O mundo amanheceu mais sombrio no domingo, após o encerramento da COP 26, como se fora um final de temporada na qual o time da casa voltou derrotado. Perdeu a humanidade
Acordem, Países-Partes, pois uma profunda crise se abate sobre o gênero humano: a emergência climática cavalga sobre nossas cabeças, em uma crise civilizatória sem precedentes. Neste início de Antropoceno, processos vitais em escala planetária são atingidos pela predação das grandes corporações de combustíveis fósseis, que permanecem intocadas, acobertadas nos PIBs dos governos, gerando mais e mais externalidades que minam a segurança humana.
Manifesto do Trópico de Capricórnio, 2021
O mundo amanheceu mais sombrio no domingo, após o encerramento da COP26, como se fora um final de temporada na qual o time da casa voltou derrotado. Perdeu a humanidade.
De forma alienada, a delegação brasileira comemorou. Ajudou a emplacar o imbróglio dos créditos de carbono, que em grande parte se reveste de fórmula mágica que absolve poluidores com a compra de indulgências – ou seja, quem tem recursos financeiros terá salvaguardas para manter atividades poluentes. E certamente recursos para evitar o inferno. Este, ficará reservado aos pobres, que sequer terão previsões de ressarcimento diante da destruição por eventos extremos, e muito menos recursos para adaptar-se e proteger suas vidas, que não tem preço.
Nada fazendo para evitar as duras consequências de disputas futuras por recursos vitais e migrações em massa, prossegue o sufocamento gradual da paz global em um processo de irresponsabilidade concorrente. O conceito basilar sobre reparação de perdas e danos, consagrado na jurisprudência nacional e internacional, foi deixado de lado pelos principais poluidores, sacralizando as externalidades no altar da procrastinação.
É notório que Glasgow, o berço da revolução industrial, acabou por revelar ao mundo os vários conflitos de interesse que fortemente se instalaram no seio da humanidade — e que continuam a se ampliar, apesar dos aparentes e cosméticos esforços para a descarbonização do planeta.
A busca de responsabilidades vem sendo diluída e respaldada por múltiplas causas. A Índia, que deverá ser o país mais populoso do planeta em 2050, deu o tiro de misericórdia na possibilidade de firmar uma posição comum para a eliminação dos combustíveis fósseis, relativizando a posição de “eliminação” apenas para uma light “diminuição”. Assim, o combate efetivo aos combustíveis fósseis foi enfraquecido por uma estranha aliança, entre lobistas de petroleiras e de carvão que se amontoaram às centenas nos pavilhões da COP26 em defesa de seu negócio – e que acabaram em coalizão com um país pobre e populoso, candidato a sofrer as mais duras penas impostas pelo aquecimento global. Em defesa do carvão, a China também apoiou a índia.
Neste cenário de defesa de “interesses nacionais”, a dança das moedas foi evidente, embalada pela Armadilha de Tucídides, jogo clássico da sanha competitiva entre nações que disputam hegemonia. Desde Atenas e Esparta, séculos adentro, reedita-se este sinistro ballet, agora entre China e Estados Unidos. Em busca de uma posição de prevalência no ambiente global, nas negociações não abriram mão de seu PIB de dólares e renminbis. Recheados com o carbono do petróleo e do carvão, revelaram a dança das moedas em busca do poder, o que poderá vitimar o planeta.
No contexto de poderosos países leviatãs, pouco importou o essencial, a magnífica natureza e a participação social dos seres viventes. Assim como Cândido Portinari, pintor da obra Guerra e Paz que ilumina com humanismo o saguão da sede das Nações Unidas em Nova York, o Brasil ofereceu à COP26, nas ruas e nos eventos paralelos, representações de sua natureza e de seus povos originários. Uma centena de milhares de pessoas foram às ruas no último sábado em Glasgow clamar por um resultado eficaz nas negociações. Mas a diversidade étnica brasileira, associada a tantas outras planetárias, acabou por representar apenas figuração diante de resultados governamentais insuficientes.
Fica cada vez mais evidente a falta de uma democracia ambiental e de respeito aos anseios e direitos fundamentais das populações nas conferências climáticas, especialmente os mais pobres e vulneráveis. As nações-partes estão protagonizando condições para a injustiça climática, na incompetência e desumanidade que se acoberta sob o manto de interesses nacionais. Sacraliza-se a arte de fazer parecer que os interesses egoístas são interesses de Estado.
No Manifesto do Trópico de Capricórnio, enviado em 11 de novembro de 2021 ao presidente da COP26, Alok Sharma, o movimento ambiental de São Paulo clama: “Então, como pode nosso solo virar commodity? Ouçam-nos, Povos-Partes do Norte, a felicidade não é maquinaria e a vida não é mentira muitas vezes repetida, de materialidade impingida! Sob este sagrado solo capricorniano, ethos de tantas raças e credos, PROTESTAMOS!”
O cenário é sombrio. Apesar da retração econômica provocada pela Covid-19, os níveis de gases efeito estufa atingiram recorde em 2020. Tem razão Alok Sharma ao afirmar, no encerramento da COP26, que este é o “momento da verdade” para o planeta. Diante da realidade apontada no Relatório AR6 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a verdade é que há um estado de emergência climática, diante da qual até Maquiavel apontaria caminhos mais acertados: “Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos.”
A seriedade do momento não poderia passar sem firmes apelos, como o Manifesto do Trópico de Capricórnio, produto de debates e documentos aportados em Jornadas Preparatórias para a COP26, da qual participaram uma centena de ONGs ambientalistas, movimentos sociais e especialistas, sob a relatoria do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental. A tônica foi a busca de um modelo de governança capaz de elaborar e implementar políticas públicas para mitigação e adaptação diante de uma anunciada intensificação das mudanças climáticas, com foco na proteção dos mais vulneráveis.
O governo federal de Jair Bolsonaro, que se furtou de ir à COP, não possui mínimas condições de protagonismo para priorizar e implementar um modelo de engenharia social e governamental transformadora. Divorciado da ciência e da sociedade, faz comumente a defesa dos setores que se abrigam na base governista, especialmente do agronegócio mais voraz. Assim, não só de maus governos padece o planeta, mas também de setores econômicos que carecem de ética.
Ao final da conferência em Glasgow, o presidente da COP26, Alok Sharma, chorou. Desculpou-se perante as representações dos países mais vulneráveis, afirmando estar “profundamente pesaroso”. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, ressaltou os riscos que a humanidade corre e afirmou: “O acordo reflete os interesses, as contradições e a vontade política do mundo de hoje”. A Aliança dos Pequenos Estados Insulares e o G77, que agrega os países mais pobres, saíram da conferência apenas com promessas de boas intenções e um minguado aporte de recursos para assistência técnica.
Os grandes poluidores permanecem ilesos. Aos vulneráveis legam a esperança de novas COPs. O problema é a emergência, o timing necessário para conter a devastação anunciada no relatório AR6 do IPCC. Rumo à COP27 do Egito, não há muita esperança no mundo pós-Covid de que as nações-partes com seus PIBs recheadas de carbono e em sua dança das moedas venham a demonstrar maior capacidade solidária multilateral e intergeracional.
Esperamos que a próxima conferência ocorra em uma conjuntura geopolítica mais favorável, tanto para o Brasil quanto para o exterior. Que os países insulares não sejam mais objeto de injustiça climática e que os mais vulneráveis possam contar com assistência adequada.
Esperamos que a sociedade civil brasileira não tenha que solicitar à COP27 o acolhimento de sugestões frente “à lacuna causada pelo governo federal do Brasil que se dissocia da ciência e da sociedade”. Temos certeza de que o Brasil pode, como também outras nações deste Sul continente, graças à sua gente tão generosa e ao seu extraordinário patrimônio natural e cultural, um dos últimos Eldorados do planeta, retomar seu protagonismo pós-governo Bolsonaro e voltar a ser um dos atores principais neste processo de transição, rumo a um novo paradigma de civilização.
Fonte: O Eco
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