A Cúpula de Líderes sobre o Clima, convocada pelo presidente americano Joe Biden e encerrada nesta sexta-feira (23), consagrou uma reorganização do tabuleiro político e da agenda climática internacional. Os Estados Unidos mostraram que voltaram ao jogo para valer — após quatro anos de isolamento e negação da crise climática pelo governo Trump —, com uma meta ambiciosa de reduzir suas emissões de gases do efeito estufa pela metade até 2030.
“Essa precisa ser a década da decisão”, disse o chanceler americano para questões climáticas, John Kerry, em sua fala de fechamento da conferência, ressaltando que a capacidade para manter o aquecimento do planeta abaixo do limite crítico de 1,5º C está se esgotando rapidamente. Biden conclamou a comunidade internacional a encarar a solução da crise climática não como um fardo, mas como alavanca para uma nova revolução industrial, baseada em tecnologias limpas e desenvolvimento sustentável para todo o planeta. “Vamos fazer isso juntos”, concluiu o presidente americano. “Os compromissos que assumimos aqui precisam se tornar realidade.”
“É a primeira vez que podemos vislumbrar que o planeta pode ter alguma saída”
Paulo Artaxo (IF-USP)
O engajamento dos Estados Unidos é essencial para o esforço global de enfrentamento das mudanças climáticas; não só porque o país é um dos maiores emissores de gases do efeito estufa do planeta, mas também porque isso estimula outros países (colaboradores e competidores dele) a fazerem o mesmo, segundo o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP. “Agora é a primeira vez que podemos vislumbrar que o planeta pode ter alguma saída”, disse Artaxo, em entrevista à Rádio USP (ouça a íntegra da entrevista).
Líderes de 40 países participaram do encontro virtual, incluindo o presidente Jair Bolsonaro, que fez um discurso de seis minutos. Bolsonaro adotou uma postura moderada e não chegou a negar a gravidade das mudanças climáticas nem a realidade do desmatamento no País, com fez em setembro do ano passado, em seu discurso na abertura da 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) — em que descreveu o Brasil como “vítima de uma das mais brutais campanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.
Essa moderação do discurso, segundo especialistas, é uma adaptação do governo brasileiro à troca de comando na Casa Branca e à valorização, cada vez maior, das questões ambientais na agenda política internacional. “Continuar com o negacionismo climático faria do país motivo de piada para todo o mundo”, resume o cientista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, especialista em mudanças climáticas.
Essa moderação do discurso, segundo especialistas, é uma adaptação do governo brasileiro à troca de comando na Casa Branca e à valorização, cada vez maior, das questões ambientais na agenda política internacional. “Continuar com o negacionismo climático faria do país motivo de piada para todo o mundo”, resume o cientista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, especialista em mudanças climáticas.
“A posição que o País ocupa como pária ambiental é prejudicial a todas as atividades econômicas, inclusive à maioria do agronegócio conservador que apoia o presidente”, avalia Nobre, em entrevista ao Jornal da USP. Segundo ele, o discurso de Bolsonaro “não retirou o Brasil da incômoda posição atual de um dos países mais antiambientais do mundo”, apesar de os compromissos listados na fala estarem em linha com o objetivo global de manter o aumento de temperatura do planeta abaixo de 1,5º C, conforme estipulado no Acordo de Paris.
A única novidade anunciada por Bolsonaro no encontro foi o compromisso de o Brasil atingir a “neutralidade climática” (quando as emissões do país são 100% compensadas por mecanismos de absorção de gás carbônico da atmosfera) já em 2050, dez anos antes do que estava previsto inicialmente. Fora isso, o presidente reiterou compromissos assumidos desde 2015, na gestão da presidente Dilma Rousseff, dentro da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, em inglês) do Brasil perante o Acordo de Paris, que prevê a redução de 37% das emissões nacionais de gases do efeito estufa até 2025 e de 43%, até 2030. A meta de zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030 também já estava prevista na NDC.
A meta de zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030 também já estava prevista na NDC. “Com isso, reduziremos em quase 50% nossas emissões até esta data”, declarou Bolsonaro. “Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa.”
Discurso x realidade
Especialistas consideraram o discurso do presidente completamente desconectado da realidade das políticas que seu próprio governo vem implementando.
“O discurso foi claramente preparado para sugerir uma mudança de rumo na política ambiental brasileira. Mas foi o discurso de um vendilhão sem credibilidade”, diz o cientista Ricardo Galvão, professor do Instituto de Física (IF) da USP e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável pelo monitoramento via satélite do desmatamento na Amazônia. “O discurso é totalmente ortogonal à política ambiental adotada desde a posse deste governo.”
Bolsonaro disse que determinou “o fortalecimento dos órgão ambientais” e que iria “duplicar os recursos destinados às ações de fiscalização”; mas não anunciou números. O orçamento estipulado pelo próprio governo para o Ministério do Meio Ambiente em 2021 é o menor das últimas duas décadas, e organizações não-governamentais vêm denunciando um progressivo desmonte das normas de proteção e das ações de fiscalização ambiental na Amazônia nos últimos dois anos. Desde que Bolsonaro tomou posse, o desmatamento no bioma aumentou 48%.
“O discurso é falso principalmente porque, sem o sistema que nosso próprio governo teima em destruir, não há como atingirmos as metas que foram propostas para a diminuição das emissões. Não tem lógica, nem consistência. Por isto, nada do que foi dito será cumprido”, prevê o pesquisador Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP e colaborador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
A meta estipulada internamente pelo governo no Plano Amazônia 2021-2022, por exemplo, mantém o desmatamento num patamar bem acima do observados em anos anteriores — o que vai na contramão do compromisso internacional de zerar o desmatamento ilegal até 2030. “Certamente houve ardilosa mudança de retórica, fruto da percepção de que, caso isso não ocorresse, o Brasil ficaria totalmente isolado no cenário internacional, com sérias consequências para investimentos externos e crescimento econômico”, afirma Galvão.
“No âmbito interno do Brasil, a partir de 2020, o setor produtivo e o sistema financeiro, respaldados na ciência, alinharam-se contra o desmatamento e a favor da conservação desse patrimônio ambiental. Este olhar do empresariado sinalizou um caminho para conciliar o desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental para a geração de empregos, de renda e de bem-estar na região”, avalia Jacques Marcovitch, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. “No âmbito externo, a pressão internacional levou o atual governo brasileiro a rever suas ações, ou inações, na esfera ambiental e em especial no bioma Amazônia.”
Condição financeira
Apesar do tom moderado do discurso, Bolsonaro não deixou de cobrar apoio financeiro dos países desenvolvidos para o cumprimento das metas.
“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas”, disse o presidente. Ele cobrou a implementação dos mecanismos de mercado previstos no Acordo de Paris, que possibilitariam aos países em desenvolvimento receber recursos pela redução de emissões. “Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos”, apontou Bolsonaro. “Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação.”
Segundo Bolsonaro, ações de conservação implementadas “nos últimos 15 anos” (mais especificamente, entre 2006 e 2015; portanto, antes do seu governo) evitaram a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono para a atmosfera. “O Brasil já tem esse crédito”, pontuou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em uma entrevista coletiva em Brasília, realizada após o discurso do presidente. Segundo ele, pelo mercado de carbono, isso já renderia ao País US$ 133 bilhões.
“Quanto mais recursos vierem e mais apoio existir, maior a probabilidade de antecipar” a extinção do desmatamento ilegal, afirmou Salles, destacando a necessidade de “recursos tangíveis, volumosos e imediatos” para o Brasil. Ele pediu US$ 1 bilhão aos Estados Unidos para reduzir o desmatamento na Amazônia em 40%, já nos próximos 12 meses. “É um número bastante razoável”, comparado ao suposto “crédito” de US$ 133 bilhões que o País já teria acumulado, declarou o ministro.
“O Brasil tem que fazer parte do esforço global de redução de suas emissões, dentro do que seria uma distribuição justa, de forma incondicional; mas pode fazer mais caso receba apoio financeiro”, avalia Thelma. “Creio que a idéia é esta: fazer adicionalmente ao que se comprometeu, e receber apoio se puder demonstrar a capacidade de fazer isso.”
O apoio financeiro a países em desenvolvimento, de fato, é uma das premissas do Acordo de Paris; mas não se trata de uma obrigação nem exime os países em desenvolvimento de cumprirem suas metas caso esses recursos não sejam disponibilizados de alguma forma — até porque as metas previstas no acordo são determinadas internamente e voluntariamente por cada país participante, de acordo com as suas próprias capacidades. “Sendo assim, esse crédito (citado pelo ministro Salles) não existe, na minha opinião”, disse ao Jornal da USP a pesquisadora Thelma Krug, do Inpe, especialista em política e ciência do clima.
“O apoio financeiro somente se tornará realidade com uma clara e permanente prova de redução acentuada dos desmatamentos da floresta amazônica”, afirma Carlos Nobre — ressaltando que os indicadores atuais apontam na direção oposta a isso.
“O presidente Bolsonaro simplesmente apresentou metas que não são realistas”
Pedro Luis Cortes (IEE-USP)
Para o professor Pedro Luiz Côrtes, da Escola de Comunicação e Artes (ECA) e do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, a ênfase dada à falta de recursos — além de não ser verdadeira, pois o governo tem quase R$ 3 bilhões parados há dois anos no Fundo Amazônia — é uma estratégia antecipada de transferir a culpa pelo não cumprimento das metas nacionais aos outros países. “Ao pedir dinheiro para os Estados Unidos, Salles sabia que não seria atendido, então ele já encontrou a desculpa perfeita; e o presidente Bolsonaro simplesmente apresentou metas que não são realistas”, disse Côrtes à Radio USP (ouça a íntegra da entrevista).
Patricia Pinho, pesquisadora associada ao IEA-USP e colaboradora do IPCC, lamenta que a floresta amazônica esteja sendo usada como uma “moeda de troca” da geopolítica brasileira. “Enquanto outros governos falam em justiça climática, o nosso se esconde atrás de um discurso falacioso”, diz. Os compromissos apresentados, segundo ela, “não são baseados na realidade”.
Fonte: Jornal da USP
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