problemas sociais e ambientais da Amazônia”, afirma Cenamo.
Há, ainda, que lidar com as razões estruturais ligadas ao desenvolvimento da região as quais impediram o florescimento uma economia florestal em bases sustentáveis.
Para o empresário Denis Minev, diretor-presidente da Bemol, rede varejista atuante em quatro estados, a Amazônia sofre com a impermanência de políticas públicas adequadas que garantam preservação ambiental e geração de prosperidade para os mais de 20 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia. Investidor em negócios de impacto e ex-secretário de Planejamento e Desenvolvimento Econômico do Amazonas, Minev traça uma linha do tempo sobre os fracassos do modelo de desenvolvimento na região no passado mais recente.
Ele começa pelos anos 2004 a 2012, considerados um período de ouro do ponto de vista ambiental e também econômico para a Amazônia. O aumento da presença do Estado na região, com o monitoramento de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe), o policiamento e a infraestrutura de repressão ao desmatamento e aos crimes ambientais trouxe efeitos práticos, com quedas nos índices de desmate.
Com o super ciclo das commodities (gado, soja e minério), que durou até 2012, o volume de impostos arrecadados no País cresceu fortemente, com resultados positivos na arrecadação das prefeituras dos municípios da Amazônia graças aos repasses do Fundo de Participação dos Municípios, ligado ao Imposto de Renda nacional. Na época, o governo federal também tinha grande volume de recursos, o que abria espaço para convênios com prefeituras e governos estaduais. O volume de transferências de renda cresceu, com programas como o Bolsa Família, o Seguro Defeso e as aposentadorias rurais, trazendo impactos sobre o consumo das famílias e acelerando a produção de motos, celulares e televisores na Zona Franca de Manaus.
Com outras atividades econômicas em alta, esse período de prosperidade acabou desfavorecendo atividades que mantinham a floresta em pé, tais como as culturas de castanha, sorva, borracha, pau-rosa e a criação de peixes ornamentais.
“Em geral, o período 2004-2012 foi positivo, pois as populações amazônicas enriqueceram e houve pressão ambiental menor, embora tenha sido, por outro lado, o cemitério da bioeconomia”, diz Denis Minev.
Já o período entre 2013 e 2020 foi marcado pelo fim do superciclo das commodities e da entrada do Brasil em recessão, com o consequente empobrecimento dos municípios amazônicos e aumento da fragilidade da fiscalização ambiental. Munidos de menores orçamentos, especialmente a partir de 2015, governos estaduais e municipais vivenciaram crises sucessivas que impactaram programas ambientais e de transferência de renda, que foram revistos e tiveram seu alcance limitado, o que gerou insatisfação geral na população, reduziu os níveis de consumo e, consequentemente, da produção de bens na Zona Franca de Manaus.
Com economias enfraquecidas e o afrouxamento da fiscalização, o desmatamento atingiu, em 2020, o pico dos últimos anos, com mais de 11 mil km quadrados devastados, e as atividades ligadas à floresta também não ressurgiram durante o período.
Hoje, a região amazônica vive os efeitos de uma recessão continuada, o que torna urgente a proposição de novos caminhos. Para Minev, esses caminhos passam por duas estratégias: a bioeconomia que não toca a floresta, de geração de conhecimento e inteligência; e a bioeconomia que toca a floresta, que inclui as cadeias produtivas que os investimentos de impacto estão buscando acelerar – tais como o manejo florestal, a piscicultura, o turismo e a gastronomia.
A primeira estratégia, a seu ver, tem como principal desafio o baixo orçamento destinado à pesquisa & desenvolvimento na região – o Instituto de Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) tem um orçamento de menos de R$ 50 milhões/ano, cerca de 700 vezes menor que o da Universidade Stanford, da Califórnia, considerada o motor do Vale do Silício.
Já na bioeconomia que toca a floresta, onde o empresário já investiu em startups, o principal entrave é a informalidade, que prejudica as relações de trabalho e a criação de negócios. “Precisamos encontrar formas para que as pessoas tenham CPF, CNPJ, conta bancária, título da terra”, diz. Um dos caminhos possíveis, segundo Minev, é iniciar um plano amplo de recuperação de 100 mil km quadrados de áreas degradadas na Amazônia, em uma aliança envolvendo empresas, ONGs, empresas, bancos, cientistas e povos da Amazônia.
Multiplicidade de atores
A atuação conjunta de atores diversos, ainda que com visões diferentes, surge, portanto, como uma necessidade para essa “concertação”. Uma experiência muito palpável mostra como esse esforço conjunto traz resultados: o caso de Paragominas (PA), que já figurou entre os municípios com maior taxa de desmatamento, mas conseguiu reverter essa trajetória.
“O nosso maior acerto foi transformar todos os atores em protagonistas da história”, afirma o ex-prefeito Adnan Demachki.
Demachki conta que houve um diálogo com a sociedade civil organizada, com o setor produtivo, com vereadores e governos, no total de 51 entidades – até que, em fevereiro de 2008, 40 dias após a divulgação da lista de municípios com as maiores áreas desmatadas, Paragominas subscreveu o Pacto pelo Desmatamento Zero. “Devido à minha formação como advogado, sabia que estar nesta lista representava para o município o mesmo que um cidadão inserido no Sistema de Proteção ao Crédito [SPC]”.
O município tinha cerca de 50% da área já desmatada, mantendo cerca de 724 mil hectares de floresta com manejo. Foi realizado o ordenamento territorial, catalogando, por exemplo, estradas e 15,8 mil nascentes. Em seguida, avançou-se para o Pacto pelo Produto Legal e Sustentável, com o engajamento dos vários interesses – iniciativa depois nomeada Pacto pelo Desmatamento Zero e, posteriormente, Projeto Município Verde, com uma abordagem mais positiva. “Só podemos avançar na Amazônia quando juntamos todos na mesma mesa em torno de um ideal, tendo o tripé da sustentabilidade como referência”, conclui.
Mas ainda é preciso maior envolvimento de atores relevantes, como os militares. Para Sebastião Salgado, que tem dedicado sua arte para a proteção da Amazônia e dos povos indígenas, qualquer que seja o novo modelo a ser proposto para a região, requer a participação do Exército, por ser a “organização mais presente na Amazônia” e por contar com oficiais genuinamente preocupados com o bioma. Ele lembra, inclusive, que grande parte dos soldados tem origem indígena.
A situação dos povos originais da Amazônia é especialmente crítica. Pela primeira vez desde a redemocratização, um governo se declara contrário à demarcação de terras, aumentando a vulnerabilidade dos povos. O líder indígena Eloy Terena chama atenção para ações emergenciais de curto prazo, como assegurar a proteção e a autonomia aos 305 povos indígenas, especialmente para os 114 grupos que vivem isolados. “Existem terras que têm a presença de povos isolados e ainda não demarcadas, estão sem proteção territorial e têm alto índice de invasões por garimpeiros, madeireiros e agronegócio, especialmente para criação de gado”, diz.
Salgado ressalta que o momento pede resistência dos povos indígenas, a busca de aliados em todas as esferas dentro e fora do Brasil e especialmente no Poder Judiciário. Em maio, ele e Lélia Salgado redigiram um manifesto pela proteção dos indígenas em meio à pandemia de Covid-19, com adesão de personalidades como a cantora Madonna e o ex-Beatle Paul McCartney. O abaixo-assinado foi direcionado aos Três Poderes brasileiros e apenas o Judiciário respondeu, de forma que Salgado vê maior chance de sensibilização junto a esse Poder.
Para a ex-ministra do Meio Ambiente nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Izabella Teixeira, é preciso que a sociedade brasileira tenha outra conexão com os indígenas, neste momento em que o mundo todo discute temas como a integridade climática e ambiental e o papel da Amazônia nas políticas de defesa e segurança nacionais. Essa conexão não é apenas de caráter ético em consideração a outros modelos civilizatórios. Mas sobretudo de gratidão a esses povos que, em tempos remotos, já mostraram o mapa do caminho, indicando como o modelo de desenvolvimento deve prosperar agora e no futuro.
Fonte: Página 22
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