Caio Borges*
A ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 708, sobre o Fundo Clima, foi proposta por quatro partidos políticos (PT, PSOL, PSB e Rede) em face da União Federal. A ação pede que o governo reative o aparato de governança e retome o planejamento da alocação dos recursos e os desembolsos do Fundo. Alega-se descumprimento do art. 225 da Constituição Federal de 1998 (CF/88), sobre o meio ambiente ecologicamente equilibrado, e do princípio do federalismo cooperativo.O relator, ministro Luís Roberto Barroso, em sua primeira manifestação sobre o mérito da ação, convocou uma audiência pública para se obter um “relato objetivo e oficial” da situação do quadro ambiental no Brasil.
Audiência pública na ADPF 708: os principais pontos do debate
A audiência pública marcou um momento histórico no STF. Foi a primeira vez que a mais alta corte do país tratou do tema das mudanças climáticas. Durante dois dias, foram ouvidos 66 especialistas: cientistas, ambientalistas, indígenas, empresários, economistas do meio ambiente, pesquisadores, parlamentares e representantes do governo federal e de governos estaduais.
Logo no início dos trabalhos, o ministro Barroso deu a tônica do debate. Em suas considerações iniciais, o ministro falou sobre o desafio posto perante a humanidade pelo aquecimento global. Lembrou da tramitação de uma ação semelhante, a ADO 59 sobre o Fundo Amazônia (que abordamos neste artigo), sob relatoria da ministra Rosa Weber, indicando que, apesar de estarem sendo, até o momento, tratadas separadamente, poderão ser julgadas de modo conjunto.
As apresentações tiveram por eixo comum a necessidade de o governo dar efetividade aos instrumentos e à governança da política ambiental e climática. Mas debaixo desse guarda-chuva, as mensagens transmitidas pelos representantes da sociedade civil, dos negócios, dos entes subnacionais e da ciência foram ricas e variadas, embora complementares entre si.
Diversos expositores qualificaram a omissão do governo em responder ao aumento do desmatamento e das queimadas como um sinal que prejudica a imagem do país no exterior e tem efeitos adversos concretos sobre o ambiente dos negócios e a economia. Por causa da relutância do governo em admitir que há um problema sério e de tomar medidas efetivas, o Brasil está encontrando dificuldades para obter financiamento internacional e selar acordos comerciais. Essas mensagens foram trazidas especialmente por economistas como Armínio Fraga (ex-Banco Central), Ricardo Abramovay (USP), Sério Margulis (ex-Secretário de Desenvolvimento Sustentável da Presidência), e pelo cientista Carlos Nobre (ex-Inpe e professor do IEA-USP).
“O desmatamento e os outros crimes ambientais, além de agravarem o problema global, trazem enorme risco para o ecossistema do agronegócio e para a oferta de energia. A crescente ênfase por parte das melhores empresas do mundo no trio ESG – meio ambiente, social e governança – reduz a atratividade do Brasil como destino de investimentos”.
Armínio Fraga, ex presidente do BC
Ex-ocupantes de cargos públicos, como a ex-ministra do meio ambiente, Izabella Teixeira, compartilharam um pouco do histórico da criação da governança institucional internacional e nacional sobre clima, destacando o papel fundamental que o Brasil desempenhou na construção da arquitetura global sobre o desenvolvimento sustentável. Com a reversão da orientação política, o Brasil perde o “soft power” nas relações internacionais.
A mensagem dos representantes da ciência foi transmitida, por coincidência, no mesmo momento em que o presidente Jair Bolsonaro fazia seu discurso na sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU, negando que a Amazônia esteja passando por um aumento das queimadas e atribuindo a responsabilidade aos povos tradicionais da região.
Expoentes da ciência e da pesquisa climática, como Thelma Krug (Vice-Presidente do IPCC e ex-Inpe), Ricardo Galvão (ex-Inpe), Tasso Azevedo (Coordenador do SEEG e ex-Diretor do Serviço Florestal Brasileiro), Beto Veríssimo (Imazon) e Paulo Moutinho (IPAM), explicaram brevemente os fundamentos do método científico e empírico, e explicaram o porquê de se poder afirmar, com certeza científica, que a interferência humana com o sistema climático está ocorrendo e é considerada a causa dominante do aquecimento observado desde a metade do século XX. Trouxeram, ainda, dados robustos sobre a trajetória das emissões de GEE brasileiras e sobre a associação entre a perturbação ao sistema climático, crise da biodiversidade e crise ambiental no Brasil.
“A influência antrópica foi identificada nas mudanças da temperatura próximo à superfície da Terra, na atmosfera e nos oceanos, assim como mudanças na criosfera, no ciclo hidrológico e alguns extremos. Esta evidência combinada conduz a ciência a afirmar que não há mais espaço para duvidar-se da existência da mudança do clima e da contribuição humana para o aumento do aquecimento global.”
Thelma Krug, Vice Presidente do IPCC
A Amazônia ocupou um espaço de destaque nos debates e esteve presente em todas as sessões, como era de se esperar tendo em vista o interesse do ministro no tema.
Ela foi abordada em toda a sua complexidade: a pressão sofrida pela floresta pelas atividades ilegais, que está lhe levando à beira de um “ponto de ruptura” (tipping point); o problema da regularização fundiária e da não destinação de terras públicas, que fomenta invasões, desmatamento e uma série de crimes e ilegalidades, com efeitos negativos sobre as áreas protegidas; a importância dos sistemas públicos e transparentes de monitoramento do desmatamento; os impactos do desmatamento na região sobre o agronegócio brasileiro e sobre comunidades locais; a ausência de uma política pública coerente de inovação e fomento à tecnologia e ao empreendedorismo; e as potencialidades para que a Amazônia seja o sustentáculo de uma nova economia brasileira, baseada na criação de cadeias de produção de produtos florestais de alto valor agregado, sistemas agroflorestais e valorização da sociobiodiversidade e do conhecimento local.
Empresas como Natura e Itaú Unibanco apresentaram suas propostas e compromissos para o cuidado com a floresta amazônica. A Natura expôs seu compromisso de desmatamento zero até 2030, além das já conhecidas iniciativas de repartição de benefícios com comunidades locais. O presidente do Itaú Unibanco, Cândido Bracher, apresentou a iniciativa liderada pelo banco, junto com Santander Brasil e Bradesco, que traz propostas para enfrentar o estado crítico da floresta, como aperfeiçoar a diligência do financiamento para não dar crédito a empresas que desmatam ilegalmente e apoiar a regularização fundiária na região.
Organizações da sociedade civil, como Greenpeace Brasil, Instituto Socioambiental, Imazon e WWF-Brasil expuseram inúmeros dados e estatísticas sobre a desestruturação da governança e dos instrumentos de proteção ambiental e climática no Brasil, como a queda orçamentária significativa dos órgãos ambientais; a ausência de execução mesmo dos recursos existentes; a diminuição abrupta e significativa das autuações e embargos pelo Ibama; a paralisação dos processos sancionatórios; a desregulamentação de normas ambientais, e o não repasse de fundos.
A Transparência Internacional do Brasil e a Human Rights Watch lembraram como a destruição ambiental e o enfraquecimento de órgãos de controle estão intrinsecamente relacionados. Redes de crime organizado se beneficiam das ilegalidades que degradam os biomas e ainda promovem violência, ataques a defensores ambientais e corrupção.
A sociedade civil também destacou a interconexão entre mudanças climáticas e direitos fundamentais, associando o art. 225 da CF/88 (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) a diversos outros direitos constitucionalmente protegidos, como o direito à vida, à alimentação, à moradia, à cultura e ao trabalho. A Conectas sustentou que o direito ao meio ambiente saudável compreende, na atualidade, o direito a um sistema climático estável e seguro para a atual e as futuras gerações. O professor Ingo Sarlet apontou que o conjunto de ações e omissões do governo na área ambiental atinge o “núcleo” dos direitos constitucionais, como o do art. 225. O especialista da ONU sobre meio ambiente e direitos humanos, David Boyd, relembrou as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil e apontou para uma situação de inconstitucionalidade pela situação do desmatamento.
Joana Setzer, professora da London School of Economics e especialista global em litígios climáticos, explicou como cortes constitucionais, ao se deparar com casos que tratam da mudança do clima, valeram-se dos direitos fundamentais para afastar reservas sobre a separação de poderes e para legitimar e justificar as decisões que obrigaram governos a rever seus planos climáticos ou a aumentar suas metas de redução de gases de efeito estufa. Os casos comparados englobam ações na Colômbia, Irlanda, Holanda e EUA.
No final, o ministro Barroso, elencou os pontos “incontroversos” que exsurgiram dos debates. Entre eles, estavam:
1. O Brasil está entre os 7 maiores emissores de GEE que são responsáveis pelo aquecimento global. Porém, diferentemente de outros países em que as emissões estão associadas ao progresso, industrialização e consumo (ainda que com suas conhecidas externalidades), no nosso caso decorrem de atividades criminosas que incluem desmatamento, extração ilegal de madeira, mineração ilegal e grilagem de terras.
2. O desmatamento e as queimadas cresceram expressivamente nos anos de 2019 e 2020 no Brasil.
3. Houve redução significativa das autuações e dos embargos pelo Ibama.
4. Até a propositura da ação, o governo não havia aprovado o Plano de Aplicação dos Recursos do Fundo Clima, nem alocado os recursos.
5. Setores financeiros e consumidores do mundo ameaçam boicotar os produtos brasileiros.
6. Apesar de já termos, de modo equivocado, desmatado 20% da Amazônia nos últimos 50 anos, o PIB da região está estagnado em 8% do PIB brasileiro. Destrói-se o ativo que a floresta representa ao Brasil sem correspondente desenvolvimento humano das 25 milhões de pessoas que habitam a Amazônia a e sem crescimento econômico da região.
7. Não há uma incompatibilidade entre um agronegócio bem gerido e a floresta.
8. O Fundo clima tem papel importante na consecução das metas internacionais, como as metas de redução de emissões.
A fala de encerramento do ministro Barroso trouxe uma mensagem contundente, de que é preciso lidar com os fatos, e não “criar uma realidade imaginária e paralela”, uma alusão indireta a mensagens de representantes do governo de que existe uma conspiração orquestrada contra o Brasil ou contra o governo brasileiro. O ministro declarou que o STF irá julgar o caso com referência aos fatos e à Constituição, aos acordos internacionais e à legislação.
“O Brasil precisa de uma agenda efetiva de desenvolvimento de baixo carbono. Isto é a coisa certa a fazer pelo nosso país, pelos cidadãos e pelos nossos filhos”.
Min. Barroso
A audiência pública da ADPF 708 já entrou para a história da corte. No atual momento político do Brasil e do mundo, ela foi um raio de luz no obscurantismo intelectual que nos assombra.
Espera-se, a partir desses dois dias, que o julgamento também entre para a história mundial das decisões judiciais que buscam corrigir a insuficiência das ações dos Estados em dar respostas à altura do maior desafio já enfrentado pela humanidade, que é a mudança do clima, e que sirva como paradigma para futuras ações de litigância climática no Brasil.
* Caio Borges é Coordenador do Programa de Direito e Clima do Instituto para o Clima e Sociedade (iCS). PhD em Direito (USP/Universidade Fudan) & Master in Law and Development (FGV Law School). Tem mais de 10 anos de experiência de trabalho como consultor jurídico no setor financeiro privado; advogado em organizações sem fins lucrativos e; e estudioso em escolas de negócios e de direito.
Fonte: ClimaInfo
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