Aliança da iniciativa privada com organizações comunitárias e governos no Rio Juruá, no Amazonas, demonstra que há soluções possíveis para o desenvolvimento aliado à conservação da floresta
Autor: Sérgio Adeodato
Juruá, na língua indígena, significa “rio de boca larga”. Mas o que mais chama atenção no mapa, desde a nascente no Peru até onde deságua no Solimões, após 3 mil km, é um outro superlativo: a infinidade de curvas que torna o rio, muito provavelmente, o mais sinuoso do mundo. Por trás da estética contorcida de seus meandros, mostrada do espaço por satélites que flagram cenas incomuns do planeta, o Rio Juruá, no coração do Amazonas, guarda uma marcante história de movimentos sociais na luta pelo direito ao uso sustentável dos recursos naturais. Campo fértil de inspiração para o surgimento, há três anos, de um modelo inovador de parceria entre empresas, governos e organizações locais, que hoje diferencia aquele pedaço remoto da floresta como fronteira de soluções.
Em momento de busca por alternativas de desenvolvimento adequadas à Amazônia, cada vez mais exposta aos olhares globais, devido aos riscos do desmatamento, o que parece dar certo ganha luzes especiais. Em Carauari (AM) e áreas do entorno, a lógica de fazer diferente está na força do dinamismo regional, que consiste na soma de três fatores: “Fortalecimento das cadeias de valor sustentáveis como fonte de renda, conservação da biodiversidade e coesão social, dentro de um processo de construção coletiva”, revela Roland Widmer, gerente de programas e fundos da Sitawi – instituição que coordena o Programa Território Médio Juruá, com participação da Natura e Coca-Cola Brasil e recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (Usaid).
Com investimento de R$ 16 milhões, a iniciativa, criada em 2017, abrange 12 projetos em diferentes eixos – do manejo de pirarucu e produção em sistema agroflorestal à educação e acesso à energia e comunicação, conforme demandas definidas coletivamente no Fórum Território Médio Juruá. Fundado em 2014, o organismo objetiva implementar um plano de desenvolvimento para a região, com participação de empresas, órgãos de proteção ambiental e associações das comunidades ribeirinhas, detentoras do conhecimento tradicional e guardiãs da floresta em pé e dos lagos que lhes garantem o sustento. “Já existiam muitas ideias de como fazer melhor, mas faltavam recursos, tecnologias e planejamento”, ressalta Widmer.
Como uma das inovações, o programa monitora os impactos das ações por intermédio do Índice de Progresso Social (IPS), metodologia global baseada em 12 indicadores de qualidade de vida que permitem fazer comparações entre a realidade local e a regional ou nacional, além de identificar gaps e desafios que subsidiam a decisão coletiva sobre novas ações. De 2017 a 2019, o índice na região do Juruá subiu oito pontos, situando-se acima da média da Amazônia, com registro de melhoria do acesso à água e saneamento, condições de moradia e direitos individuais, por exemplo.
A herança da organização social
Existem várias Amazônias, diferenciadas pelas fisionomias de paisagem, dinâmicas de ocupação do solo e níveis de desmatamento. No Médio Juruá, a realidade atual de empoderamento comunitário, base sólida para a chegada de parcerias e soluções de maior renda, é herança dos antigos embates pelo direito à terra e cidadania – trajetória marcada, na década de 1960, pela expansão do Movimento de Educação de Base, da Igreja Católica, em defesa de políticas públicas voltadas aos mais pobres. Como liderança local em Carauari e áreas do entorno, o padre João Derickx visitava comunidades ribeirinhas pregando a libertação contra o sistema predatório de trabalho nos seringais, mantido sob o jugo dos donos do poder, os chamados “patrões”.
Com o declínio da borracha e o risco de desmatamento por atividades como a pecuária, as organizações comunitárias lutaram pela criação de reservas ambientais, protegidas por lei, para barrar a destruição e servir como fonte de renda com produtos da biodiversidade. Foi o caso da Reserva Extrativista (Resex) Médio Juruá e, depois, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari, ambas palco de projetos de uso sustentável da biodiversidade, na parceria das associações com empresas – um novo marco desta história, que se mantém viva e não nos museus.
O nível de organização social foi chave para a chegada das iniciativa privada e a posterior formatação do programa, em atendimento ao edital da Usaid, que desde 2014 busca modelos inovadores de parceria público-privada para maximizar resultados dos investimentos.
“Diante do atual contexto da Amazônia, existe o reconhecimento de que ninguém resolve esses problemas sozinho”, afirma Alex Araújo, especialista em gerenciamento de projetos da agência americana, ao informar que o diálogo com o governo brasileiro tem sido positivo para novos avanços. Ele conclui: “Buscamos envolvimento de empresas não só como compradores de matéria-prima, mas como vetores de qualidade de vida no território” – o que, por tabela, cria ambiente favorável aos próprios negócios.
Dos óleos vegetais ao pirarucu
Há 20 anos no Juruá, a Natura iniciou ali as pesquisas com ingredientes da biodiversidade amazônica para produtos da linha Ecos, um divisor de águas na história da companhia. “Começamos com andiroba e murumuru, e depois manteiga de ucuuba, com transferência tecnológica a comunidades ribeirinhas para gestão e boas práticas”, conta Priscila Matta, gerente de sustentabilidade da indústria de cosméticos. O objetivo da assistência aos produtores é o recebimento do insumo dentro das especificações necessárias à produção industrial.
Em Carauari, a parceria com cooperativas e associações resultou na criação de duas unidades de beneficiamento, com redução de custos para tornar viável a produção. “O Juruá espelha em muito o modelo de negócio baseado em relacionamento e impacto positivo, planejado pela empresa nas últimas duas décadas”, atesta Matta, informando que o aprendizado foi levado de lá para outras regiões.
Até 2020, a Natura repassou R$ 1 milhão às comunidades na forma de repartição de benefícios pelo acesso ao patrimônio genético – valor que representa parte da receita com a venda dos produtos no mercado e compõe um fundo gerido coletivamente para investimento em projetos sociais e ambientais. Em 2019, os contratos locais de fornecimento de insumos da biodiversidade somaram R$ 600 mil, abrangendo 532 famílias das reservas ambientais e entorno. “Com um olhar mais ampliado, a estratégia se integra à nossa meta de desmatamento zero até 2030”, informa Matta.
No caso da Coca-Cola, a chegada à região se deu por conta do açaí, obtido dos extrativistas para composição de uma nova marca de bebida, que depois acabou descontinuada por razões de mercado. Mas os compromissos locais, por meio da parceria no Programa Território Médio Juruá, permaneceram. Desde 2017, foram investidos US$ 500 mil, parte pela iniciativa Água+Acesso, que viabiliza soluções inovadoras de abastecimento hídrico, uma prioridade na região. As atividades incluem tratamento de água, reformas de sistemas, manutenção e capacitação de operadores locais, no modelo de gestão comunitária do serviço, com previsão de impactar até o fim do ano 16 comunidades e 2,5 mil pessoas.
A demanda não é só de recursos, mas de um modelo de educação. “Colocar dinheiro não resolve, se não houver envolvimento de lideranças, principalmente quando o governo federal está na contramão dessas práticas, com desmonte da fiscalização das unidades de conservação”, destaca Gilberto Olavo, gestor da RDS Uacari, mantida pelo governo do Amazonas.
Há dez anos no posto, Olavo viu a transformação econômica proporcionada pela cadeia do pirarucu dentro da reserva, com gestão de dados para a conservação. “A atividade de manejo é o principal vetor que protege lagos, também habitados por outras espécies de peixe importantes na alimentação, como o pacu”, reforça o gestor. A cultura de proteção abrange ainda a vigilância comunitária dos tabuleiros de reprodução de quelônios amazônicos, a exemplo da tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) e do tracajá (Podocnemis unifilis), cujo manejo sustentável para fins comerciais foi recentemente autorizado e começa a se desenvolver na região.
Sinergia reduz custos e viabiliza projetos
“Uma coisa puxa a outra e, com a organização social fortalecida, começam a aparecer novas demandas como escolas e infraestrutura de eletrificação e internet”, aponta Olavo. No âmbito do programa Território Médio Juruá, “o trabalho em sintonia, unindo todos os parceiros em várias frentes simultâneas, possibilitou aumentar os resultados, que não teriam sido os mesmos sem isso”, avalia Manoel Cunha, gestor da Resex Médio Juruá, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do governo federal
Com a maturidade do processo participativo, as ações ganharam maior abrangência, atingindo novas áreas além do território inicial. “O grande ganho das ações em conjunto é que o trabalho ficou mais fácil, mais barato e com resultados mais palpáveis”.
Na prática, o arranjo inovador do programa ajudou as unidades de conservação a cumprirem a sua função, com reforço de atividades e educação ambiental e formação de agentes ambientais voluntários, por exemplo. “A região cresceu muito no aspecto organizacional, ambiental, social e produtivo”, atesta Cunha.
Para Adevaldo Dias, diretor do Memorial Chico Mendes (MCM), braço do Conselho Nacional das Populações Extrativistas voltado à assistência técnica e representação política das organizações de base, “o capital social foi decisivo e essa herança deve ser alimentada com frequência para não dar margem a disputas e individualismo”. O saneamento básico, segundo ele, é a maior preocupação atual e demanda investimentos em poços, redes de distribuição, banheiros familiares e educação sanitária.
Nas atividades produtivas, o MCM assessora a comercialização de produtos extrativistas a preços justos. Como resultado, o trabalho junto à Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc) permitiu expressivo aumento na receita com o manejo sustentável do pirarucu, com valores de R$ 7 o quilo, o dobro da média de outras regiões. Foi construído um entreposto de pescado para beneficiamento local, com agregação de valor ao produto – projeto que recebeu R$ 2,5 milhões da Usaid e, em complemento, mais R$ 500 mil da Fundação Banco do Brasil e Conservação Internacional. Exemplo de como a cultura da parceria e a expertise do arranjo entre empresas e demais organizações no Médio Juruá possibilitam a atração de novos recursos para fazer a roda girar.
Sem receita pronta
“Aprendi muito sobre a importância de escutar, parte mais importante de todo esse processo”, conta Robin Packer, ex-integrante da equipe da Sitawi que coordenou localmente o início do programa em Carauari. “Pelos recursos previstos, havia grande expectativa de mudança da realidade com a iniciativa, e o respeito entre as pessoas foi o que mais chamava atenção para quem chegava como forasteiro”, ressalta. “Não podíamos impor uma visão do que é melhor para eles”.
Hoje radicado em Berlim, na Alemanha, Packer jamais esquece quando adentrou à chamada “Amazônia profunda”, no Juruá, em viagem de mais de 30 horas de barco, dormindo em rede ao lado de 40 pessoas, para visitas a lideranças ribeirinhas nos preparativos do programa. Na comunidade mais distante, uma mensagem de incentivo: “Um senhor me chamou para dizer o quanto estava agradecido por alguém de tão longe se importar com eles daquela forma – lembrança que permaneceu viva e, por fim, coroou todo o nosso trabalho na região”.
“O programa trouxe luz para o que a região já tinha semeado”, destaca Wildney Mourão, coordenador de empreendedorismo da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), ONG que desenvolve ações socioambientais em 16 unidades de conservação estaduais. Em Carauari, a instituição apoia a qualificação da capital humano e a infraestrutura para estimular a cultura de novos negócios ribeirinhos. Um destaque é a produção de óleos vegetais pela empresa de base comunitária EBC Bauana, na RDS Uacari, para fornecimento à Natura.
A inspiração do negócio surgiu no Curso Técnico de Produção Sustentável em Unidades de Conservação, realizado em 2013 pela FAS e Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam). Na ocasião, 40 jovens ribeirinhos receberam capacitação em empreendedorismo e, como trabalho final, apresentaram planos de negócios candidatos a apoio de gestão para virar realidade.
Na mesma linha, em recente evento realizado na região, no estilo do reality show Shark tank, uma banca local selecionou cinco ideias empreendedoras com foco no açaí, movelaria, artesanato, avicultura e horta orgânica, aptas a receber suporte para avançar na produção. Há, porém, o desafio da continuidade: “É importante pensar no que virá depois, porque, quando os projetos terminam, vem o desencanto”, diz Mourão.
Pelos diferenciais que tem, o médio Juruá, segundo ele, está mais preparado para o longo prazo do que outras regiões. É um processo que começa na educação, a exemplo do curso superior de Pedagogia do Campo, a ser iniciado pela Universidade do Estado do Amazonas na comunidade do Campina, uma das mais longínquas daquele rio. No local, há o projeto de instalação de uma Casa Familiar Rural, pelo programa Território Médio Juruá, com objetivo de proporcionar um modelo de educação integrado às necessidades do campo.
Abertura para novos investimentos
Novos caminhos estão na mira do programa, cujo primeiro ciclo previsto terminará no fim de 2020. A perspectiva é de renovação com investimentos mais diversificados, e uma das estratégias em estudo é a sinergia das cadeias produtivas daquela região com as atividades da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA), que apoia negócios de impacto socioambiental promissores no mercado, e tem apoio da Usaid e empresas que já atuam no Juruá.
Em paralelo, o novo momento da parceria prevê a construção de um modelo de uso sustentável de recursos terrestres, com mapeamento da fauna e flora em conjunto com associações comunitárias. Além do açaí e da produção agroflorestal, as atenções se voltam ao manejo de animais silvestres, com base em estudos sobre a dinâmica das espécies na natureza e os hábitos de caça. O propósito é identificar novas cadeias de potencial econômico e repetir o sucesso do manejo de espécies aquáticas, como no caso do pirarucu, sem esgotar a disponibilidade na natureza.
“É necessário um olhar especial para a juventude, com a formação de novas lideranças e apoio a acesso a tecnologias e oportunidades de trabalho e renda”, enfatiza Felipe Pires, da Sitawi, responsável pela coordenação local do programa no Juruá, onde mantém interação direta com as comunidades, onde também é trabalhado o tema do empoderamento feminino. “O sonho dos mais velhos necessariamente não são iguais aos dos mais jovens”, argumenta.
Ao longo do tempo, o modelo de governança consolidou-se e está entre os finalistas do prêmio bianual Equator Prize. “Chegou fortalecido ao atual cenário de demandas e riscos envolvendo a Amazônia”, avalia Leonardo Letelier, CEO da Sitawi, para quem o momento é de oportunidades. A confiança desenvolvida com a gestão da parceria entre financiador, empresas e organizações sociais poderá abrir portas. “A atual polarização política no País legitima retrocessos que não esperávamos, mas as parcerias não diminuíram, nem os compromissos de empresas e organizações pela floresta”, pondera Letelier.
Diante da ausência federal nas questões ambientais, a iniciativa privada tem se mobilizado para não financiar o desmatamento, investir em práticas sustentáveis e evitar prejuízos aos negócios pela imagem do Brasil no exterior. As boas experiências, engajadas com a realidade local, vão soprar novos ventos. E assim, entre as muitas curvas do Juruá, é possível achar um porto de chegada.
Localize-se:
Fonte: Página22
Comentários