Amina Filali tinha 15 anos quando contou aos pais que havia sido estuprada.
A família, “seguindo o conselho de um funcionário da Justiça”, segundo disse o pai da menor de idade, a obrigou a se casar com o estuprador, um homem de 25 anos.
Meses depois, após denunciar diversas agressões, a adolescente se matou aos 16 anos.
Amina morreu em 2012 em um pequeno povoado no Marrocos, e seu caso emblemático desencadeou protestos e campanhas de grupos de mulheres ao redor do país.
Dois anos depois, o Parlamento do Marrocos enfim derrubou a lei que permitia ao estuprador escapar da Justiça se casando com a vítima.
Mas isso ainda é realidade em diversas partes do mundo, incluindo a América Latina, segundo o recente relatório do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) intitulado “Meu corpo me pertence”.
Segundo o documento, quase metade das mulheres em 57 países em desenvolvimento não têm autonomia sobre seus corpos, e lhes são negados os direitos de decidir se desejam ter relações sexuais, se podem usar métodos contraceptivos ou se podem buscar atendimento de saúde, por exemplo.
Isso “deveria indignar a todos nós”, disse a diretora-executiva do UNFPA, Natalia Kanem. “Em essência, centenas de milhões de mulheres e meninas não são donas dos próprios corpos. Suas vidas são governadas por outros.”
O estupro e as leis que perdoam o estuprador são apenas dois exemplos em uma longa lista de violações que também inclui casos como mutilação genital ou testes de virgindade.
E mesmo em países que revogaram regras que livram o estuprador caso ele se case com a vítima, outras práticas ainda permitidas por lei podem acabar tendo o mesmo resultado.
Quais países têm leis como essas?
O relatório da ONU cita como uma de suas fontes relatórios da ONG internacional Equality Now, com sede em Washington.
Em seu relatório de 2017, Equality Now destacou vários exemplos de países no Oriente Médio e Norte da África onde um estuprador pode escapar da Justiça por meio do casamento: Iraque, Bahrein, Líbia, Kuwait, Palestina, Tunísia, Jordânia e Líbano.
“Depois de nosso relatório e de outras campanhas, a Tunísia, a Jordânia e o Líbano acabaram com essas leis em 2017, e a Palestina fez o mesmo em 2018 “, disse Bárbara Jiménez, advogada especializada em direitos das mulheres e representante do Equality Now para Américas, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Outros exemplos citados no relatório da ONU são Angola, Argélia, Camarões, Guiné Equatorial, Eritreia, Síria e Tajiquistão.
Vítimas casadas com seus estupradores ficam presas a relacionamentos que as expõem a novos estupros em potencial e outras agressões pelo resto da vida.
“Em muitas ocasiões essas leis existem porque o que se tenta ‘proteger’ aqui é a honra da família, o nome, a honra da vítima”, acrescentou Jiménez.
A “desonra” pela perda da virgindade é vista pelas famílias como um mal maior do que a integridade de suas filhas.
Esses padrões também existiam na Europa. A Itália, por exemplo, os eliminou em 1981 e a França, em 1994.
Qual é a situação na América Latina?
A maioria dos países da região revogou artigos em seus códigos criminais que permitiam que um estuprador fugisse da justiça casando-se com sua vítima.
Mas essas mudanças legais são incrivelmente recentes. Por exemplo, regras assim foram eliminadas no Uruguai em 2006, na Costa Rica em 2007 e na Bolívia em 2013.
No Brasil, uma lei promulgada em 2005 extinguiu o trecho do Código Penal que previa o casamento como forma de extinguir a punição para casos de estupro.
No entanto, um artigo no Código Civil deixava margem para encerrar a punição se houvesse casamento entre agressor e vítima. Esse trecho foi modificado em 2019.
Atualmente um país da região latino-americana, a República Dominicana, ainda possui um artigo em seu Código Penal que permite ao autor de uma violação escapar de sua sentença mediante casamento.
Na Venezuela, decisão judicial derrubou benefício a estuprador
O Código Penal venezuelano dispõe no artigo 393: “Os culpados de qualquer dos crimes previstos nos artigos 374, 375, 376, 378, 387, 388 e 389 estarão isentos de pena se antes da condenação casarem com o ofendido, e o julgamento cessará em todos os pontos em tudo o que se relacione com a pena correspondente a esses atos puníveis. Se o casamento ocorrer depois da condenação, cessará a execução das penas e suas consequências criminais”, explicou Vanessa Blanco, representante na Venezuela do “Jóvenas Latidas”, movimento latino-americano que luta pelos direitos das meninas e mulheres.
“Os artigos 374, 375 e 376 falam de estupro.” E acrescenta: “Quando o Código Penal foi reformado em 2005, o Artigo 393 não foi eliminado”.
No entanto, é necessário esclarecer que “o artigo 393 do Código Penal (reformado em 2005) foi anulado de ofício” e reescrito “pela Câmara Constitucional no julgamento nº 695/2015 de 2 de junho de 2015”, explica à BBC News Mundo José Ignacio Hernández, professor de Direito da Universidade Católica de Caracas e pesquisador da Harvard Kennedy School.
A sentença trouxe duas modificações que, em suma, deixaram de permitir benefícios que incidem em caso de casamento, visto que se entendeu que os crimes referidos no artigo 393 do Código Penal não podem levar a situações de impunidade contrárias à Lei Orgânica do Direito da Mulher a uma Vida Livre de Violência.
“Por esta razão, a Venezuela não pode ser incluída nos países em que um estuprador pode ter benefícios se casar com a vítima (não com base no Código Penal vigente, mas na sentença comentada da Câmara Constitucional)”, conclui Hernández.
O caso da República Dominicana
“O Código Penal em vigor na República Dominicana desde 1884 tem uma norma (artigo 356) em que o agressor sexual de um menor de idade, incluindo incesto, é liberado do processo penal se ele se casar com ela”, disse à BBC News Mundo a advogada dominicana Patricia M. Santana Nina, especialista em Direito Constitucional com Estudos de Gênero e Violência.
“Em outras palavras, o crime é perdoado se o agressor se casar com a vítima. Esta disposição foi implicitamente revogada recentemente, em janeiro de 2021, pela Lei nº 1-21 que proíbe o casamento com menores de 18 anos. No entanto, há um projeto de lei em tramitação no país que revogaria totalmente o texto do Código Penal.”
Santana Nina destacou que a lei que perdoa o agressor sexual caso ele se case com um menor de idade “era aplicada com bastante frequência”.
“É uma prática cultural prejudicial contra a qual ainda lutamos, porque, embora o casamento infantil tenha sido proibido, os casamentos precoces continuam.”
Na opinião da advogado, a República Dominicana ainda deve ser incluída na lista de países que permitem a exoneração de um estuprador se ele se casar com sua vítima “porque a norma ainda está em vigor”.
“Um ‘intérprete gênio’ sempre pode aparecer para interpretar o lei para favorecer o agressor”, explica.
Para Santana Nina, “esse tipo de norma se traduz em uma forma de violência contra mulheres e meninas que vem diretamente do Estado dominicano, que, em nossa sociedade, perpetua e aprofunda a discriminação e sua condição de extrema pobreza”.
“Também se traduz em uma sentença de viver em meio a círculos de violência de gênero, com exposição à gravidez infantil e forçada (já que, neste país, o aborto é criminalizado sem exceções).”
Casamentos infantis
Mesmo em países que não possuem mais normas que livram o estuprador em caso de casamento, outras práticas podem ter efeito semelhante, explica Bárbara Jiménez, da ONG Equality Now.
Vários países da América Latina permitem o casamento de adolescentes com menos de 18 anos desde que tenham autorização do pai ou da mãe, do tutor ou da autoridade judiciária.
“Essas leis ainda têm essas exceções que permitem que uma família autorize uma menina a se casar com um homem que pode ter sido um agressor sexual, e esse agressor escapará da Justiça, da mesma forma como se houvesse uma legislação que livrasse o estuprador de sua condenação.”,
“Isso acontece no campo, onde as famílias casam a menina, a fim de preservar a honra ou a segurança econômica da adolescente, principalmente se ela engravidar. Isso acontece principalmente nas áreas rurais e nas culturas indígenas”.
Jiménez cita como exemplos de países que permitem o casamento de menores de 18 anos com consentimento dos pais: Cuba (idade mínima 14 anos), Bolívia (16 anos), Brasil (16 anos) e Peru (16 anos). Nos Estados Unidos, o casamento antes dos 18 anos é atualmente legal em 46 Estados americanos (apenas Delaware, Nova Jersey, Minnesota e Pensilvânia definiram a idade mínima de 18 anos e removeram todas as exceções).
O casamento infantil e os abusos que essa prática possibilita estão arraigados em muitos países. O Níger, por exemplo, tem a taxa de prevalência de casamento infantil mais alta do mundo (76% das meninas se casam antes dos 18 anos)”, segundo o relatório do UNFPA.
Uniões informais
Há casos em que o agressor sexual pode escapar da Justiça mesmo sem casamento.
“Na região da América Latina existe o fenômeno das uniões informais. Isso ainda permite as uniões de meninas com pessoas mais velhas”, explicou Jiménez.
“As meninas costumam ir de sua casa para a casa do homem com quem estão unidas, muitas vezes vão morar sob o teto da família do homem, às vezes como a única possibilidade econômica de sair de casa.”
No caso da Bolívia, por exemplo, “segundo reportagem jornalística, a união ou coexistência de meninas menores de 15 anos existe e é uma realidade, ainda que segundo a legislação boliviana seja crime um adulto viver com uma menina ou adolescente”, disse à BBC News Mundo Patricia Brañez, representante na Bolívia do Cladem (Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
Na Bolívia, cerca de 22% das adolescentes se casaram antes dos 18 anos e 3% antes dos 15 anos, de acordo com o relatório do Unicef de 2015 “Uma Abordagem para a Situação de Adolescentes e Jovens na América Latina e no Caribe” .
“Segundo Pesquisa Domiciliar de 2017, pelo menos 12.500 mulheres, entre 12 e 17 anos, declararam viver em concubinato. Esses dados também mostram que 0,01% das meninas entre 12 e 14 anos são mães”, acrescentou Brañez.
“Aniquilação do espírito”
“É inaceitável que em 2021 na República Dominicana e em outros países ainda tenhamos disposições legais que contenham a possibilidade de um estuprador escapar da Justiça caso se case com a vítima, e que isso aconteça em crimes tão graves como a violência sexual”, disse Jiménez, da ONG Equality Now.
“Também é inaceitável que na lei federal dos Estados Unidos o casamento infantil seja visto como uma defesa válida contra a violação legal, e é inaceitável que nos países latino-americanos, com algumas exceções, o casamento de menores de 18 anos seja permitido”.
“Mudar a lei é o primeiro passo para eliminar o crime, a iniquidade e essas práticas nocivas que limitam o desenvolvimento e a plena autonomia de meninas e adolescentes”.
Para Natalia Kanem, diretora-executiva do UNFPA, “uma mulher que tem controle sobre seu corpo tem mais chances de ser fortalecida em outras áreas de sua vida para prosperar”.
A negação da autonomia corporal, por outro lado, por meio de leis que livram o estuprador e outras práticas, é, segundo a chefe do UNFPA, “nada menos que um aniquilamento do espírito, e isso deve acabar”.
Fonte: BBC News Brasil
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