“Agora funcionou!”
As palavras saíram dos alto-falantes do celular, bem quando eu começava a considerar a remarcação da entrevista para uma data com menos imprevistos. Era uma sexta-feira à noite de calor em fevereiro, e, após três desastres consecutivos, dois computadores reiniciados e a frustração que acompanha esse tipo de insucesso, o quarto serviço de videoconferência finalmente permitiu que os dois lados se ouvissem.
Mesmo antes de anoitecer, a vida do meu entrevistado, o professor da Universidade de Brasília Dr. Reuber de Albuquerque Brandão, já tinha começado a lhe pregar peças mais cedo naquele mesmo dia, com imprevistos que mudaram toda a sua agenda, incluindo o horário da nossa conversa.
Eu aciono o gravador de voz do computador, para que o microfone pouco confiável do notebook capte o melhor que consegue os sons da conversa feita através do celular. Torço para que o resultado disso seja algo possível de se transcrever.
A conversa que se segue – felizmente gravada com bastante sucesso – é uma das melhores de minha curta carreira de comunicador de ciência. O suficiente para me lembrar do porquê ter escolhido a profissão: contar, com base em dados do passado, histórias sobre futuros possíveis nos quais se possa acreditar.
Os dados que embasam esta história vêm de vinte anos de pesquisa na Região da Trijunção, no encontro entre o sudoeste da Bahia, o noroeste de Minas Gerais e o nordeste de Goiás, onde um grupo de proprietários de terra, cientistas e gestores tentaram implementar uma visão de uso da terra que aliasse a produção agrícola, a conservação da natureza e o desenvolvimento local.
De um caiaque para o sertão
“A Trijunção virou um local de encontro,” afirma Brandão. “Além da junção geográfica, ela também acabou por juntar pessoas muito diferentes, com histórias muito diferentes. E, ao final de muitos anos de trabalho, esse livro é a culminação de vários anos de pesquisa, nos quais a gente finalmente conseguiu juntar uma galera grande, um grupo bem diversos de conhecimentos, habilidades e interesses.”, completa ele.
O livro em questão, “História Natural do Sertão da Trijunção do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”, lançado em 2020, é o motivo de nossa conversa. A publicação conta com trinta e um autores de seus onze capítulos, totalizando 261 páginas recheadas de texto, fotografias e reproduções de obras de arte inspiradas pelo Sertão da Trijunção, região de 880 mil hectares de Cerrado com elementos de Caatinga. Brandão foi um dos editores, além de coordenador geral da obra, que compila uma série de capítulos sobre a pesquisa biológica e hidrológica na região, misturados com relatos sobre a história do local e de sua relação com a conservação da natureza aliada ao uso da terra.
Reuber, que se descobriu zoólogo ainda criança – ao aprender que a profissão de veterinário olhava para um ângulo muito diferente da vida animal do que o enfoque que ele buscava – é um ótimo candidato para compilar tanto ciência quanto impressões subjetivas sobre a Trijunção. Isto porque ele esteve lá desde o princípio da implementação de um novo projeto regional, por parte de proprietários de terra e empreendimentos que se estabeleceram por ali com a intenção de criar reservas em suas propriedades e promover uma agricultura que respeitasse o Cerrado.
“Eu participava de grupos de ambientalistas em Brasília desde muito novo, eu acompanhava o pessoal em ações que iam de limpar cachoeiras até tocar violão no meio do mato à noite”, conta o pesquisador, à época um estudante de graduação em Biologia da UnB. Em meio a um desses encontros, Reuber conheceu um funcionário do IBAMA que o convidou a secretariar um projeto no Amazonas.
“Era na época da Eco 92, e acabou virando uma das propagandas da então Secretaria do Meio Ambiente [órgão que voltaria a ser ministério ainda em 1992]. Parte da expedição era fazer o trajeto entre Coari e Manaus, mais de 400 km de Rio Solimões, em duplas de caiaque. E eu dei um jeito de sair do caiaque e ir parar num barco de cientistas, onde estava Judith Cortesão, que a gente homenageia no livro. E a Judith Cortesão tinha um secretário pessoal que era o Theodoro Machado.”
Machado, um dos autores do livro, estava adquirindo uma propriedade na Trijunção, e convidou alguns dos amigos que fez nesta expedição a conhecerem o local. Durante a visita, Reuber aproveitou para coletar alguns répteis e anfíbios, possivelmente as primeiras coletas biológicas da região, que seriam a base para as décadas de pesquisa que se sucederam, compiladas na publicação do ano passado.
Cultura, História e Ciência
A introdução geral do livro destaca que Trijunção, além de três estados, também reúne “cultura, história e ciência”. As coletas de herpetofauna (nome que engloba répteis e anfíbios de um local) conduzidas informalmente por Reuber logo foram seguidas por estudos da flora e da fauna da região.
A constatação destes estudos – muitos dos quais originaram capítulos do livro – é a de que a Trijunção é um dos pontos de Cerrado mais bem conservados do Brasil. Com treze Unidades de Conservação protegendo cerca 30% de toda a região (256.875 hectares), muitas destas reservas particulares, a região pode ser considerada um refúgio de espécies do bioma. Ao longo do território Brasileiro, o Cerrado tem sido substituído em velocidade alarmante por empreendimentos agrícolas que, ao contrário dos que moveram a Trijunção na década de 1990, não têm a conservação da biodiversidade no centro das preocupações. Mesmo a Trijunção, lar do maior Parque Nacional do Cerrado, o Parna Grande Sertão Veredas, já sente os efeitos da intensificação agrícola do Cerrado brasileiro.
“Teve uma intensificação da agricultura na região. Soja também, mas outros produtos”, conta a professora da Universidade Federal de Lavras Dra. Renata Dias Françoso Brandão, explicando que “se você observa uma imagem de satélite, vai enxergar em uma região bastante pequena uma quantidade de pivôs agrícolas que vão de dezenas a uma centena. E isso tudo em um processo de duas décadas.”
Renata é formada em Engenharia Florestal, uma graduação que capacita profissionais a atuar em áreas tão diversas quanto a conservação de florestas ou a análise da resistência de chapas de madeira. Desde a graduação, porém, ela teve certeza de que o ângulo ecológico de sua formação era o que mais a cativava.
Além de autora e editora do livro da Trijunção, a ecóloga cuidou da produção gráfica da obra. Além da junção de estados, biomas e histórias, a Trijunção representa para Reuber e Renata a junção de suas vidas: hoje casados, eles se conheceram trabalhando em campo, na paisagem adornada por cerrado denso e carrasco de caatinga.
Entre assuntos diversos demais para caberem em uma única reportagem, Renata deu uma ênfase especial à diminuição da disponibilidade de água na região devido ao rebaixamento do lençol freático, que ameaça tanto a agricultura quanto a vida selvagem da Trijunção.
“Existem lagoas da região, tanto temporárias quanto perenes, que estão começando a desaparecer”, ela comenta. “Para o Reuber, que trabalha com anfíbios e outros animais que dependem de corpos d’água como jacarés, isso é um desespero. Como vai ficar uma população de jacarés sem água? Para onde eles vão dispersar?”
Um dos capítulos do livro é inteiramente dedicado ao jacaré-paguá, um dos menores e menos estudados crocodilianos do mundo, apesar de ocorrer da Venezuela ao Paraguai, distribuição ampla que inclui cinco biomas brasileiros. Compilando tudo o que se conhecia anteriormente – e, principalmente, os enigmas sobre essa espécie pouco conhecida pela ciência – o capítulo traz uma série de dados derivados de estudos da dieta do jacaré-paguá na região da Trijunção, onde eles se alimentam principalmente de invertebrados como besouros, borboletas e aranhas. Aparentemente, o paguá – ao contrário do significado de seu nome popular, que seria algo como “jacaré abestado” – chega a fazer incursões em terra para procurar por essas pequenas presas. Na água, além de outros invertebrados, capturam peixes e aves.
A Trijunção é também lar de uma diversidade imensa de anfíbios, grupo particularmente sensível à seca, por sua reprodução completamente dependente da água. O capítulo sobre a herpetofauna do Parna Grande Sertão Veredas destaca 47 espécies de anfíbios catalogadas, o que corresponde a quase 25% da diversidade conhecida de anfíbios de todo o Cerrado.
O sumiço das águas (e uma miragem de futuro)
Os efeitos do desaparecimento de lagoas sobre a fauna não se atêm a animais aquáticos e subaquáticos. A Dra. Renata explica que, em épocas de seca, com menos água disponível na paisagem, era comum ver animais como lobos-guará e veados-campeiros buscando as lagoas para se hidratar. E existe ainda outro efeito, preocupante para a viabilidade ecológica e econômica da área em longo prazo.
“Além dos animais que dependem de água, tem também o risco para a própria vegetação”, conta Renata. “Eu estive lá no ano passado para instalar parcelas para amostrar a vegetação. A gente pôde observar que, nas parcelas próximas às lagoas, está havendo uma mortalidade altíssima de pequi. A gente acredita que o lençol freático está abaixando a ponto de impedir o acesso à água por parte das raízes dessas árvores.”
Um dos capítulos do livro da Trijunção – escrito pelos geólogos Maria Tereza Pantoja Gaspar, da Coordenação de Águas Subterrâneas da Agência Nacional de Águas, e José Eloi Guimarães, professor da UnB – se debruça sobre a complexa dinâmica hídrica da região. De forma muito didática, os autores discutem possíveis causas do rebaixamento do lençol freático, como a alteração do regime de chuvas na região e a intensificação de um tipo de agricultura que dificulta o retorno das águas de chuva para os aquíferos subterrâneos. A Dra. Renata comenta brevemente:
“É um conjunto de coisas. Não é nada isoladamente, mas essa alteração está sendo bastante importante. A gente enxerga ao vivo. Estando em campo, a gente vê nitidamente que essa alteração está acontecendo.”
Mesmo com os problemas recentes, a grande porção de terras protegidas na região permite que a Trijunção seja um dos principais refúgios de biodiversidade na visão do Dr. Reuber Brandão, que a considera “um dos remanescentes mais importantes que sobraram no grande Oeste da Bahia”. A presença de uma grande diversidade de espécies endêmicas do Cerrado e da Caatinga.
“E tem um processo de retorno da fauna”, como explica a Dra. Renata. “Isso é uma coisa que eu também vivenciei na última década. Em algum momento, teve um incentivo de plantio de Pinus na região, que veio com a aplicação de muito veneno para formiga. Isso acabou com uma série de espécies. Inclusive o tamanduá-bandeira desapareceu por um grande período.”
Segundo a pesquisadora, isso remonta a um período anterior à criação do Parna Grande Sertão Veredas, onde mesmo uma população muito menor do que a atual tinha uma prática de caça muito mais intensa. Mas, com a diminuição da cultura de caça e com o fim do empreendimento com pinheiros para corte, a fauna começou a retornar. Renata comenta o efeito:
“É mais comum a gente ver hoje animais em bandos, como caititus, alguns veados, lobo-guará, onça… muitos mamíferos de grande porte na região. E a gente tem conseguido observar isso com muito mais frequência hoje em dia do que dez anos atrás.”
Melhores usos do solo, melhores usos da vida
Em uma entrevista marcada por problemas de informática e pelo revezamento para que o casal de pesquisadores cuide dos filhos, volto a conversar com o Dr. Reuber em outro dispositivo. É a nossa quinta tentativa de videoconferência e, dessa vez, funciona de primeira.
“A maior esperança que nós temos hoje com relação a biodiversidade em áreas particulares é realmente o turismo, a atividade turística, né?”, conta Reuber, com argumentos similares aos de outro entrevistado com quem conversei para ((o)) eco. Tendo na Fazenda Trijunção, propriedade com quase 2 mil hectares protegidos como RPPN, um exemplo de como o turismo ecológico pode tornar a natureza conservada algo lucrativo, o pesquisador comenta um ponto do ecoturismo que pode ser tanto uma vantagem quanto um empecilho:
“Essas áreas de RPPN não vão ser convertidas para uso econômico. Com isso, a Fazenda começou a investir fortemente em turismo qualificado para onde as pessoas vão buscando experiências únicas. Por exemplo, ver a via láctea refletida num espelho d’água, da lagoa do Rio Formoso, que é uma experiência espetacular, parece que você está flutuando em cima do Espaço. Ou então encontrar lobos-guarás bem de perto.”
Projetos de turismo baseado em observação de fauna carismática levam entusiastas da natureza à proximidade com animais como o lobo-guará, experiência na qual a Pousada Trijunção tem apostado, em parceria com a Associação Onçafari. Mas o segredo do turismo baseado em experiências únicas, Reuber ressalta, é que ele corre o risco de tornar áreas com atributos parecidos redundantes. Ele defende ainda que deveria haver outros sistemas de incentivo para proprietários criarem reservas naturais em suas áreas privadas.
“São poucas as Unidades de Conservação no Oeste do Estado da Bahia que conservam aqueles rios e aquela situação geológica, aquela história interessantíssima do ponto de vista de evolução do bioma. Todos os proprietários que usam a água à jusante estão dependendo da incorporação de água no Cerrado, mantida na Trijunção. Isso tem de ser, de alguma forma, remunerado. Então a legislação de pagamento a serviços ambientais é uma coisa que tem de ser muito incentivada. Porque eles têm de entender que estão provendo, com a conservação, aquilo que o mundo quer e já percebeu que é importante: a proteção daquilo que vai garantir nosso futuro.”
Com base no que já viu ao longo de sua carreira na pesquisa, e em exemplos de biopatentes ao redor do mundo, Reuber vê no incentivo à bioprospecção a solução para alguns dos problemas do Brasil. Estes incluem a baixa absorção de profissionais pós-graduados pelo mercado de trabalho e, claro, a mudança de percepção de valor da natureza conservada como fonte de possíveis inovações de alto valor agregado.
“Que mecanismos nós possuímos para permitir que proprietários de terra se tornem também proprietários de produtos de bioprospecção?”, pergunta Reuber, lembrando que “o conhecimento da biodiversidade tem de prover benefícios para toda a coletividade. Como é que a gente pega, por exemplo, a mangaba, e a transforma em um produto de consumo importante?”, pergunta ele novamente.
A ideia de que este tipo de pergunta é de interesse apenas de Universidades e Institutos de Pesquisa é uma grande barreira à percepção de que conservar a natureza pode andar junto do desenvolvimento econômico. E isso não exige necessariamente uma propriedade de larga escala, se houver um plano nacional que abra caminhos para este tipo de empreendimento, segundo Reuber:
“Independente da escala, quem está, de alguma forma, contribuindo para a manutenção de um uso de solo que é menos agressivo do que desmatar tudo e converter em uma paisagem monótona composta, às vezes, por uma espécie apenas… consegue manter a presença na terra sem ter de prejudicar o futuro. Aquela coisa da pequena propriedade, da pequena família, que faz, por exemplo, geleia de amora para vender… Por que eles não podem também preparar e vender proteínas extraídas de veneno de aranha, ou de serpente? E aí podem ter cooperativas, reservas extrativistas, populações tradicionais que façam a mesma coisa.”
E faz, por fim, mais uma pergunta: “Como é que você faz com que isso se popularize?”
As respostas para estas perguntas não estão nas páginas de “História Natural do Sertão da Trijunção do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”. As respostas que se pode encontrar no livro dizem respeito ao potencial de áreas protegidas em proteger a natureza de onde as perguntas se derivam, assim como a resposta para o que acontece com uma região conservada à medida que ela é convertida em uma fronteira agrícola de alta demanda por água.
As páginas a respeito de como o Brasil aprendeu com histórias como estas ainda estão por serem escritas.
*As imagens que ilustram essa reportagem — com exceção da última — estão presentes no livro “História Natural do Sertão da Trijunção do Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil”, e foram gentilmente cedidas pelo Editor.
Fonte: O Eco
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