A escalada de violência, grilagem, queimadas, garimpo e negligência estatal em relação aos povos indígenas impõem ao Supremo Tribunal Federal se pronunciar urgentemente sobre ao menos duas questões.
A primeira se refere ao marco temporal. Tal como proposto pelo parecer da Advocacia Geral da União, o marco temporal revogará o direito originário dos povos indígenas às suas terras. O Supremo também precisa fulminar o pleito da governadora de Roraima, Suely Campos (PP), de afastar a obrigação de consultar previamente aos povos indígenas para que seja possível a realização de obras e outras intervenções em seus territórios.
A Constituição reconheceu, por intermédio de seu artigo 231, que os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, sendo “nulos e extintos” quaisquer atos que tenham por finalidade permitir ou legitimar a ocupação dessas terras por aqueles que não são os seus titulares originais.
Com essa formulação a Constituição buscou impedir que o abuso, as invasões ou mesmo a emanação de atos do poder público (como registros, outorgas ou destinação pública) pudessem privar os povos indígenas do direito às suas terras tradicionalmente ocupadas.
Para a Constituição não importa se as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que são “imprescindíveis à preservação” do bem-estar, dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural dos povos indígenas, tenham sido turbadas, ocupadas ou invadidas. É obrigação da União demarcá-las, uma vez demonstrada a sua ocupação tradicional e não civil.
Apesar dessas obrigações peremptórias estabelecidas pela Constituição, a AGU, usando impropriamente um dispositivo específico para solução do caso Raposa Serra do Sol, tem buscado esvaziar o direito fundamental dos povos indígenas às suas terras tradicionais. De acordo com o indigitado parecer, os povos indígenas apenas teriam direito à demarcação daquelas terras que estivessem sob sua posse civil em 5 de outubro de 1988, algo que jamais foi estabelecido pela Constituição.
O fato de terem sido afastados da posse por atos intrinsecamente ilegais seria irrelevante para a AGU. Também irrelevante seria o fato de os indígenas, até 1988, terem sido historicamente impedidos de defender em juízo as suas terras, por serem considerados relativamente incapazes. Não pode o Supremo tolerar que um mero parecer revogue um direito que precede a própria Constituição, que apenas o reconheceu.
O STF deverá ainda decidir, em breve, se o Estado brasileiro pode descumprir obrigações estabelecidas pela Convenção 169 da OIT, em absoluta conformidade com o disposto no artigo 231, parágrafo 3º. da Constituição. Esse tratado exige que obras e outras intervenções em território indígena sejam precedidas de consulta à população, de forma a que os impactos negativos sejam evitados ou mitigados.
É sempre bom lembrar que tratados de direitos humanos, como a Convenção 169, quando aprovados pelo procedimento ordinário pelo Congresso Nacional, assumem posição, no mínimo, de norma supralegal. Não podem, portanto, ser denunciados por ato exclusivo do Presidente ou revogados por lei ordinária.
O fato é que o Supremo Tribunal Federal tem um encontro marcado com a questão indígena, quando poderá deixar claro o seu compromisso com os direitos desses povos, tais como reconhecidos pela Constituição. Detalhe, esse encontro será testemunhado por todo o mundo.
Fonte: Folha de S.Paulo / Publicação autorizada pelo autor
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