A quase três meses do início da vacinação contra a Covid-19 na Terra Indígena Yanomami, localizada nos estados de Roraima e Amazonas, se acumulam denúncias de irregularidades que põem em risco a imunização da população indígena.
De acordo com lideranças no território, doses de vacina estariam sendo vendidas a garimpeiros em troca de ouro. Os invasores também estão sendo acusados de disseminar notícias falsas sobre a vacinação, repetindo um padrão já identificado em outras regiões do Brasil.
Segundo dados oficiais, menos da metade dos Yanomami e Ye’kwana maiores de 18 anos recebeu a segunda dose da vacina. Enquanto isso, autoridades do estado de Roraima pressionam para que parte das doses exclusivas dos indígenas seja desviada para não indígenas.
Em ofício encaminhado em 8 de abril ao Distrito Sanitário Especial Indigena que atua na área (DSEI-Yanomami), à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Ministério Público, a Hutukara Associação Yanomami pede respostas urgentes a estas situações escandalosas.
No documento, a Hutukara Associação Yanomami pontua que, em janeiro, na região de Homoxi (uma das mais afetadas pelo garimpo), indígenas denunciaram que uma funcionária do DSEI-Y estaria aplicando doses em garimpeiros em troca de ouro.
Uma liderança denunciou à organização que na comunidade de Uxiu um técnico de enfermagem havia levado as vacinas destinadas aos indígenas para um acampamento de garimpeiros nas proximidades.
“Essas informações são verdadeiras, passadas pelas lideranças desses locais. Nessas regiões é bem comum a troca de materiais por ouro, como remédios, e infelizmente, às vezes esses profissionais acabam se deixando levar”, lamenta Dario Kopenawa, vice-presidente da Hutukara.
Notícias falsas
A disseminação de notícias falsas sobre a vacina também é uma preocupação para as lideranças da Terra Yanomami. Cerca de nove aldeias se recusam a tomá-la, influenciadas por mentiras espalhadas pelos garimpeiros.
“’Vocês, Yanomami, não podem tomar essas vacinas, porque o governo quer matar vocês’, é o que os garimpeiros estão espalhando e, por isso, os nossos parentes estão recusando as vacinas. Já as comunidades que não estão próximas ao garimpo, estão tomando”, afirma Dario.
De acordo com dados do DSEI-Y, dos 12.253 indígenas aptos a serem vacinados, 8.721 (69,7%) receberam a primeira dose e somente 5.415 (43%) a segunda.
A segunda dose da Coronavac, vacina elaborada pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, deve ser aplicada entre 14 e 28 dias depois da primeira. O atraso pode comprometer a efetividade da imunização.
A Hutukara emitiu um comunicado recentemente em que destaca as falhas do DSEI-Y. O documento ressalta, além dos dados de vacinação, a ausência de equipe de saúde em algumas comunidades — em razão da massiva presença garimpeira — e a falta de transparência quanto à quantidade de vacinas disponibilizadas e aplicadas.
“Particularmente preocupante foi a constatação de que, em algumas comunidades, nenhum indígena havia sido vacinado”, denunciou a Hutukara.
Segundo a organização, que coleta informações do território Yanomami por meio da radiofonia, nas localidades de Hokolasimu e Pewau os indígenas se recusaram a tomar a vacina após a circulação de notícias falsas via garimpeiros.
Dario lembra que, às falhas na vacinação, se somam problemas estruturais antigos no atendimento à saúde dos indígenas. “Alguns polos-base estão fechados. As comunidades não têm profissionais de saúde, medicamentos ou teste rápido”, lamenta.
“Estamos muito preocupados, pois se o parente não se vacinar, vai se infectar e infectar a comunidade. É lamentável. Esse descaso com a saúde na Terra Indígena Yanomami já acontece há muitos anos, tanto que de 2020 ao início deste ano, 22 crianças morreram dentro das comunidades por falta de assistência, profissionais e medicação. É muito revoltante!”.
“Foram disponibilizadas mais de 26 mil vacinas para a população da Terra Yanomami e não se planejaram para vacinar. Vamos cobrar o Ministério da Saúde”, avisa Dario.
O comunicado da Hutukara detalha que, dos 37 polos-base de saúde do território, apenas dois cumpriram a meta, com 100% de vacinação. Já os de Alto Padauiri, Apiaú, Baixo Mucajai, Ericó, Hakoma, Haxiu, Palimiú e Parafuri apresentavam 0% percentual da população imunizada, apesar de terem recebido as doses.
Desvio de vacinação
O documento da Hutukara também critica a pressão para que as vacinas ainda não aplicadas, destinadas aos Yanomami, sejam desviadas para a população não indígena de Roraima.
A Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do estado, provocada pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesau), solicitou que as doses que estão estocadas no estado fossem redirecionadas, alegando complexidades logísticas para completar a vacinação indígena.
“Apesar da alegada dificuldade logística, até recentemente o sistema de atendimento à nossa saúde possuía condições mínimas para garantir a imunização das comunidades com agilidade muito maior do que o que estamos vivendo agora. Repudiamos esse tipo de iniciativa que arrisca abandonar os Yanomami descobertos de vacinação em razão de falhas estruturais no atendimento à saúde indígena”, escreve a organização.
O Conselho Municipal de Saúde de Boa Vista, em resolução publicada no Diário Oficial do Município, recomendou, em 6 de abril, que o estoque de doses da vacina destinadas aos indígenas seja direcionado para a população urbana da capital.
Mais de 24 mil doses estão estocadas no estado com destino à população atendida pelo DSEI Yanomami e pelo DSEI Leste de Roraima, que atende a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Segundo o conselho, a recomendação se justifica pela “recusa da parte dos indígenas de serem imunizados contra a Covid-19, devido às suas crenças e costumes”.
No entanto, na Terra Indígena Yanomami, segundo apuração da Hutukara, cerca de nove comunidades, em um conjunto de mais de 300, se negaram a vacinar — por causa de notícias falsas espalhadas principalmente por garimpeiros.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) lançou, na semana passada, uma nota pública se manifestando contra a redistribuição das vacinas destinadas aos povos indígenas.
O CIR destacou a necessidade de organizações indígenas e instituições de saúde representativas terem respeitado “o direito de serem consultados sobre qualquer decisão tomada referente ao que vem em nome da população indígena, conforme Artigo 6º da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”.
Ainda no início desta semana, lideranças Yanomami estiveram reunidas com representantes do Ministério da Saúde, em Boa Vista, e apresentaram diversas denúncias, como a contaminação de rios e igarapés pelo mercúrio, a falta de profissionais de saúde, o fechamento de postos de saúde e a falha na campanha de vacinação contra a Covid-19.
“No entanto, não tivemos nenhuma resposta concreta desses representantes que nos deixassem satisfeitos”, ressalta Dario Kopenawa.
O Instituto Socioambiental entrou em contato com o Ministério da Saúde sobre as denúncias, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Fonte: Conexão Planeta
Comentários