Eleito com uma agenda econômica liberal e um discurso crítico ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro chega à metade do seu mandato metamorfoseado: em dois anos, pouco entregou das promessas de privatização e redução do Estado e, a partir de meados de 2020, sua gestão passou a buscar uma aliança com políticos do Centrão e com a ala mais garantista (menos punitivista) do Supremo Tribunal Federal (STF).
Para analistas ouvidos pela BBC News Brasil, a mudança de postura do presidente na relação com Supremo e Congresso reflete um maior pragmatismo do presidente, conforme aumentaram os obstáculos no seu caminho, como as investigações criminais contra seus filhos e o risco de sofrer um processo de impeachment.
Mas isso não significou um abandono total da retórica radical bolsonarista, ressalta o cientista político Rafael Cortez, da Consultoria Tendências: com a pandemia de coronavírus, o presidente intensificou sua disputa com os governadores, em especial o paulista, João Doria, visto como um provável adversário na eleição presidencial de 2022.
Outro impacto da pandemia foi uma forte expansão dos gastos públicos, na contramão da agenda de austeridade do ministro da Economia, Paulo Guedes. Para os analistas ouvidos, porém, a falta de avanços na prometida agenda liberal reflete mais a ausência de compromisso de Bolsonaro com essas propostas.
“É nítido o isolamento do Ministério da Economia”, afirma a economista Zeina Latif.
Entenda melhor a seguir as três metamorfoses do governo Bolsonaro, na relação com o Congresso, com o STF e na sua política econômica.
Entre tapas e beijos com a velha política
Apesar de ter sido deputado federal por quase três décadas antes de chegar ao Palácio do Planalto, Bolsonaro iniciou seu governo se colocando contra a “velha política” e rechaçando negociar cargos com partidos políticos para construir uma base no Congresso.
“Graças a vocês, eu fui eleito com a campanha mais barata da história. Graças a vocês, conseguimos montar um governo sem conchavos ou acertos políticos, formamos um time de ministros técnicos e capazes para transformar nosso Brasil”, discursou a seus apoiadores em sua posse.
O resultado dessa estratégia foi um governo minoritário no Congresso Nacional, com dificuldade de avançar suas propostas legislativas. Apesar disso, a retórica contra os políticos tradicionais foi insistentemente repetida pelo presidente, seus filhos e aliados políticos, culminando em uma série de atos antidemocráticos nos primeiros meses de 2020, aos quais Bolsonaro compareceu a despeito dos pedidos dos manifestantes pelo fechamento do Congresso e do STF.
Até que entre maio e junho, nota o cientista político Antonio Lavareda, o presidente passou a buscar com mais consistência uma aliança com políticos do Centrão — grupo de partidos sem clara identidade ideológica que costumam aderir ao governo, seja ele qual for, em busca de cargos e verbas para sua base eleitoral.
Para Lavareda, essa mudança marca a passagem do “governo Bolsonaro 1” para o “governo Bolsonaro 2”, em que o presidente se aproxima do presidencialismo de coalizão — uma administração que negocia apoio no Congresso para formar uma base política que lhe dê governabilidade.
“Eu acho que o governo Bolsonaro 1 é uma tentativa curiosa de se fazer um presidente antissistema. O Bolsonaro 2 é um governo que paulatinamente avança na direção da gramática do presidencialismo de coalizão, que é imperativo em um país de regime presidencialista com multipartidarismo. Não é questão de escolha”, ressalta Lavareda, que é presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe).
“Seu governo ainda não entrega ministérios de porteira fechada (para os partidos ocuparem os cargos livremente), mas já vai cedendo (o comando de alguns) órgãos, entregando mais cargos”, exemplifica ainda.
O próprio Bolsonaro reconheceu a distribuição de cargos entre partidos políticos: “Tem cargo na ponta da linha, segundo ou terceiro escalão, que estava na mão de pessoas que são de governos anteriores ao (do ex-presidente Michel) Temer. Trocamos alguns cargos nesse sentido. Atendemos, sim, a alguns partidos nesse sentido (de cargos)”, disse o presidente, em uma transmissão ao vivo no final de maio.
Um exemplo dessa ocupação de escalões inferiores por indicados políticos ocorreu em junho no Ministério da Educação, quando Marcelo Lopes da Ponte, ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira (PP-PI), foi nomeado presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Outros cargos dentro do órgão foram para indicações do PL — Paulo Roberto Aragão Ramalho assumiu a Diretoria de Tecnologia e Inovação do FNDE, enquanto Garigham Amarante Pinto assumiu a Diretoria de Ações Educacionais do fundo.
Outro marco da mudança de postura foi a recriação do Ministério das Comunicações em junho, cujo comando foi dado ao deputado Fábio Faria (PSD-RN), genro do empresário e apresentador do SBT Silvio Santos.
No capítulo mais recente da aliança com o Centrão, Bolsonaro se esforça para que o deputado Arthur Lira (PP-AL) seja eleito presidente da Câmara em fevereiro. A negociação envolve mais cargos e culminou em dezembro na demissão do então ministro do Turismo, Álvaro Antônio, depois que ele acusou o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação do Planalto junto ao Congresso, de querer entregar sua pasta ao Centrão.
Com isso, o comando do ministério passou para as mãos do até então presidente da Embratur, Gilson Machado.
Para Lavareda, Bolsonaro passa a negociar com partidos políticos devido ao “vislumbre do insucesso do presidente antissistema”, já que sua adesão a atos autoritários no início do ano gerou uma “uma articulação do campo democrático” contra ele, com aumento dos pedidos de impeachment e a abertura de um inquérito pelo STF para apurar os organizadores dessas manifestações, investigação que se aproximou de seus filhos Carlos Bolsonaro (vereador do Rio de Janeiro/Republicanos) e Eduardo Bolsonaro (deputado federal por São Paulo/PSL).
Paralelamente, avançaram as investigações contra Flávio Bolsonaro (senador pelo Rio de Janeiro/Republicanos), acusado de ter desviado recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual, em um esquema de rachadinha operado pelo seu ex-assessor e amigo pessoal do presidente Fabrício Queiroz, que foi preso em junho.
“Com os filhos envolvidos com problemas no Judiciário, provavelmente (Bolsonaro) percebeu que a melhor forma de administrar esses problemas não seria no conflito com as instituições. No conflito, não viriam soluções melhores para seus filhos, viriam um avolumar dos problemas”, acredita Lavareda.
Embora o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nunca tenha indicado que poderia iniciar um processo de cassação do mandato de Bolsonaro, “o impeachment no nosso modelo político está sempre no horizonte quando o governo não tem base parlamentar”, afirma o cientista político.
Sai Sergio Moro entra Nunes Marques: a ‘guinada garantista’
Rafael Cortez, da Consultoria Tendências, também vê na maior proximidade com o Centrão uma tentativa de Bolsonaro de “minimizar algum risco mais relevante” para seu mandato e sua família. Na sua visão, porém, a maior guinada provocada por essa estratégia de autoproteção ocorreu na relação do presidente com o Poder Judiciário.
Bolsonaro foi eleito com um forte discurso anticorrupção, na esteira do desgaste causado pela operação Lava Jato sobre a credibilidade dos partidos políticos. Durante a campanha e o início do seu mandato, ele e seus filhos eram fervorosos defensores da prisão após condenação em segunda instância e do fim do foro privilegiado — ao se tornar investigado, porém, Flávio Bolsonaro passou a recorrer na Justiça para garantir seu foro especial.
O apoio retórico de Bolsonaro a pautas anticorrupção foi materializado com a escolha de Sergio Moro, então juiz de grande parte dos casos da Lava Jato, para ministro da Justiça e da Segurança Pública. No entanto, no final de abril deste ano, Moro deixou o governo fazendo fortes acusações de que o presidente estaria tentando interferir na Polícia Federal, o que deu início a uma investigação criminal que segue em curso na Procuradoria-Geral da República (agora sob relatoria do ministro do STF Alexandre de Moraes, após a aposentadoria do ministro Celso de Mello).
Nesse contexto — de rompimento com Moro, avanço de investigações contra a família presidencial e proximidade com o Centrão —, Bolsonaro surpreendeu ao escolher Kassio Nunes Marques para a vaga aberta no Supremo com a saída de Celso de Mello, deixando de lado sua antigas promessas de nomear um ministro “terrivelmente evangélico” e/ou com perfil mais duro no direito penal (o próprio Sergio Moro era cotado publicamente pelo presidente).
Nome sem grande projeção nacional, então desembargador do TRF-1, Nunes Marques foi indicado com a benção do senador e presidente do PP, Ciro Nogueira, um dos maiores expoentes do Centrão, e com a aprovação de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ministros da ala garantista do STF.
São chamados de garantistas os juízes que dão maior peso aos direitos garantidos pela Constituição a investigados e réus. Nunes Marques, que teve longa carreira como advogado antes de entrar para a magistratura, se autointitula um.
Ao se tornar ministro do STF ele assumiu a cadeira de Celso de Mello da Segunda Turma da Corte, colegiado que julga recursos dentro da investigação contra Flávio Bolsonaro. Em um desses recursos, o Ministério Público do Rio de Janeiro tenta reverter o foro especial concedido no final de junho ao senador pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).
Apesar de em 2018 o STF ter restringido o foro privilegiado a crimes relacionados ao atual mandato político, o TJ-RJ decidiu que Flávio ainda tem direito ao foro de deputado estadual no caso da rachadinha, o que passou a investigação da primeira instância judicial para o próprio TJ-RJ. O recurso foi sorteado para relatoria de Gilmar Mendes, que não indicou quando vai colocá-lo em julgamento.
Rafael Cortez nota que a aliança com o Centrão não significou um apoio maior a pautas econômicas do governo no Congresso. Na sua avaliação, é justamente no campo jurídico em que os interesses desse grupo político e da família Bolsonaro confluem.
“Essa identidade de interesses (entre Centrão e Bolsonaro) aparece com mais clareza na relação do mundo da política com as instituições de controle. Nesse sentido, é um casamento mais consistente”, analisa.
“A busca por segurança jurídica da família e do mandato do presidente é que fez com essa metamorfose do governo com o mundo do Judiciário tenha sido mais intensa e me parece mais consistente ao longo do tempo”, acrescentou.
Na economia, privatizações e corte de gastos não viraram realidade
Outro campo em que a prática do governo Bolsonaro se distanciou de seu discurso de campanha foi o econômico. Após dois anos, o presidente segue longe de entregar promessas feitas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como grandes privatizações e zerar o rombo nas contas públicas.
A aliança com o economista ainda na corrida eleitoral foi importante para o então candidato atrair o apoio do mercado financeiro e do empresariado nacional — Bolsonaro dizia que não entendia de economia e que Guedes comandaria a área com autonomia. No entanto, logo no início do mandato isso não se mostrou verdadeiro, com o presidente buscando atender aos interesses de sua base de apoio.
No caso da reforma da Previdência, cuja aprovação em 2019 é atribuída em boa parte ao trabalho de convencimento da sociedade e de negociação no Congresso herdado do governo Temer, o governo propôs aumento na remuneração dos militares como forma de compensar as mudanças na aposentadoria da categoria.
Atendendo também a uma demanda das Forças Armadas, Bolsonaro criou uma nova estatal, a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea, muito embora uma das principais bandeiras de Guedes seja privatizar as empresas do governo. Após dois anos, nenhuma estatal foi vendida.
Além da agenda de privatização que não anda, propostas do Ministério da Economia para reduzir os gastos públicos, como a reforma administrativa e a chamada PEC Emergencial, também estão empacadas no Legislativo.
Com a pandemia de coronavírus, o Congresso aprovou neste ano uma emenda constitucional — chamada de Orçamento de Guerra — que permitiu ao governo elevar fortemente as despesas para enfrentar a crise na saúde e na economia, com destaque para a criação do auxílio emergencial, benefício inicialmente de R$ 600, que depois foi reduzido para R$ 300, e cuja última parcela foi paga em dezembro.
Bolsonaro e sua equipe econômica não conseguiram entrar em consenso sobre como criar um novo programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família para compensar o fim do auxílio emergencial, o que deixará milhões de brasileiros sem renda a partir de janeiro e pode reverter a recente alta de popularidade do presidente.
“A pandemia retirou ainda mais a força política das teses associadas à equipe de Paulo Guedes. Mas a questão central (que dificulta a implementação das propostas do ministro da Economia) é a postura do próprio presidente em relação à agenda econômica. De alguma maneira, era um casamento meio artificial essa relação do Bolsonaro com Guedes”, afirma Rafael Cortez.
Essa falta de apoio do presidente à agenda econômica acabou levando a uma debandada da equipe de Guedes, como o próprio ministro reconheceu em agosto. Desde o início do governo, deixaram seus cargos Joaquim Levy (BNDES), Marcos Cintra (Receita Federal), Marcos Troyjo (Comércio Exterior), Rubem Novaes (Banco do Brasil), Caio Megale (Fazenda), Mansueto Almeida (Tesouro Nacional), Salim Mattar (secretário especial de desestatização), e Paulo Uebel (secretário especial de desburocratização).
“Hoje houve uma debandada? Hoje houve uma debandada. Salim falou: ‘A privatização não está andando, prefiro sair’. Uebel disse: ‘A reforma administrativa não está sendo enviada, prefiro sair’. Esse é o fato, essa é a verdade”, disse Guedes em agosto.
Para a consultora Zeina Latif, ex-economista-chefe da XP Investimentos, Guedes tinha “avaliações erradas sobre condução de política econômica” e “vendeu uma imagem (equivocada) de que é fácil privatizar, de que abrir a economia é fácil”.
“Ele gerou essa expectativa inflada que quem acompanha economia sabia que não fazia sentido. Era impossível entregar. E, o que acho ainda mais problemático, ele não conseguiu convencer internamente o governo da importância da sua agenda. É nítido o isolamento do Ministério da Economia”, ressalta.
Como a agenda de corte de gastos está empacada, Latif acredita que em 2021 “vai ter furo no teto de gastos”, ou seja, alguma flexibilização na regra constitucional que limita o aumento das despesas do governo à inflação. Na sua avaliação, isso já está em parte “precificado pelo mercado” na alta do dólar frente ao real e no aumento da curva de juros futuros, mas, quando ocorrer de fato, esses movimentos podem se intensificar um pouco mais.
Fonte: BBC News
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