Fernanda Wenzel e Pedro Papini
Entre janeiro de 2017 e junho de 2020, nove empresas associadas à invasão ou pressão sobre terras indígenas na Amazônia receberam 63,2 bilhões de dólares em investimentos. Aplicado nas companhias com a perspectiva de rentabilidade, o dinheiro acaba incentivando violações de direitos dos povos nativos da floresta, como disputa por terras, contaminação de rios, desmatamento e até violência física.
A conclusão é da terceira edição do relatório “Cumplicidade na Destruição“, produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em parceria com a ONG norte-americana Amazon Watch e lançado nesta terça-feira, 27 de outubro.
Os dados do estudo foram obtidos pelo observatório jornalístico De Olho Nos Ruralistas e pela instituição holandesa de pesquisa Profundo. As organizações mapearam recursos provenientes de 35 instituições financeiras em nove países diferentes, mas apenas duas são responsáveis por 26% do valor total dos investimentos: o banco estatal brasileiro BNDES, com US$ 8,5 bilhões aplicados em empresas que pressionam povos indígenas, e a BlackRock, que é maior gestora de ativos do mundo e destinou, no período, US$ 8,2 bilhões para as companhias associadas à violações de direitos na floresta.
Origem dos investimentos associados a violações de direitos indígenas
https://www.datawrapper.de/_/inBBG/
Valores estão concentrados em dois grandes investidores
Banco brasileiro BNDES e gestora de ativos BlackRock somam 26,4% das participações
A JBS, maior produtora de carne do mundo e o frigorífico que apresenta maior risco de desmatamento da Amazônia em decorrência de suas operações, recebeu US$ 8,4 bilhões em investimentos, o equivalente a 15 vezes o orçamento do Ministério do Meio Ambiente previsto para 2020. É a terceira empresa favorita do mercado financeiro entre as investigadas, atrás apenas da Vale e da Anglo American, ambas do setor de mineração.
Segundo o relatório da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a pecuária ocupa 80% da área desmatada da Amazônia. A floresta dá lugar ao pasto, que alimenta um rebanho em franca ascensão. O número de animais na região passou de 47 milhões em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. Das 215 milhões de cabeça de gado contabilizadas hoje em todo o Brasil, quase 40% pastam na Amazônia – muitos deles dentro de terras indígenas, o que é ilegal, mas abastece a indústria.
Segundo os dados obtidos pelas entidades, dos US$ 8,4 bilhões investidos na JBS, quase metade – US$ 3,7 bilhões – vieram do BNDES. Oficialmente, o banco informa que suas ações valiam, em junho deste ano, R$ 12,3 bilhões, ou cerca de US$ 2,2 bilhões. O banco público é o segundo maior acionista do frigorífico, com 21,32% de participação, atrás apenas da família Batista.
“É uma contradição do BNDES. Ao mesmo tempo em que é o gestor do Fundo Amazônia, e deveria aplicar recursos para garantir a proteção ambiental, ele mesmo financia a destruição”, analisa Sônia Guajajara, da Coordenação Executiva da APIB.
O terceiro maior acionista da JBS é a BlackRock, com participação minoritária (menor que 5%), mas cujos investimentos totais alcançam US$ 517,30 milhões. São 238 milhões em ações e 279 milhões em títulos de dívida, segundo o levantamento. Os dados são relativos à junho deste ano. Mas em agosto, a BlackRock informou ao ((o))eco que mantinha US$ 332 milhões em ações da JBS, o que indica que a gestora de ativos parece estar aumentando sua fatia de participação na JBS, apesar de se apresentar como a porta-voz do investimento ambientalmente responsável no mundo.
Ao ((o))eco, a gigante financeira argumentou que não tem poder de decisão sobre essas participações, uma vez que o frigorífico integra índices do mercado financeiro que determinam a composição das carteiras de ativos ao redor do mundo. É o chamado investimento passivo, uma excelente forma de as corporações financeiras lavarem as mãos sobre suas decisões de investimento.
“A BlackRock não possui uma política sobre como lidar com os investimentos que possam impactar o direito de povos indígenas. Tampouco tem se comprometido a pressionar as empresas nas quais ela investe para atuar pelo fim do desmatamento nas florestas tropicais como a Amazônia”, descreve o relatório da Apib e Amazon Watch.
Além da JBS, a BlackRock informou ao ((o))eco que investia US$ 39 milhões na Marfrig e US$ 24 milhões na Minerva, respectivamente a 5ª e a 10ª no ranking do Imazon de risco de desmatamento e também alvos de investigações independentes que mostram como seus fornecedores indiretos criam animais ilegalmente em áreas de floresta.
O levantamento da APIB em parceria com a Amazon Watch levou em consideração, além da compra de ações, operações de crédito, como empréstimos e a compra de títulos de dívidas. Somando todos os tipos de aporte financeiro, os bancos Santander, da Espanha, e Fidelity Investments, dos Estados Unidos, superam os investimentos da BlackRock na JBS.
Os maiores financiadores da JBS
BNDES é o segundo principal acionista do frigorífico, atrás apenas da família Batista.
“Tem muito subsídio para o setor da agropecuária, então todo mundo hoje quer desmatar para plantar capim e criar gado. E se o Acordo Mercosul-União Europeia sair, vai facilitar muito mais a exportação de carne e aumentar ainda mais a pressão por espaço para criar gado”, afirma Guajajara. Assinado em junho do ano passado após duas décadas de negociação, o acordo pode vir por água abaixo devido à desastrosa gestão ambiental do governo brasileiro.
JBS abate gado criado legalmente em áreas indígenas
Segundo o relatório da Apib e da Amazon Watch, “a JBS tem estado no centro de diversas violações de direitos socioambientais e de direitos humanos na Amazônia nos últimos anos”.
Em julho, um relatório da Anistia Internacional revelou que a companhia comprou gado bovino criado ilegalmente na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. No mês seguinte, a Agência Pública mostrou como um pecuarista do Mato Grosso, que acumula mais de R$ 20 milhões em multas ambientais e cria gado ilegalmente dentro da Terra Indígena Kayabi, se tornou fornecedor da empresa. A situação não é nova. Em dezembro de 2018, ((o))eco havia identificado quatro fornecedores da JBS dentro da Terra Indígena Karipuna, em Rondônia. O rastreamento foi feito através da plataforma “Confiança Desde a Origem”, da própria JBS, que deveria mostrar a origem do gado abatido pelos frigoríficos da empresa em todo o Brasil.
Mas desde o ano passado, a multinacional reduziu drasticamente a transparência do sistema. Diante das novas denúncias, a pressão de investidores internacionais subiu de tom e o banco europeu Nordea chegou a retirar um investimento de R$ 240 milhões na empresa.
Como resposta, a JBS anunciou, em setembro, o compromisso de monitorar toda a sua cadeia de fornecedores até 2025. Mas Rosana Miranda, assessora de campanhas para o Brasil da Amazon Watch, lembra que a empresa tinha feito a mesma promessa em 2009. “Mais de dez anos depois, sem ter cumprido esse compromisso, a JBS se dá mais cinco anos de prazo quando estamos vivendo uma situação dramática nos biomas brasileiros. A JBS coloca muita ênfase na ideia de que o rastreamento da cadeia total de fornecedores não é feito porque é tecnicamente muito difícil. Mas todos os anos organizações da sociedade civil e agências de jornalistas independentes, com orçamentos muito menores, conseguem comprovar a existência de desmatamento dentro da cadeia de fornecedores da JBS. Então como a maior empresa de alimentos do mundo não consegue fazer isso?”, questiona.
De fato, ((o))eco mostrou que as ferramentas para monitoramento do rebanho brasileiro – do nascimento ao abate – já existem, embora ainda não conversem entre si.
Agro, mineração e energia são setores críticos
Para identificar as empresas com maiores conflitos juntos aos povos indígenas no Brasil, a equipe do De Olho Nos Ruralistas analisou centenas de processos judiciais e fez uma série de entrevistas com associações e lideranças indígenas. Foram encontrados 797 casos judicializados envolvendo questões como contestação sobre demarcação, desapropriação e indenização por danos ambientais ou morais. Onze empresas estavam frequentemente associadas a estes conflitos, mas a Profundo só conseguiu levantar informações financeiras de nove delas.
Investimentos por setor
Maior investimento foi em empresas de mineração – Vale, Anglo American e Belo Sun.
Quatro destas empresas pertencem ao setor de mineração. A principal delas é a Vale, companhia que mais recebeu aportes de instituições financeiras segundo a análise da Profundo. O maior foco de conflitos da mineradora com povos indígenas se dá no Complexo de Carajás, o maior projeto de extração de minério de ferro do mundo, localizado no Pará. Laudos técnicos já comprovaram que a atuação da Vale na região levou à contaminação do Rio Cateté, principal fonte de água dos indígenas Xikrin. A empresa não paralisou as atividades mesmo durante a pandemia de coronavírus, o que foi apontado pelos indígenas como um dos fatores que levou este povo a ser um dos mais afetados pela doença no Pará.
No mesmo setor, aparecem ainda as empresas Anglo American, com sede no Reino Unido, a canadense Belo Sun e a brasileira Potássio do Brasil.
Na área de energia, o relatório destaca as companhias Energisa Mato Grosso, Bom Futuro Energia, Equatorial Energia Maranhão e Eletronorte. A Equatorial Energia Maranhão (antiga Companhia Energética do Maranhão, a Cemar), esteve envolvida em um dos casos mais trágicos de violência contra indígenas no Brasil. Foi em 2017, quando indígenas Akroá-Gamella tiveram as mãos decepadas. Segundo o relatório, as tensões locais que levaram a esse crime foram acirradas pelo projeto da empresa de instalação da linha de transmissão Miranda do Norte-Três Marias, com impactos no território Akroá-Gamella – uma etnia que busca há quatro décadas a demarcação de suas terras no Maranhão.
Segundo o levantamento da Profundo, a empresa recebeu US$ 346,6 milhões do banco espanhol Santander e tem entre seus principais acionistas a BlackRock, o Canada Pension Plan Investment Board (conhecida como CPP, é a empresa que adminsitra os fundos de pensão do Canadá), o fundo de pensão do governo da Noruega, a instituição financeira norte-americana Vanguard e a gestora de ativos britânica Schroders.
No setor do agronegócio, além da JBS aparecem a Cargill e a Cosan S.A. A Cargill é uma das maiores traders de commodities do planeta, com receita líquida de R$ 50 bilhões no Brasil em 2019. No Pará, a atuação da Cargill na região do Tapajós – incluindo a construção de um complexo de portos para escoamento de grãos – é apontada como um fator decisivo para a expansão da soja e a consequente pressão sobre as Terras Indígenas. Um exemplo é o do Território Indígena Munduruku do Planalto Santareno, cercado por propriedades de soja, milho, sorgo e fazendas de pecuária. Segundo o relatório, os indígenas são alvo constante de ameaças por fazendeiros e grileiros da região e sofrem com os impactos dos agrotóxicos em suas lavouras e com a contaminação e assoreamento de rios e igarapés.
Segundo Rosana Miranda, da Amazon Watch, cada um destes setores atinge de forma diferente os povos indígenas. No caso da mineração, a pressão se dá principalmente pelos requerimentos de pesquisa dentro dos territórios tradicionais e, em casos extremos, até mesmo atividades de prospecção ilegais dentro destes territórios. O estudo destaca que os processos de exploração minerária em Terras Indígenas da Amazônia cresceram 91% desde o início do governo Bolsonaro. Um movimento estimulado por iniciativas como a PL 191/2020, que libera a mineração e o garimpo em Terras Indígenas. O projeto, apresentado pelo governo federal, pode ser votado a qualquer momento na Câmara.
“Outro eixo de pressão desses setores é o incentivo direto e indireto a atores locais como grileiros ou garimpeiros ilegais. Há também a omissão pela falta de controle sobre sua cadeia de fornecedores, que é o caso da JBS. Destaca-se ainda o desrespeito sistemático à legislação que protege as terras e direitos indígenas, principalmente o direito à consulta prévia livre e informada no caso de empreendimentos que impactem estes territórios”, conclui Miranda.
Para Miranda, os grandes investidores internacionais ganham ainda mais relevância diante do desmonte da política ambiental brasileira. “Esses investidores e grandes corporações financeiras têm o poder de incentivar ou moderar certos posicionamentos do governo brasileiro. Essas empresas têm uma responsabilidade, muitas delas assumiram compromissos públicos de políticas socioambientais e de mudanças climáticas, e os dados que trazemos mostram que estas políticas não estão sendo cumpridas”.
Contraponto: o que dizem as empresas (as respostas estão sendo publicadas à medida em que são enviadas pelas empresas)
Cargill (confira a íntegra da resposta aqui):
A Cargill reafirma seu compromisso em respeitar e defender os direitos dos trabalhadores, povos indígenas e comunidades locais. Em relação ao processo judicial mencionado no relatório, é importante esclarecer que a Cargill não faz parte dessa ação e não consta em nenhum dos autos da ação. A empresa também destaca que tem sido um dos principais apoiadores da Moratória da Soja na Amazônia, em que se comprometeu a não comprar soja de terras desmatadas após 2008.
Energisa Mato Grosso (confira a íntegra da resposta aqui):
E empresa afirma que são inverídicas as acusações de que a Energisa Mato Grosso contribuiu com grileiros da Terra Indígena Urubu Branco, em prejuízo do povo Tapirapé. A Energisa Mato Grosso também lamenta que só tenha sido procurada pela APIB na noite do último dia 22 de outubro, mesmo a entidade admitindo que a coleta das informações que embasam o relatório foi feita em junho de 2020.
Vale S.A. (confira a íntegra da resposta aqui):
A Vale não realiza atividades de pesquisa mineral ou lavra de qualquer natureza em terras indígenas no Brasil e respeita rigorosamente a legislação vigente. A empresa reforça que respeita o princípio do consentimento livre, prévio e informado junto às comunidades indígenas. A Vale declara, ainda, que em seu plano de produção atual não estão sendo considerados recursos minerais ou reservas minerais em terras indígenas no Brasil. A companhia está reavaliando sua carteira de processos minerários, incluindo requerimentos de pesquisa que interferem total ou parcialmente com terras indígenas.
Belo Sun:
O licenciamento do Projeto Volta Grande, da Belo Sun Mineração, segue todos os ritos pertinentes. A empresa está sempre à disposição das comunidades, entidades e órgãos envolvidos no processo de licenciamento e reforça seu compromisso com a região da Volta Grande do Xingu, respeitando a legislação brasileira nos âmbitos federal, estadual e municipal. A Belo Sun tem um relacionamento respeitoso e colaborativo com a TI Paquiçamba e a TI Arara da Volta Grande e é infundada a ideia de que a empresa pretende explorar minério em terras indígenas, pois os títulos minerais estão fora das terras indígenas, a mais de 10 km da TI Paquiçamba e a mais de 14 Km da TI Arara da Volta Grande. O projeto continua com a Licença de Instalação (LI) suspensa pelo TRF1 e a Belo Sun concluiu e submeteu com sucesso o Estudo de Componente Indígena (ECI) à FUNAI (Fundação Nacional do Índio), no final de fevereiro deste ano, seguindo os protocolos estabelecidos pela entidade, incluindo a coleta de dados primários e a consulta às comunidades indígenas em consonância com as diretrizes da Convenção 169 da OIT.
Potássio do Brasil (confira a íntegra da resposta aqui):
A Potássio do Brasil recebeu os Direitos Minerários em 2008 e iniciou as pesquisas geológicas na região de Autazes/AM, em conformidade com a legislação vigente e sem que houvesse qualquer restrição nas áreas objeto das autorizações concedidas pelo órgão competente. Em 2012, quatro anos após o início das pesquisas geológicas, a FUNAI delimitou a TI Jauary. Assim que confirmou esse fato, a Potássio do Brasil paralisou as atividades na região que passou a constituir a TI Jauary. O Projeto Potássio Autazes está localizado fora de qualquer Terra Indígena.
Cosan S.A:
A Cosan nunca teve titularidade das terras mencionadas no documento nem qualquer atuação nesses eventos. Os fatos de que tratam o relatório são de mais de 50 anos atrás e já foram resolvidos com a demarcação.
Anglo American (confira a íntegra da resposta aqui):
A Anglo American desistiu de todos os requerimentos de pesquisa mineral localizados dentro das terras indígenas, mas diversos desses pedidos ainda constam do cadastro da Agência Nacional de Mineração (ANM). Alguns requerimentos de pesquisa vigentes podem margear terras indígenas, apresentando blocos com pequenas interferências nesses territórios. Em casos assim, é papel da AMN demarcar esses blocos fora dos territórios indígenas.
JBS (confira a íntegra da resposta aqui):
A JBS afirma que todos os apontamentos trazidos pelo relatório da Amazon Watch e APIB já foram respondidos anteriormente pela empresa. A companhia também afirma que apresentou em setembro a Plataforma Verde JBS, que permitirá estender o monitoramento que já faz de seus fornecedores aos demais elos da cadeia.
Fonte: (O) Eco
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