Leia artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, para o Jornal da Ciência, publicado em 15/9:
Antes de começar a escrever este texto é mister lembrar, a todos os brasileiros, partes da Constituição, documento basilar que deveria reger as relações humanas no país, inclusive, claro, as que dizem relação com a interação do Estado com os cidadãos.
“Constituição Da República Federativa Do Brasil, Título I, Dos Princípios Fundamentais, Capítulo I, Dos Direitos E Deveres Individuais E Coletivos.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;.”
Assim colocado, conto uma historinha que me surpreendeu hoje. Lendo diagonalmente o Facebook, como costumo fazer após o café da manhã, encontrei uma notícia que, claro, pensei de imediato ser fake. A notícia dizia que o ministro da Educação da República Federativa do Brasil teria declarado que “jovens que não acreditam em Deus são zumbis existenciais”. Como aluno que sou, procurei diversas fontes, pois não podia acreditar que um ministro de Estado, especialmente da Educação, poderia assim se manifestar. Para minha surpresa, e reafirmando que apesar da provecta idade ainda tenho resíduos de ingenuidade, esta declaração apareceu, entre outros em veículos de difusão, em “uol.com.br”, “Revista Fórum”, “Carta Capital”, “Valor Econômico”. É aparente, então, que eu estava enganado e que o Ministro da Educação do Brasil assim o declarou.
Para entender a implicação de esta declaração começo por tentar esclarecer o seu significado. Assim, zumbi pode ser entendido como “uma criatura cujo estereótipo se define, nos livros e na cultura popular, como um cadáver reanimado usualmente de hábitos noturnos, que vive a perambular e a agir de forma estranha e instintiva; um morto-vivo; um ser privado de vontade própria, sem personalidade”. Uma definição mais curta fala de “alma que vagueia a horas mortas”. Partindo dessas definições poderíamos começar a tentar interpretar a declaração do ministro, pois o significado de existencial parece mais claro, pois se refere a existência. Ora, zumbi existencial é uma expressão contraditória, pois para um jovem existir precisa ao menos ter uma personalidade, o que não condiz com o seu caráter zumbístico. Que ideia então tentou transmitir o ministro usando uma expressão conflitante?
Na verdade, usando uma expressão claramente inadequada, e aí entramos no terreno das conjecturas, o ministro se esqueceu da Constituição, como se demonstra no começo de este artigo, e enviou uma mensagem que parece dizer que todos os jovens devem acreditar em Deus. Qual seria o castigo dessa descrença? Sinceramente duvido que o ministro acredite ser capaz de fazer milagres, e, portanto, o resultado da descrença não será cair um raio na cabeça do descrente. Mas, por outro lado o ministro da Educação pode, por exemplo, privilegiar os alunos que, por estar em Instituições religiosas, tem uma probabilidade maior de acreditar no divino. Ou, novamente conjecturando, pode querer que o ensino da religião seja obrigatório para algum segmento etário.
Eu sou um químico que, por causas que não preciso esclarecer, não me aventuro a me intrometer no terreno da filosofia. O ministro tem absoluto e completo direito a acreditar que moral e ética precisam da certeza da existência de Deus, a constituição brasileira, no inciso VI do Artigo 5º assim o garante. A mesma Constituição assegura que jovens e velhos tem o direito de ler, ouvir e concordar com Richard Dawkins (Deus, um delírio), Sam Harris (O fim da fé) ou Christopher Hitchens (Deus não é grande) entre muitos outros.
Engana-se o ministro se pensa que um cidadão na sua posição pode dizer qualquer coisa sem consequências. Lamento profundamente que essa forte e inconveniente declaração volte a colocar uma intensa suspeita na racionalidade de quem detém uma posição de tamanha responsabilidade.
Fonte: Academia Brasileira de Ciências
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