O Ministério do Meio Ambiente (MMA) usou toda a verba disponível em 2020 na modalidade não reembolsável do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC) em um único projeto. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 17 de janeiro deste ano, a Lei 13.978 – Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020 – reservou o montante de R$ 6,2 milhões para o FNMC apoiar sete projetos. Porém, o valor integral destinado à modalidade não reembolsável do fundo foi direcionado somente ao projeto Lixão Zero, do governo de Rondônia, estado governado pelo coronel da PM Marcos Rocha (PSL), um dos mais fiéis aliados do presidente Bolsonaro.
A principal finalidade do projeto é eliminar lixões existentes em 11 cidades do interior de Rondônia, onde são depositados anualmente em torno de 50 mil toneladas de lixo. Para direcionar todo o recurso de 2020 do Fundo Clima ao projeto, o MMA lançou mão de uma série de procedimentos suspeitos, a começar pela falta de chamada pública para o envio de projetos elegíveis a receber apoio financeiro do FNMC, mais conhecido como Fundo Clima.
Entre as operações de procedimento duvidoso na tramitação do projeto, chama a atenção o empenho (reserva no orçamento) este ano de R$ 8,9 milhões para as ações do Lixão Zero em Rondônia, que incluem os R$ 6,2 milhões do Fundo Clima. A cifra é a soma das três notas de empenho emitidas em setembro, outubro e novembro pelo MMA, representando 74% do valor total do projeto (R$ 12 milhões).
Ocorre que o plano de trabalho do projeto prevê o desembolso em três parcelas, relacionadas às cinco metas da iniciativa: R$ 400 mil em outubro de 2020 (meta inicial referente à elaboração dos projetos básicos); R$ 6,7 milhões em fevereiro de 2021 (metas 2, 3 e 4, que contemplam a instalação de três unidades de triagem e compostagem, duas centrais de transbordo e obras de engenharia para o encerramento de lixões em 11 cidades); e R$ 5 milhões em fevereiro de 2022, que serão gastos na compra de quatro caminhões, incluindo um do tipo gaiola, voltado à coleta seletiva.
O artifício travou o Fundo Clima em 2020, à medida que o repasse integral do valor disponível ao governo de Rondônia impediu que parte do recurso pudesse apoiar outros projetos. Segundo um especialista em orçamento público que pediu para não ser identificado, o MMA precisa esclarecer por que emitiu notas de empenho em 2020 para a maior parte do valor total do projeto, visto que o plano de trabalho prevê o desembolso este ano somente da primeira parcela, a de R$ 400 mil. A operação colidiria com dois dispositivos legais, segundo o especialista.
Os artigos 2º e 34 da Lei 4.320/1964, que regula os orçamentos públicos, determinam que a execução orçamentária obedeça ao princípio da anualidade. Isto é, os empenhos de um ano só podem ser feitos se o cronograma de desembolsos da proposta prever pagamentos naquele ano. Já o artigo 27 do Decreto 93.872/1986 ordena que “as despesas relativas a contratos, convênios, acordos ou ajustes de vigência plurianual, serão empenhadas em cada exercício financeiro pela parte nele a ser executada”. O exercício financeiro corresponde ao período do ano civil, que inicia em 1º de janeiro e termina em 31 de dezembro.
Uma hipótese para a operação seria um possível interesse do gestor em assegurar de antemão os recursos do projeto, uma vez que valores empenhados, mas não gastos até o fim de 2020, podem ser incluídos como restos a pagar no orçamento de 2021. “Empenhar quase tudo é uma forma de não ter que solicitar limite para empenhar no orçamento do ano seguinte, o que significa não ter que discutir isso com o Ministério da Economia nem disputar com as outras prioridades do próprio MMA”, diz o especialista.
No ano passado, nenhum projeto foi selecionado para receber recursos não reembolsáveis do Fundo Clima porque o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, não convocou as reuniões do comitê gestor, responsável pela aprovação dos projetos que demandam recursos do fundo. Dessa forma, apenas R$ 718 mil foram empenhados (reservados), destinados a completar a transferência de recursos a um projeto de adaptação climática da Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento da Bahia com previsão de finalização em dezembro de 2020.
O montante disponibilizado à Bahia representou 9% da dotação total de R$ 8 milhões destinada no orçamento federal de 2019 ao Fundo Clima. Na modalidade não reembolsável, o recurso não empenhado em um ano (não reservado) não acumula com a verba do ano seguinte. Ao empenhar parcela tão pequena da dotação de 2019, o fundo pode ter deixado de apoiar, por exemplo, dez dos 25 projetos aprovados no edital conjunto com o FNMA lançado em 2018. Apenas havia dinheiro em 2018 para financiar 15 desses 25 projetos. Desse modo, dezenas de órgãos públicos e outras entidades ávidas por dinheiro para implementar suas ações climáticas deixaram de ser atendidas pelo Fundo Clima em 2019 e 2020.
Análise apressada
Conforme dados verificados pela reportagem no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do governo federal, a proposta de Rondônia foi recebida pelo departamento de qualidade ambiental e gestão de resíduos (DQAR/MMA) às 15h32 do dia 23 de junho. Às 20h01, uma nota técnica com recomendação favorável à proposta de Rondônia já estava pronta, com as assinaturas de Luiz Gustavo Gallo Vilela, diretor do DQAR, e Mariana Miranda Maia Lopes, diretora do departamento de desenvolvimento sustentável (DEDS/MMA). Em menos de cinco horas, portanto, um projeto com custo total de R$ 12 milhões recebeu sinal verde da área técnica para ser apreciado pelos colegiados do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e do Fundo Clima (FNMC). E por meio de documento técnico assinado por detentores de cargos comissionados.
“Não é uma prática usual. Quando estive em um cargo de confiança no MMA, documentos dessa natureza eram produzidos e assinados pelos técnicos que os elaboravam. Apenas adicionava o meu ‘de acordo’ às suas assinaturas”, conta um especialista em políticas climáticas que aceitou analisar os procedimentos da pasta do Meio Ambiente sob anonimato.
Em reunião realizada em 15 de julho, o conselho deliberativo do FNMA aprovou o projeto por unanimidade e autorizou o MMA a lhe destinar R$ 6,2 milhões do orçamento do fundo. Dificilmente haveria desfecho distinto, tendo em vista que o ministro Salles alterou radicalmente a composição do conselho para que o governo assumisse integralmente o seu controle.
O Decreto 10.224, de 5 de fevereiro de 2020, limitou a composição do conselho a apenas sete representantes do governo federal (quatro do MMA, incluindo o ministro Salles, que o preside, um da Casa Civil e um do Ministério da Economia). Na formação anterior, havia oito representantes do Executivo e dez de entidades da sociedade civil. A reportagem não encontrou as pautas e as atas das reuniões do conselho do FNMA nem no portal novo do MMA nem no antigo. Nem mesmo é possível saber que projetos foram aprovados, visto que o link para acessá-los não funciona.
No caso do Fundo Clima, a liberação dos R$ 6,2 milhões disponíveis para o mecanismo em 2020 ao projeto de Rondônia foi aprovada na 28ª reunião de seu comitê gestor, em 22 de outubro. Dos 11 membros do comitê presentes, somente três manifestaram preocupações quanto à aprovação da proposta de Rondônia da forma como ela chegou ao Fundo Clima.
O representante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação (MCTI), Marcelo Morales, sugeriu estudo prévio de viabilidade técnica e econômica do projeto e, ainda, estudo da situação das emissões atuais e da previsão das emissões após a implementação do empreendimento. Marcos Vinícius Cantarino, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), mostrou-se preocupado com “a estratégia de continuidade para garantir a sustentabilidade do projeto após a fase de implementação”. Afinal, o projeto não indica como o governo executará atividades de manutenção nas obras e caminhões adquiridos com as verbas do Fundo Clima após o término do projeto em 2022.
De acordo com a ata da reunião, o Secretário de Qualidade Ambiental do MMA, André França, “enfatizou a urgência para dar fim ao problema da operação dos lixões e sugeriu que a estimativa desses resultados não deveria ser condição prévia para iniciar as intervenções necessárias”. França também relativizou a preocupação de Cantarino, ponderando que os municípios participantes do projeto precisam se comprometer com a operação e a manutenção das instalações dos equipamentos em uma parceria mais ampla e permanente com o governo estadual.
O projeto foi aprovado por dez votos, inclusive os dos representantes do MCTI e da CNI, tendo apenas um voto contrário, o da representante do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), Flavia Witkowski Frangetto, advogada e consultora especializada em direito ambiental e mudanças climáticas. Flávia pediu que fosse registrada em ata a ressalva de que o projeto deveria pressupor três condicionantes: encerrar só os lixões não é suficiente; é necessária a descontaminação dos terrenos; e a necessidade de esclarecimento acerca do destino do lixo que já estava depositado nos lixões. Além das condicionantes, a representante do FBMC ressaltou a necessidade de que haja uma afinidade mais robusta do projeto com a agenda do clima.
O Secretário-Executivo Adjunto do MMA, Eduardo Lunardelli Novaes, discordou de Flávia, argumentando que “o tratamento de resíduos sólidos tem total afinidade com a agenda de clima, a ponto de ser considerado um setor específico nas metodologias de inventário de emissões de gases de efeito estufa preconizadas pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima”. O setor de resíduos responde por apenas 4% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa (incluindo efluentes líquidos), segundo os dados mais recentes do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeitos Estufa (SEEG). São mais relevantes para as emissões brasileiras o desmatamento (44% do total), a agropecuária (28%) e o setor energético (19%).
Com o intuito de deter o controle pleno também do Fundo Clima, Salles removeu os representantes da sociedade civil do comitê gestor e ampliou as vagas do setor privado. De acordo com o Decreto 10.143, de 28 de novembro de 2019, o comitê passou a ser composto por seis representantes do governo federal, cinco de confederações empresariais e um do FBMC, uma entidade paraestatal (contribui com o governo, mas não integra a administração federal). O decreto também incluiu o voto de qualidade, prerrogativa do coordenador do comitê gestor em caso de empate, que o acumula com seu voto ordinário. Previamente ao decreto, o comitê possuía 12 representantes do Executivo, dois do setor privado, um representando os estados e o Distrito Federal, um pelos municípios, quatro da sociedade civil e um do FBMC.
A proposta aprovada pelo Fundo Clima declara estar alinhada à Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e ao Plano Estadual de Resíduos Sólidos de Rondônia (PERS-RO), mas não menciona a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). Além do mais, cita as emissões de gases de efeito estufa, como o metano, entre os danos causados ao meio ambiente pelos lixões, sem indicar a quantidade de emissões que se pretende diminuir com a implementação da proposta.
Fonte: O Eco
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