“Inexiste lugar no Brasil tão propício a experiências avançadas em biotecnologia ou procedimentos de integração e reencontro do homem com a natureza”
Observador participante do desafio amazônico – de compatibilizar crescimento econômico, atendimentos das demandas sociais conservação ambiental – o Professor Jaques Marcovitch, por seus estudos e compromissos de brasilidade, fala com autoridade sobre entraves e possibilidades de gestão inteligente desta região emblemática. Um de seus recentes mergulhos na região foi a inclusão dos Empreendedores da Amazônia na galeria dos Pioneiros do Brasil, na Construção do Século XXI, programa de pesquisa e desenvolvimento socioeconômico da FEA/USP, a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. Jacques Marcovitch é Professor da FEA e do IRI da USP, da qual foi reitor de 1997 a 2001. Autor das obras “A Gestão da Amazônia – Ações Empresariais, Políticas Públicas, Estudos e Propostas” e da trilogia “Pioneiros & Empreendedores: A Saga do Desenvolvimento no Brasil”. Ele recebeu a Follow-Up para uma entrevista, confira:
Follow-Up – Com o programa Pioneiros e Empreendedores, a construção do Século XXI, a USP reafirma seu DNA de atuar – com a qualificação de recursos humanos – decididamente no avanço da cidadania e do crescimento social, econômico e científico do país. Como traduzir este papel num país fragmentado pelo descrédito, com uma juventude sem utopia e uma sociedade sem referência?
Jaques Marcovitch – A fragmentação nos dias de hoje não se restringe ao Brasil, que além deste fenômeno global enfrenta problemas conjunturais de notória magnitude. A desesperança e o declínio das utopias, referidas na pergunta, são desafios reais, principalmente quando afetam as novas gerações, que também respondem pelo futuro. Entretanto, devemos considerar que existe na própria juventude o seu núcleo de resiliência a esse descrédito. Como professor, tenho percebido entre os estudantes nítidos movimentos em busca de projetos de vida significativa e de engajamento na busca de soluções para os grandes desafios nacionais. A pesquisa “Pioneiros & Empreendedores”, em sua exposição itinerante, vem detectando, nos programas educativos que apresenta, um grande interesse dos jovens pelos exemplos dos pioneiros biografados e valores que orientaram suas vidas.
FUp – A universidade de São Paulo se volta para o Brasil e investe em sua integração ao visitar os pioneiros de cada região. Como fazer da relação academia, economia e crescimento, um fator de redução das desigualdades regionais?
JM – É histórica e aparentemente insanável a assimetria econômica e social das cinco regiões do Brasil e mesmo de suas unidades federativas. A Amazônia é o caso mais representativo. Falhas evidentes no discurso da sustentabilidade são, pela ordem, a omissão do drama social, o esquecimento do entorno da floresta e o foco exclusivo no desmatamento. Mostram-se deficientes os investimentos relativos à ocupação do solo urbano, saneamento básico, gerenciamento do lixo e geração de renda. Isso mantém milhões de indivíduos em habitações insalubres nas cidades e vilas do interior ou áreas periféricas das capitais. Cerca de 42% dos domicílios do Amazonas abrigam famílias com rendimento mensal de até dois salários mínimo. Esta é a região mais carente em coleta de esgotos, com apenas 12% do total de residências beneficiadas. Cerca de 37% dos municípios não dispõem de água canalizada, o que caracteriza uma penúria superior a do Nordeste brasileiro. É claro que a universidade sendo pública e comprometida com os anseios de cidadania deve orientar seus estudos para a formulação de políticas públicas engajadas na erradicação destas desigualdades. Os cientistas e pesquisadores na Amazônia ou fora dela devem ter os olhos postos neste quadro. Não é demais lembrar o conceito de Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, para quem o desenvolvimento não é a transformação das economias dos países, e sim a transformação da vida das pessoas.
FUp – A FEA/USP fez um recente trabalho sobre o Fundo Amazônia e constatou a distância entre demandas regionais e projetos de mudança. Quais os principais desafios para a gestão da Amazônia e como envolver a parceria entre as instituições nacionais de ensino e pesquisa neste desafio?
JM – A problemática da Amazônia é demasiado abrangente e inclui questões sociais, preservação da biodiversidade, infraestrutura científica, gestão das águas, modelo de desenvolvimento e outros múltiplos aspectos. O Fundo Amazônia é um microcosmo dos projetos que caracterizam essa realidade complexa. Marca uma conquista brasileira no debate internacional e vem sendo aperfeiçoado sob a gestão do BNDES. Seu pano de fundo é a sonhada remuneração internacional por serviços ambientais. Financiado em grande parte pela Noruega e Alemanha, tem por objetivo captar doações para viabilizar investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento, combate ao desmatamento, promoção da conservação e do uso sustentável das florestas no Bioma Amazônia. Sobre as metas pretendidas e sua atuação gestora, o BNDES informa que o Fundo deverá deixar para a Região um legado de atores locais capacitados, financeiramente sólidos, transparentes, responsáveis e aptos a manter uma nova dinâmica de desenvolvimento sustentável. Para tanto foi montada uma estrutura representativa da sociedade civil, a qual responde pela emissão das diretrizes gerais, cabendo, em tese, a um comitê formado por especialistas a relação com as instituições que apresentam e desenvolvem os projetos. De fato aconteceu, no âmbito da FEA/USP, um estudo focado em Pagamento dos Serviços Ambientais, com ênfase no Fundo Amazônia que se distingue por sua potencialidade e simbolismo no debate da cooperação internacional. Partimos de uma pesquisa junto a proponentes de projetos e convidamos a direção do BNDES para esclarecimentos. A principal informação obtida foi a de que o Fundo prioriza financiamentos a projetos que contribuem direta ou indiretamente para a redução do desmatamento na Amazônia levando em conta seus impactos econômicos e sociais. Tudo considerado, faz-se necessário estabelecer uma unidade do Fundo Amazônia na região Norte com profissionais recrutados localmente para orientar por meio de atendimento direto, cursos de capacitação e apoio à institucionalização dos movimentos, de modo a ampliar o alcance dos projetos e seus impactos positivos na região. Urge também a criação de redes institucionalizadas, via parcerias, para a implantação de programas e projetos que levem em conta as peculiaridades da região e adversidades que lhe são pertinentes. O estudo da FEA/USP teve por foco a governança do Fundo Amazônia com o objetivo de otimizar a utilização dos recursos disponíveis. Entre outras medidas o estudo sugere que se abrevie para 180 dias, no máximo, o tempo de análise de cada projeto para elevar a eficiência no uso dos recursos além de diminuir o custo incorrido pelas entidades proponentes. Aprovados os projetos, o monitoramento local reduziria o risco de alocar recursos que em seguida não são desembolsados em decorrência da baixa de execução dos projetos. Para isso, a quantificação adequada e a fixação de métricas é também indispensável nas iniciativas de sustentabilidade. Será indeclinável explicitar as métricas de insumos, de resultados e de impactos por projeto nos Relatórios de Atividades do Fundo Amazônia, emitidos periodicamente. Cabe lembrar a importância de disponibilizar uma memória técnica com o histórico dos projetos apoiados e também a urgência de implantar uma rede do Fundo Amazônia na Região Norte, integrada por cientistas locais, com alguma latitude para recorrer, em sintonia com as proponentes, de algumas decisões tomadas pelo BNDES.
FUp – No Acordo de Paris, sobre as questões do Clima, a Amazônia tem um papel e uma atenção global. Como fazer com que os atores locais assumam o protagonismo dessas ações e responsabilidades?
JM – A Amazônia é o pilar em que se apoiam quase todos os compromissos do Brasil na COP 21. O Brasil assumiu em Paris, o compromisso de reduzir a zero até 2030 o desmatamento ilegal. Além disso, o governo se comprometeu a compensar as emissões de gases de efeito de estufa provenientes da supressão legal da vegetação. Para honrar tais responsabilidades uma das metas é o restauro e florestamento de 12 milhões de hectares, além da ampliação dos sistemas de georeferenciamento e rastreabilidade aplicáveis ao manejo de florestas nativas para desestimular práticas ilegais e insustentáveis. Para que os atores locais detenham e aprofundem o protagonismo nas ações e responsabilidades em relação ao seu grande bioma, é importante um envolvimento cada vez maior nas tarefas preservacionistas em curso na Região. O monitoramento, a prevenção e a repressão foram determinantes na redução da taxa anual de desmatamento, que era de 28 mil quilômetros quadrados em 2004, e decresceu para 5 mil quilômetros quadrados em 2015. O desmatamento é, sem dúvida, o grande exterminador das potencialidades existentes neste bioma. Já se evidencia, entretanto, o fortalecimento de mecanismos e diretrizes para submetê-lo. A começar, sobretudo, pela convicção de que é preciso reduzir drasticamente os ganhos das forças nele envolvidas. Estas forças respondem por suas causas pontuais, antes exclusivamente focadas na grande lavoura de soja. Na verdade, o desmate é consequência de outros plantios, os itinerantes, que provocam as queimadas; de uma pecuária destrutiva, sem regras técnicas ou preocupações legais; e, sobretudo, da extração predatória da madeira. Um aspecto não suficientemente difundido é a culpa da pecuária no desmatamento e nas queimadas, quase sempre atribuído apenas à indústria madeireira ilegal. O futuro pode estar na Amazônia. Não há lugar no Brasil tão propício a experiências avançadas em biotecnologia ou procedimentos de integração e reencontro do homem com a natureza. A região oferece todas as precondições para a realização do sonho ambientalista. O caminho para isso, entretanto, não é mais a estrada curta da utopia. Aí estão fatores emergentes de ordem econômica e política, incluindo aspectos de uma nova sociedade jamais imaginada pelos visionários de ontem.
Esta Coluna é publicada às quartas, quintas e sextas-feiras, de responsabilidade do CIEAM. Editor responsável: Alfredo MR Lopes. [email protected]
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