Por Nilton Mullet
Ao abrir os jornais nos deparamos insistentemente com notícias provenientes de diversas partes do mundo que falam de desemprego, pandemias, conflitos sociais motivados por episódios de machismo e racismo, guerras entre Estados, disputas comerciais, eleições marcadas por fake news e movimentos sociais lutando contra a sua criminalização.
Como chegamos até aqui? Porque existe racismo? Porque existe machismo, homofobia e feminicídios? Porque existem ricos e pobres, conflitos, guerras e eleições? Será que a vida das pessoas sobre a Terra sempre foi do modo como é hoje? Quem inventou essas coisas todas nas quais acreditamos ou às quais apenas ouvimos falar? Eis que o estudo da História pode nos ajudar. Ela não vai nos dar todas as respostas, mas pode, ao menos, nos ajudar a compreender melhor o comportamento humano, afinal de contas, nossas ações do mundo são informadas e formadas com base em ideias sociais que são históricas, isso é, ideias que são construídas ao longo do tempo e que são sempre marcadas por contextos.
A história que estudamos na escola não serve simplesmente e apenas para passar nas provas vestibulares, para concluir e ganhar um diploma do Ensino Fundamental, para realizar a prova do Enem e tentar um futuro em uma universidade brasileira. A história que estudamos na escola amplia o mundo no qual vivemos, dá sentido a ele, oferece outros sentidos que as notícias ou o jornal das 7 não consegue dar. E isso é fundamental para criarmos futuros que não estão previstos por este presente tão difícil em que vivemos.
Um jovem e uma criança têm muitas perguntas sobre si mesmos e sobre o seu mundo. Perguntas difíceis de serem respondidas apenas pela família, pelo grupo religioso, pelos colegas e amigos. Pois, são perguntas que exigem um estudo das relações que as pessoas estabeleceram entre elas e com a natureza através do tempo. São curiosidades que existem para ampliar a vida dos jovens, para fazer com que eles possam resolver com mais facilidade os problemas que se apresentam em suas vidas.
Por que me fizeram acreditar que a pobreza é um dado da natureza? Por que não pode existir um mundo onde a pobreza nem a riqueza existam? Por que muitos homens se acham donos das mulheres? Por que conto piadas racistas? Como aprendi a debochar do Brasil e chamar os brasileiros de malandros? Todas essas perguntas permitem ao jovem conhecer um pouco mais sobre si mesmo e sobre o seu mundo. Esse conhecimento é vital, pois sem ele, o jovem poderá ser a mesma pessoa, com os mesmos comportamentos, até o fim de sua vida.
A transformação de si mesmo é elemento fundamental da vida de alguém e do lugar onde vive. Transformar a si mesmo é uma tarefa ética difícil, uma vez que exige saber ou conhecer-se (a sua história e do seu mundo) ou como chegou a pensar o que pensa, porque possui certos comportamentos, medos, ansiedades. O conhecimento histórico certamente pode entrar em tensão com outros conhecimentos estabelecidos na vida do aluno, mas isso é perfeitamente normal, cabendo ao educando, mediante a orientação de profissionais especializados, conciliar e integrar os saberes, compreendendo as diferentes formas de aprender e de significar o mundo.
O conhecimento histórico pode ser visto como um modo de problematizar a vida. Com a história, aprendemos a interrogar o mundo de uma forma muito específica: a partir da concepção de tempo. Um jovem de 13 anos, por exemplo, diante da tela do computador, pode ler que vacinas são perigosas e que restringem a sua liberdade individual, uma correlação que pode fazer muito sentido num primeiro momento, mas que logo se revela uma ameaça a sua vida. O conhecimento histórico, neste sentido, pode ser uma forma de elevar uma barreira crítica contra fontes de informações perigosas como essa. Um jovem que estudou ou estuda história vai se perguntar por que há pessoas que são contra a vacina. Por que existe um movimento antivacina? É a primeira vez que isso acontece? O que é, afinal de contas, liberdade individual? A vacina tem uma história. A liberdade individual tem uma história. Nem sempre existiram vacinas. Existiram revoltas em razão da vacina. A liberdade individual nem sempre existiu. Existiram guerras e revoluções para que pudéssemos desfrutar dela hoje. Ora, onde aprendemos isso tudo? Nas aulas de História, na escola. Aprender sobre a vacina e sobre a liberdade individual é elemento que diz respeito à vida e à morte, diz respeito a cada um de nós. Entender por que existem movimentos antivacina é tão importante quanto entender por que existem vacinas. Pois, desse modo, poderemos entender a importância da vacinação.
Ciências humanas em perigo
Por tudo isso, o conhecimento crítico, não raro, tem sido visto com temor por aqueles que se valem da desinformação e do medo como forma de governar. A História, como também outras disciplinas do campo das Ciências Humanas, já foram quase completamente excluídas dos currículos escolares (no caso específico da Sociologia e da Filosofia, houve efetivamente exclusão). Considerada desnecessária para os propósitos de governantes autoritários, como aqueles da Ditadura Civil Militar (1964-1985), professores de História foram vigiados, presos e, muitos, torturados, pois o que faziam, segundo os ditadores, era subversivo. Em 1971, ano da grande reforma do ensino (Lei 5692/71), a disciplina de História passou a ser ministrada apenas para o Segundo Grau (atual Ensino Médio). No Ensino Fundamental foi criada a disciplina de Estudos Sociais, que juntava História e Geografia, através do Parecer 853/71, do Conselho Federal de Educação. A disciplina História somente voltará a ser ministrada no Ensino Fundamental, com o processo de redemocratização, nos anos 1980.
Há bem pouco tempo, assistimos o nascimento de um movimento chamado Escola “Sem” Partido que, de modo muito semelhante ao que ocorria na Ditadura Civil Militar, pretendeu vigiar aulas e professores de História, criou leis para serem aprovadas em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas com o objetivo de excluir conteúdos e acontecimentos da nossa história denunciados como “ideológicos”. Ainda que se viva, hoje, em um regime democrático, as denúncias e as tentativas de controle sobre as aulas de História e os livros de história persistem. O alvo eram conteúdos como questões de gênero e sexualidade, golpe militar de 1964 e tudo o que demonstrasse a tentativa de construir uma leitura crítica do mundo. Uma onda de denúncias realizadas por familiares ou outras pessoas, às vezes, estranhas ao ambiente escolar, passaram a atormentar a vida de professores que pretendiam fazer da escola o que ela deve ser: um espaço público de debate e conflito de ideias.
Hoje, a História tem cada vez menos espaço nos currículos escolares. De uma diminuição significativa da carga horária da disciplina, chegamos até mesmo a um Ensino Médio no qual não há mais uma disciplina chamada História. O Novo Ensino Médio criou um currículo por áreas do conhecimento. Criticado por inúmeros intelectuais e pensadores do campo educacional, vinculados às Universidades brasileiras, o Novo Ensino Médio criou a área das Ciências Humanas e suas Tecnologias, que agrega disciplinas importantes como Geografia, História, Ciências Sociais e Filosofia. O pior e não menos importante é que a carga horária reservada aos estudos disciplinares foi amplamente reduzida. A especificidade da explicação e da compreensão do mundo criada pelos estudos históricos terá neste novo desenho do Ensino Médio muito pouco espaço. Ainda que não se possa dispensar a interdisciplinaridade, acredita-se que ela deva ser feita por conceitos, temas e interpretações do mundo específicas e singulares a cada disciplina. A riqueza dos diálogos entre a Geografia, as Ciências Sociais, a Filosofia e a História reside, justamente, na densidade e na complexidade dos conceitos que cada disciplina utiliza para explicar a realidade.
Não há cidadania sem História. A história na sala de aula é capaz de dialogar com as diferenças que existem em nosso mundo. A história mostra que o mundo é efetivamente múltiplo e, portanto, não pode ser reduzido a apenas um sentido. Aprender história é se abrir aos infinitos sentidos que pode ter a vida, e, portanto, se tornar cidadão de um país exige a capacidade de conviver com diferentes sentidos, com diferentes modos de explicar a realidade e de criar soluções para os problemas que se apresentam. Desse modo, o cidadão será sempre resistente às ditaduras, às tiranias e, sobretudo, ao controle e à vigilância.
Por fim, sabemos bem que a história na sala de aula não é o único modo de se encontrar com mundos plurais, com pessoas diferentes de nós, nem é o único meio de se relacionar com o passado. Mas, essa aula pode trazer para si mesma histórias ainda não contadas, histórias já contadas, memórias de diferentes povos e grupos identitários e colocar tudo isso em diálogo. O resultado ideal seria permitir que, ao conhecer pessoas diferentes de si mesmo e ao conhecer mais sobre si mesmo, de maneira afirmativa e positiva, os estudantes possam pensar sobre o seu presente e tentar criar relações mais respeitosas entre os seres do mundo.
A aula de história propõe uma transformação de si mesmo. Uma ética de si. Nela se aprende conceitos, mas também se aprende as relações entre os seres. Não relações baseadas na tirania e no autoritarismo, mas relações respeitosas, de aprendizagens e de ampliação daquilo que se entendia ser o mundo. Estudar História nos deixa mais abertos “a eterna novidade do mundo”. Ao excluir a História dos currículos impedimos que as novas gerações sejam capazes de pensar outras ideias para adiar o “nosso fim do mundo”, como diz o pensador indígena Ailton Krenak, para resolver os problemas que a eles se apresentarão e para entender, afinal de contas, como chegamos até aqui. Excluir a História dos currículos é um pouco como roubar o futuro das novas gerações.
Fonte: Café História
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