“Fugir da realidade é ótimo para quem não quer (ou não sabe) enfrentar o que importa, é só inventar uma briga com o que não importa. Temos que tomar cuidado para não fazermos o mesmo em nossas vidas.”
—— Por Augusto César Barreto Rocha (*)——
Em tempos de pandemia, começamos (por vezes) a dar atenção para o que importa, deixando de lado o que não importa. A saúde é historicamente desprezada no Brasil. Temos menos leitos de hospitais do que necessário. O que pode importar mais do que a saúde? Não ligávamos para isso. Em 2012 o Brasil possuía 2,3 leitos/1000 habitantes, mais recentemente reduziu para 1,95 e a OMS recomenda 3 a 5 leitos. Será que isso realmente nos importava? Na gripe sazonal, a internação tinha média de 3,6 dias versus 12 dias na Covid-19, a taxa de hospitalização era 1,3% versus 10,6% e uma mortalidade de 0,1% versus 3,6% da doença do momento. Estatísticas que importam nas ações.
O turismo possui uma importância grande para quem atua no setor. Entretanto, é claramente supérfluo para quem é fora dele. Tanto é, que todos os países do mundo praticamente fecharam as suas fronteiras e não se vê revoltas dos usuários do transporte e do turismo. Com os mecanismos tecnológicos de hoje, uma quase totalidade das viagens a trabalho podem ser substituídas por vídeo conferência. Importa ou não? Bem, não importam, pois podem ser feitas de outra forma, a um custo de tempo e de dinheiro muito menores – não é algo essencial. O Governo do Brasil não liga em nada, pois o faturamento deste setor foi praticamente para zero e não se verifica nada específico para hotéis ou seus fornecedores. Não se veem ações setoriais para as maiores vítimas econômicas, junto com a aviação.
Os países começam a perceber que a dependência de uma indústria de outro país possui vantagens, mas também enormes desvantagens. Como é bom ter um produtor ao seu lado. Como é melhor do que importar, se existe uma indústria nacional forte. Pode ser um ressurgimento da industrialização nos países. É visível o quanto é caro e lento mover bens ao redor do mundo, quando temos pressa. Mais do que ferir a globalização, pelo olhar negativo, poderemos ver um ressurgir da industrialização nos países, pelo seu contraponto.
As pessoas afirmam a importância das famílias, mas pouco ou nada convivem entre si. Nestes tempos de isolamento social, o convívio familiar foi intensificado. A família verdadeiramente veio para o centro doconvívio. As pessoas estão se reconhecendo e encarando seus pontos fortes e fracos, na convivência estreita e constante. Produtos para melhorar as casas terão um boom em vendas, certamente, após esta crise.
A transformação para melhor do mundo virá da união de esforços, pois temos feito a opção estranha de divisão, como se a sociedade precisasse de lutas constantes. Até precisamos, mas a luta deveria ter como resultado algo. Além de frases vazias como “melhorar a saúde”, sem métricas objetivas, como leitos por habitante, número de respiradores, médicos intensivistas para UTI etc. No meio da realidade objetiva surgem outros números que nos chocam: mais de 110 mortos em um dia pela Covid-19. Mas ainda não nos chocamos com o número de mais de 170 homicídios ao dia, que o que vivemos no Brasil.
Este encontro com realidade poderá ser muito bom. Ao contrário do que é ver nosso Presidente lutando contra a ciência e a estatística, fazendo par com a Nicarágua, Belarus e o Turkemenistão (únicos países onde os presidentes “negam” as medidas prescritas pela OMS para o combate da pandemia). Para mim ficou muito mais chocante depois de ler o artigo e as tabelas estatísticas dos médicos franceses sobre a cloroquina, analisando a sua eficácia potencial (longe de evidenciar, eles apontam para uma linha de ação e o artigo sequer passou pelo peer review completo para sua publicação final).
Também choca ler sobre o presidente francês fazendo apoio semelhante ao nosso, como sendo solução mágica, afinal o projeto de pesquisa do tal remédio foi financiado pelo governo francês. Este encontro com a nossa realidade poderá ser ótimo, se conseguirmos nos unir com o que importa, mas também poderá ser péssimo, se continuarmos a fugir para os mundos distantes da realidade objetiva, como se estivéssemos debatendo um jogo de futebol, como a bela análise do Juca Kfouri: “O Fla-Flu da cloroquina”. Fugir da realidade é ótimo para quem não quer (ou não sabe) enfrentar o que importa, é só inventar uma briga com o que não importa. Temos que tomar cuidado para não fazermos o mesmo em nossas vidas.
(*) Professor da UFAM
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