Em meados dos anos 1960, o Jornal do Brasil do Rio de Janeiro era considerado um dos principais periódicos brasileiros – se não o principal. Com ousadia editorial – indo muito além das mudanças implementadas pelo Diário Carioca uma década antes -, inovação na diagramação e a liderança cerebral e talentosa do diretor de redação Alberto Dines, o JB (como era mais conhecido) já havia há muito deixado para trás a pecha de “jornal das cozinheiras”, como ele era chamado nos anos 1930 e 1940 devido aos anúncios classificados de serviços domésticos que cobriam sua primeira página. A redação era um cadinho de profissionais de primeira linha e todo jornalista, de uma forma ou outra, sonhava em trabalhar lá. Ou quase todo. Pelo menos um deles, igualmente talentoso e chefe da seção de pesquisa do jornal, decidiu deixar a carreira em ascensão no JB por um projeto cujo valor, para ele, era muito mais alto. Já fazia algum tempo que o mineiro de Juiz de Fora Fernando Gabeira, radicado no Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1960, atuava clandestinamente contra o regime militar encastelado em Brasília com o Golpe de 1964. Até que chegou o momento de decidir entre a redação e a luta armada. Após a Passeata dos 100 Mil, em 26 de junho de 1968 – que ele assistiu da janela da redação do jornal, cuja sede era ainda na Avenida Presidente Vargas -, Gabeira decidiu dar uma guinada na sua militância. Primeiro, deixou o PTB, ao qual era filiado desde os anos 1950, e ingressou no grupo leninista Dissidência Comunista, que logo se tornaria o Movimento 8 de Outubro, ou MR-8. Depois, era hora de saber o que fazer com o Jornal do Brasil.
Ao notar que Gabeira era cada vez mais militante do que jornalista, Alberto Dines o convidou para tomar um drinque e lhe disse, como recorda Cézar Motta no livro Até a Última Página: “Tenho a maior confiança em você, que é um grande profissional. Por isso, quando sentir que sua militância está interferindo em seu trabalho, peça para sair”. E quase um ano depois dessa conversa, Gabeira saiu, caiu na clandestinidade, participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, foi preso, exilado e começou uma história de vida riquíssima que está longe de ganhar um ponto final. Neste dia 17, Fernando Gabeira faz 80 anos.
Mesmo alguém que tivesse vivido placidamente seus 80 anos no campo, observando a vida da varanda, teria muito o que contar em sua biografia. Imagine, então, alguém como Gabeira, que participou da luta armada, ficou exilado por nove anos, foi deputado federal por quatro mandatos consecutivos, concorreu à Presidência da República por duas vezes e é autor de dez livros. Isso, sem nunca ter deixado de lado o jornalismo, marcado por um texto brilhante e uma atuação inquieta. Não é à toa que ele é considerado um dos melhores comentaristas da Globonews. Então, resumir as oito décadas de vida de Fernando Gabeira em alguns milhares de caracteres de texto se torna, mais do que um tour de force, quase uma injustiça com o perfilado. Mais do que um texto, Gabeira merece uma reflexão.
O que é isso, companheiro?
Certamente, o ponto de inflexão na vida de Gabeira foi quando ele deixou a redação e caiu nas sombras. Foi ali que ele pegou um caminho à esquerda na bifurcação que sua biografia apresentava e começou a escrever uma história de vida carregada de nuances. A começar pelo sequestro do embaixador Elbrick, em 7 de setembro de 1969. Gabeira nunca pegou em armas durante sua permanência no MR-8. Ele pegava na caneta ou datilografava em uma velha máquina de escrever. Mais do que um militante da ação, ele era um militante da argumentação. E da logística. Foi com o dinheiro de sua rescisão do Jornal do Brasil que ele pôde alugar o casarão na Rua Barão de Petrópolis, no bairro carioca de Santa Teresa, onde Elbrick ficaria hospedado a contragosto. E era Gabeira quem escrevia os bilhetes dos terroristas exigindo a libertação de presos políticos, divulgados pela imprensa. Muitos jornalistas juravam enxergar neles o estilo inconfundível de Fernando Gabeira.
Solto o embaixador americano, em uma troca de presos que incluía o então líder estudantil José Dirceu, a perseguição aos sequestradores começou com tudo. Policiais e agentes da repressão varejaram esconderijos, casas, aparelhos, até acharem os envolvidos. Gabeira foi pego em São Paulo em 1970, depois de tentar fugir e levar um tiro, que lhe perfurou o estômago, um rim e o fígado. Em junho, acabou solto, trocado com outros 39 militantes pela libertação do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. O grupo foi banido do País, mandado para a Argélia, e Gabeira caiu no mundo. Viveu no Chile, na Itália e se fixou na Suécia, onde estudou Antropologia na Universidade de Estocolmo e foi até condutor de trem de metrô. Mas essa história estava só começando.
No Brasil, a propalada abertura “lenta, gradual e segura” preconizada pelo general-presidente Ernesto Geisel deu uma ligeira acelerada. E em agosto de 1979, já sob o tacão de João Figueiredo, foi finalmente assinada a Lei de Anistia, que permitia o retorno ao Brasil dos exilados. E em 1º de setembro, Fernando Gabeira foi recebido por uma multidão no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro – e saiu de lá literalmente nos braços do povo. A partir daí, Gabeira passou a escrever com letras maiúsculas novos capítulos de sua biografia. E o primeiro deles incluía um livro revelador e um choque para aquela sociedade carioca que se achava descolada mas, na verdade, era bem conservadora.
Porque todo mundo se chocou ao ver o jornalista recém-chegado do exílio enfiado em uma minúscula tanguinha de crochê na praia de Ipanema. Na verdade, não era exatamente uma sunga de banho, mas sim a roupa de baixo que ele pegou emprestado de sua prima, a também jornalista Leda Nagle, para curtir o sol carioca depois de muito céu cinzento em Estocolmo. E Gabeira virou notícia em toda a mídia brasileira. Por causa de uma tanguinha de crochê. O tempora, o mores… Mas ainda havia mais, muito mais.
Porque Fernando Gabeira trazia em sua bagagem de ex-exilado uma pérola em forma de livro, que ele intitulou de O Que É Isso, Companheiro?. O livro contava em detalhes sua participação na militância de esquerda, o sequestro de Charles Elbrick e sua vida de exilado. Lançado pela Codecri – a então editora criada pelo pessoal do Pasquim -, foi um sucesso editorial imediato. E até hoje ainda é. O livro já rendeu 40 edições e vendeu mais de 250 mil exemplares. Depois desse, ele escreveria outros nove livros, entre eles O Crepúsculo do Macho – uma espécie de continuação do primeiro trabalho – e Entradas e Bandeiras, onde narra sua volta ao Brasil e seu abandono da ideologia marxista, passando a lutar por questões como ecologia, prazer e liberdade sexual.
Mas Gabeira trazia outras coisas nesse seu retorno aos trópicos. Ele trazia as ideias de uma social-democracia que ele viu de perto enquanto estava na Suécia, com ideários de Estado do bem-estar social e promoção da justiça social. E foi essa nova perspectiva que acabou por pavimentar, também, sua trajetória política. Que, não necessariamente, foi um sucesso absoluto, mas foi marcante. Para os cargos executivos, sua candidatura fez água: perdeu a eleição para governador do Rio em 1986, quando estava no PT, e a de 2010, já no Partido Verde – o candidato vencedor foi o hoje encarcerado Sérgio Cabral. Também perdeu a eleição para a Prefeitura do Rio em 2008 e a presidencial de 1989, também pelo PV – teve apenas 0,18% dos votos. Mas digamos que esta última candidatura, mais do que uma possibilidade real, era uma chance de trazer à tona debates relevantes para um país recém-entrado na redemocratização.
Na vida parlamentar, Gabeira teve muito mais sucesso. Eleito deputado federal pela primeira vez em 1994 pelo PV, foi reeleito mais três vezes sucessivamente, tendo ido para o PT em 2002, para logo depois sair do partido pela última vez, em 2003. Gabeira estava decepcionado com o PT no governo. “Nossa geração não pode se contentar com apenas estar no governo. Passei a partilhar desse erro da sociedade, que era esperar um governo salvador. Estou saindo deste clima sufocante das esperanças negadas. Meu sonho acabou, concluí que sonhei um sonho errado”, disse ele na época, chegando mesmo a cogitar a saída da vida pública. Não saiu, voltou ao PV e, em 2006, foi o deputado federal mais votado do Estado, com 293.057 votos. Foi sua última eleição.
Contador de histórias
Mas, mais do que um político, Fernando Gabeira é um ser político – e um jornalista que nunca abandonou a vocação e que soube, de várias formas, fazer uma perfeita simbiose entre o fazer jornalístico e o pensar político. E nessa combinação ele mostrou sua faceta mais iluminada, aquela que já vinha sendo mostrada desde seus primeiros livros – o de um grande contador de histórias. Antes de a pandemia o tirar das ruas e das estradas, ele fazia sucesso na TV paga com um programa no qual viajava pelos mais recônditos grotões do País em busca de personagens e histórias interessantes para serem apresentados. O programa, posto também em quarentena, chama-se simplesmente Fernando Gabeira. Mas que não se veja aí qualquer laivo de egocentrismo. É na simplicidade de seu título que reside sua ideia jornalística, aquela de apresentar pessoas simples, comuns, mas com muitas histórias a contar para um público mais amplo. Gabeira, que caiu nas sombras nos anos 1960, se preocupa agora em tirar dessas mesmas sombras e do anonimato personagens com uma riqueza que talvez só ele pudesse resgatar.
Enquanto o Fernando Gabeira não volta ao ar, seu criador pontifica todos os dias nos mais variados telejornais da Globonews, se tornando seu mais interessante comentarista. Com voz mansa, quase como a de um monge sábio, Gabeira trata dos mais variados assuntos, mas se detém principalmente na política – em uma tarefa hercúlea em tentar deslindar para o público esse Brasil cada vez mais bizarro. Com certeza, ninguém tem o currículo que ele tem para fazê-lo. Jornalista, militante político perseguido e exilado, político experiente dos salões do Congresso Nacional, escritor, defensor das causas sociais no País, precursor da defesa ao meio ambiente. Está longe de ser pouca coisa. Ao 80 anos, Fernando Gabeira ainda tem muito o que contar.
Fonte: Jornal da USP
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