Num brilhante ensaio sobre Modernidade, ‘Afinal, quem é mais moderno neste país?’, publicado em 2005, pela Universidade de São Paulo, o romancista Márcio Souza menciona a estrutura da indústria eletrônica da Zona Franca de Manaus, no século XX, além da agricultura capitalista de pequenos proprietários – a partir de 1760, com o Marquês de Pombal – a economia extrativista exportadora em 1890 com a borracha, e a manufatura de artefato de borracha dessa época, além do polo naval de Belém e arredores, como alguns dos lampejos de Modernidade da Amazônia.
São indicadores de primórdios liberais, políticos e de efervescente dramaturgia do Grão-Pará e Rio Negro, no país das Amazonas, a partir de 1775. Esta colônia imperial, composta de homens livres e libertários, empreendedores, criativos, atentos às oportunidades regionais, numa economia planejada, um tecido social participativo, onde havia espaço para militância civil das mulheres, floresceu com a Sociedade das Novas Amazonas, que reunia mais de mil guerreiras do embate de organização da polis, irradiando de Santa Maria de Belém, no século XVIII, para todo Vale Amazônico, a defesa de direitos civis.
O destaque para esta Amazônia ignota se opõe a um Brasil escravagista, dependente do braço escravo e do modelo agrícola de monoculturas e latifúndios. Originalmente o lugar escolhido para a Corte Tropical, quando Portugal se abrigou por aqui para fugir as retaliações napoleônicas do século XIX, a Amazônia viu fugir para Salvador e depois Rio de Janeiro sua vocação de modernidade estratégica. A comparação destes dois agrupamentos sociais desembarca num confronto de princípios e de valores, onde o mais truculento se dirige ao mais organizado num gesto genocida sem paralelo na história continental. “Aqui muito sangue também foi derramado e princípios também estiveram em jogo. Basta relembrar como foram os trágicos anos vividos pelo então Grão-Pará entre 1823 e 1840”, sublinha o romancista.
Trata-se do genocídio da Cabanagem. Portugal tinha duas colônias na América: o Brasil e o Grão-Pará e Rio Negro. Se de Lisboa a Belém, eram 30 dias, utilizando ventos e correntes na rota Caribe e maior influência europeia; Lisboa a Salvador ou Rio de Janeiro, ventos da rota Africa eram 90. Daí o recrutamento de escravos. E do Rio de Janeiro a Belém, até 5 meses, rota temerária, ventos e correntes desfavoráveis.
Entre 1823 e 1840, o Grão-Pará, por não adotar o paradigma de governança do Império brasileiro, foi anexado brutalmente ao Brasil, perdendo na guerra da Cabanagem cerca de 40% de sua população (mais de 60% da população masculina) e toda sua base econômica. Uma violência mais cruenta que Ruanda, Camboja ou Armênia, genocidas que chocaram o Século XX. Em ensaio sobre as Lições do Ciclo do Borracha, publicado igualmente pela USP, buscamos sintetizar no pioneirismo de Cosme Ferreira, a atitude dos empreendedores da Amazônia, expressa em seu livro Amazônia em Novas Dimensões: a atitude pacífica com que temos olhado a nossa busca de comunhão com este Brasil vesgo e agressivo: “O homem que Euclides da Cunha considerou um intruso, a perturbar com sua presença a serena e majestática gestação de um capítulo inacabado do Gênesis, é aqui, na realidade, o visitante longamente esperado, que apenas completará a paisagem, violando-a para que possa frutificar em benefícios que, de há muito, deveriam estar sendo fruídos pela comunidade brasileira, para não dizer pelo próprio mundo, tão carecedor desse imenso campo de trabalho, acolhedor e pacífico”.
O Brasil reagiu com modernidade veemente a truculência do presidente imprudente. Dia 5 de Setembro, o Dia do Amazonas, virou Dia da Amazônia, de nossa vocação para a Modernidade, é o Dia da Integração, inteligente, politicamente articulada, socialmente fraterna, econômica e necessariamente próspera, com este Brasil que nos subtraiu o rosto e, por isso, reluta em acolher a si mesmo. Até quando?
Comentários