Ele é instrutor de capoeira. E, em seu violão, adora se aventurar pelas harmonias da bossa-nova. Mas a verdadeira paixão intelectual do geógrafo norueguês Torkjell Leira é, mesmo, a Amazônia. Sua primeira vivência em terras brasileiras foi no início da década de 1990, quando, ainda no ensino médio, estudou numa escola pública de Brasília (DF). Foi nessa época que ele se encantou pela disciplina que definiria sua trajetória acadêmica: “O livro de geografia em meu material didático, no Brasil, era muito melhor que os livros de geografia que usávamos nas escolas norueguesas”, disse-me Torkjell. Falando em livros, foi exatamente esse o motivo de nosso encontro: ele acaba de lançar o polêmico Kampen om regnskogen, ou A luta pela floresta, na recém-publicada edição brasileira, pela Editora Rua do Sabão. A obra aborda o papel ambíguo da Noruega com relação às questões amazônicas. Por um lado, o país nórdico investe bilhões na preservação da maior floresta equatorial do planeta. Por outro, destina recursos ainda mais volumosos a iniciativas de temerários impactos sociais e ambientais, principalmente no ramo da mineração da bauxita, matéria-prima do alumínio. Torkjell e eu nos encontramos num simplório café, no Jardim Botânico de Oslo, sob as coloridas folhagens desse início de outono. Ele divide com nossos leitores – em português impecável – algumas de suas inquietações acerca dos atuais descaminhos ambientais e políticos trilhados por um dos mais prósperos dos países nórdicos e pelo conturbado gigante sulamericano. A seguir, trechos selecionados desse bate-papo.
Crimes ambientais, desmatamento ilegal, a relação entre a soja brasileira e as criações de salmão na Noruega, os atritos diplomáticos entre os dois países… O que esperar da leitura de seu novo livro?
Não é um livro acadêmico: quero que qualquer pessoa possa ler e entender. É também um trabalho literário, apesar de ser uma obra de não-ficção. Algumas das críticas ao livro, aqui na Noruega, apontam que a narrativa é quase como um suspense, que ela prende bastante a atenção do leitor. Fiquei muito feliz com essa crítica! O livro aborda três temáticas: o histórico das iniciativas norueguesa no Brasil, que começou no século 18; a presença da Hydro na Amazônia, a partir da década de 1970; e o escândalo ambiental envolvendo a empresa em 2018. Escrever sobre essas três dimensões foi mesmo como a construção de um suspense.
Qual é, afinal, o verdadeiro papel da Noruega na Amazônia brasileira?
Temos um papel muito ambíguo. É um paradoxo: investimos bilhões de reais para proteger a floresta amazônica. Temos muito orgulho disso e somos muitas vezes elogiados por essa iniciativa. Ao mesmo tempo, investimos pelo menos cinco vezes mais recursos financeiros em atividades que destroem a mesma floresta. É claro, sabíamos que o governo norueguês, assim como nossa indústria, tinha investimentos em setores duvidosos. Mas fiquei surpreso com a escala dos investimentos nesse lado mais sombrio em relação às questões ambientais e de direitos humanos.
Há exemplos para endossar essa afirmação?
Entre 2009 e 2019, investimos 8 bilhões de coroas norueguesas (R$4,8 bilhões) em ações de proteção à floresta e aos direitos indígenas. Esses investimentos se deram principalmente por meio do Fundo Amazônia, mas também por meio da Embaixada Norueguesa em Brasília e organizações não-governamentais como a Rainforest Foundation. Por outro lado, investimos mais de 40 bilhões de coroas norueguesas (R$24 bilhões) em atividades que ajudam a destruir a floresta. A maior parte, no setor de mineração. Somente entre 2010 e 2011, a Hydro investiu 30 bilhões de coroas norueguesas (R$18 bilhões) na Amazônia, comprando a divisão de bauxita e alumínio da Vale. O maior acionista da Hydro é o governo da Noruega, e a empresa, hoje, é condenada por crimes ambientais.
A Hydro é uma das maiores mineradoras do mundo, dedicada principalmente à produção de alumínio na Amazônia brasileira. Em 2018, a empresa ganhou notoriedade internacional quando um vazamento de rejeitos tóxicos vitimou gravemente o município de Barcarena, no Pará. Você argumenta que houve omissão política por parte do governo norueguês. Por quê?
A não-ação é uma escolha tão consciente como a ação. O caso da Hydro chegou ao parlamento norueguês: uma das maiores empresas do país, tendo o Estado como seu maior acionista, foi condenada pelo Ibama a pagar R$20 milhões em multas por crime ambiental na Amazônia. Isso é muito grave! Os ministros [da indústria, Torbjørn Isaksen e Iselin Nybø] não utilizaram as inúmeras oportunidades que tiveram para dizer publicamente que a Hydro errou e não atuou conforme as expectativas de seu maior acionista. Os ministros simplesmente falaram muito sem dizer nada de conteúdo.
Houve autocrítica por parte da empresa, pelo menos?
Sim. O diretor foi afastado e a empresa já se desculpou oficialmente pelos acidentes. Depois disso, a empresa melhorou muito sua atuação social e ambiental. Houve grandes investimentos nessas áreas, desde então — mas são investimentos que deveriam ter sido feitos pelo menos uma década atrás. Isso também foi uma omissão. Por exemplo, por que a Hydro demorou tanto para aumentar a capacidade das estações de tratamento da água poluída resultante da produção da alumina? Todos sabiam, e muito bem, que a capacidade não era suficiente em cenários de chuva intensa.
Multas, desgaste político, péssima imagem… Isso quase levou a Hydro à falência, não? Como se desenrolou a história em seguida, fora dos holofotes da imprensa?
Depois do acidente, a empresa foi obrigada a reduzir em 50% sua produção. Isso causou prejuízos enormes e ela perdeu bilhões de reais, o que também influenciou os negócios em suas minas de bauxita em Trombetas e Paragominas. Além disso, a empresa perdeu dezenas de bilhões de reais na bolsa de valores. Foi um dos piores escândalos ambientais da história, envolvendo uma empresa norueguesa. De fato, foi a pior crise da empresa em seus mais de cem anos de existência. Mas esse embargo foi levantado no fim de 2018. A Hydro voltou a produzir normalmente. Espero que o episódio sirva de lição para as demais companhias norueguesas: se não levarem a sério questões sociais e ambientais, elas vão se dar muito mal. A questão é que a Hydro não pode concorrer com os chineses: eles produzem alumínio muito mais barato. Responsabilidade socioambiental, portanto, deveria ser o principal argumento a melhor qualificar seus produtos. Mas, agora, a empresa figura como vilã ambiental. Perdeu muito não apenas do ponto de vista financeiro, mas também do ponto de vista moral.
O episódio originou uma indigesta animosidades diplomática entre Brasil e Noruega. Essa relação melhorou desde então?
A relação entre os dois países ficou péssima. E não melhorou depois. Na sequência, assumiu Bolsonaro — e, desde então, a coisa travou mesmo. É disso que trato no último capítulo. E será também a temática de meu próximo livro: o Brasil de Bolsonaro.
A propósito, Bolsonaro chegou a ironizar a Noruega por conta da caça às baleias. Como analisa essa crítica?
Isso repercutiu muito por aqui: foi um ataque à Noruega. Sim, nós somos um país que mata baleias. E muitos nos criticam por isso, principalmente a própria sociedade civil norueguesa. Mas a questão é que esse argumento é totalmente deslocado da real natureza do debate. Bolsonaro diz isto para desviar a atenção do tema: o desastre que é a atual gestão ambiental na Amazônia como consequência de sua política e retórica. Outro argumento que ouvimos muito, não só por parte de Bolsonaro e Ricardo Salles, mas por parte da direita brasileira de modo geral, é que a Europa já destruiu todas as suas florestas. Quem somos nós, portanto, para dizer ao Brasil o que é certo ou errado? É verdade. Destruímos praticamente todas as florestas da Europa. Fizemos isso muitos séculos atrás. E aprendemos: foi um erro fatal. Hoje, com certeza faríamos diferente. Pessoalmente, acho que podemos compartilhar nossos grandes erros para que outros países não os repitam.
Em 2019, a Noruega congelou os repasses bilionários destinados ao Fundo Amazônia. Foi uma resposta ao aumento descontrolado do desmatamento na região e ao desmonte dos mecanismos de governança ambiental no país pelo governo Bolsonaro. Como avalia esse atrito?
Lamentável. O Fundo Amazônia foi, desde seu início, uma iniciativa brasileira. A Noruega é o doador principal, mas todos os méritos da iniciativa são do Brasil. E os resultados foram muito positivos.
Por exemplo?
Alguns anos atrás, fiz uma viagem pela Transamazônica: percorri mais de 4 mil quilômetros, partindo de Cabedelo, na Paraíba. Terminei a viagem em Lábrea no sul do Amazonas. Em vários locais ao longo desse percurso, verifiquei que o corpo de bombeiros, por exemplo, muitas vezes funcionava graças ao apoio do Fundo Amazônia. Também testemunhei que inúmeras iniciativas locais, para melhorar as condições de vida entre povos indígenas e colonos, eram possíveis graças ao Fundo Amazônia. Mais recentemente, até a implementação do Cadastro Ambiental Rural, o CAR, vinha sendo em parte financiada com grana do Fundo Amazônia. O sucesso dessas iniciativas parece ser o motivo pelo qual o governo Bolsonaro não fez questão de continuar a receber esses recursos.
Como assim?
Afinal, o projeto do governo Bolsonaro vai na direção oposta: preservar o menos possível. Infelizmente, esse é o projeto político. O governo brasileiro fechou, unilateralmente, o comitê científico e o comitê gestor do Fundo Amazônia. Resultado: o Brasil tem, hoje, bilhões de reais congelados numa conta do BNDES. É um dinheiro que está lá para ajudar o país a alcançar suas próprias metas ambientais, assumidas no Acordo de Paris. Para mim, é uma grande burrice o governo brasileiro estar agindo dessa maneira. Acho importante dizer que a Noruega não tem nenhuma relação com a gestão desses recursos — o lado brasileiro é que decide tudo sobre as aplicações do dinheiro. A gestão do Fundo Amazônia é 100% brasileira.
Você vê boas perspectivas para que essa colaboração volte a funcionar e trazer bons resultados?
Não. Com o atual governo, acho muito difícil. Isso também é ruim para a Noruega: tanta grana parada é, de certo modo, um estrago político.
Na infame reunião ministerial do dia 22 de abril, a expressão “passar a boiada” gerou grande repercussão internacional. Isso repercutiu também na Noruega?
Sim, repercutiu muito a ideia de ir “passando a boiada” nas questões ambientais da Amazônia… É até difícil traduzir para o norueguês essa expressão usada pelo ministro Ricardo Salles (risos).
Isso nos faz pensar sobre as questões agrárias: o mercado norueguês é um dos destinos da soja brasileira. Quais sãos os pontos sensíveis dessa relação comercial?
Quando o assunto é agricultura, há ligações fortes entre Noruega e Brasil. A empresa Yara, uma das maiores produtoras de fertilizantes do mundo, encontra um grande mercado no agronegócio brasileiro. Enquanto isso, parte da soja produzida no Centro-oeste encontra seu destino no mercado norueguês. A Noruega importa, há mais de vinte anos, muita soja para ração animal. O produto é usado, principalmente, em nossas criações de salmão. De fato, a maior parte da soja que importamos vai para a ração do salmão: a soja do Brasil compõe nada menos que 25% da ração para peixes em cativeiro aqui. Ela também é usada na ração para suínos e bovinos. Até a produção de leite, aqui na Noruega, depende em grande medida da soja brasileira. O problema é que, no Brasil, há uma forte relação entre produção de soja e desmatamento.
É possível afirmar que a soja adquirida pela Noruega não é oriunda de áreas ilegalmente desmatadas?
Não. Infelizmente, não podemos dizer isso. Os mecanismos de transparência são falhos e a indústria sabe muito bem disso. Essa falta de transparência tem sido alvo de críticas há duas décadas. Temos trabalhado muito com a Denofa, empresa norueguesa responsável pela importação e processamento da soja brasileira. Em 2005, integramos uma primeira delegação para Fredrikstad, cidade onde a empresa é sediada: eu, o Ianukulá Kaiabi [líder indígena no Xingu], o Marcio Santilli [do Instituto Socioambiental] e mais algumas pessoas da Rainforest Foundation. Naquela época, praticamente 100% da soja importada pela Denofa vinha do Brasil: estamos falando de 400 mil toneladas anuais do produto. De lá para cá, o volume continua praticamente o mesmo. Mas, agora, cerca de 75% desse total são oriundos do Brasil. A soja que chega à Noruega vem principalmente de Mato Grosso, estado onde há grandes problemas de desmatamento ilegal. Esses problemas continuam: tanto o desmatamento quanto a falta de transparência ao longo das cadeias de importação.
E como a Denofa responde a essas inquietações?
Eles passaram a importar apenas soja certificada. Esses mecanismos de certificação começaram a ser usados há quase duas décadas, mas o problema é que os critérios dessas certificações não são suficientes para garantir um grau satisfatório de transparência e responsabilidade socioambiental ao longo da cadeia produtiva.
Em 2014, um impactante relatório da Norwegian Church Aid, em parceria com as ONGs norueguesas Framtiden i Våre Hender e Rainforest Foundation, apontou graves problemas sociais e ambientais na cadeia produtiva da soja produzida no Brasil e exportada à Noruega. Uso irregular de agrotóxicos, grilagem de terras e desrespeito aos povos indígenas foram alguns dos problemas identificados. De lá para cá, houve avanços? Acha que os mecanismos de certificação não são criteriosos os suficiente?
Esses sistemas de certificação resolvem, em parte, o problema para a Denofa e para a Noruega. Mas não resolvem o problema da Amazônia, do Cerrado, da agricultura brasileira: o desmatamento continua. Afinal, apenas uma parcela muito pequena, talvez 2%, da soja brasileira é de alguma forma certificada. Os importadores deveriam exigir de seus parceiros brasileiros que não trabalhem com soja “suja”, oriunda de áreas ilegalmente desmatadas. Alguns já fazem essa exigência. Mas a maioria, ainda não. Acho que o governo norueguês deveria ser bem mais firme exigindo isso. O grande desmatamento, para expandir a produção de soja, continua. O desmatamento ilegal continua. E alguns produtores de salmão já questionam e querem saber mais detalhes sobre a origem da soja que compram…
Alguma ressalva quanto à soja transgênica?
A Noruega não importa soja transgênica. Por isso, aliás, não importamos a soja produzida no sul do Brasil, que é em sua grande maioria transgênica.
Em seu livro, você também analisa a temática social e dos direitos humanos. Como isso se conecta com o agronegócio brasileiro?
Muito simples: no Brasil, a área destinada ao cultivo de soja que acaba no mercado norueguês poderia abrigar pelo menos 11 mil famílias no regime da agricultura familiar.
Fonte: O Eco
Comentários