Prezado Prof. Candotti,
li com respeito, atenção e muito apreço – por uma deferência do amigo José Machado, a resposta densa, procedente e deliciosa para a carta aberta. Pedi ao jornal Em Tempo que assegurasse de uma vez, se possível, ou em duas etapas, a integralidade de seu texto. Em seguida, solicitei ao Portal de Notícias, www.amazonasatual.com.br onde foi publicada a carta, para abrir espaço para sua resposta sem mexer numa vírgula. Farei o mesmo com o Blog do Sarafa, aqui copiado, e que costuma publicar, atenciosamente, também meus textos. E vamos ampliar a prosa, ela é fecunda, necessária e urgente, sempre passando a bola de sernambi, como faziam nossos antepassados. Forte abraço!
Eis a resposta do professor Ennio Candotti:
“Reflexões inspiradas pela cordial carta aberta de Alfredo Lopes e Wilson Perico
1. Ao ler as vossas generosas palavras, que comentam algumas afirmações minhas, registradas com mestria pelos jornalistas Suelen Reis e Wilson Nogueira em entrevista publicada na revista Valer Cultural de outubro/ novembro 2013, e motivado pela menção ao jogo de bola relatado Condamine, lembrei de um outro jogo parecido praticado pelos aztecas em que a bola (tambem de latex ou de chicle) devia ser atirada, com os quadris e as coxas, através de um furo circular de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro, aberto em uma pedra também circular de um metro de diâmetro.
2. O que me impressionou porém nos relatos deste jogo é que o melhor jogador, o que mais ‘furos’ atravessaria com seus arremessos, era sacrificado ao deus Sol para garantir que ele voltasse a brilhar no céu no dia seguinte. Quantos Ronaldinhos sacrificados!
3. Outra questão, esta agora de caráter tecnológico, é que os aztecas antigos conheciam as rodas (encontram-se rodas em brinquedos e no mencionado jogo da pelota) mas não a utilizavam como máquina simples capaz de aliviar a fadiga no transporte e no deslocamento de pesos. Uma formidável máquina que usa o atrito(estático) para rodar, facilitando o movimento.
4. Foram necessárias as reflexões de físicos (teóricos e aplicados) como Galileu e Newton para que a volta do Sol no horizonte, todas as manhãs de cada dia fosse uma certeza e não uma dúvida angustiante na vida dos mortais.
5. Se dependesse dos doutrinários ortodoxos bastaria sacrificar jogadores talentosos para garantir a luz do dia.
6. E aqui que quero apoiar minha alavanca e dar argumentos para um ponto de vista, ligeiramente diferente do vosso, sobre como se relacionam a ciência, a academia e a indústria ( creio que este é o nó das divergências):
7. Eu defendo que um sitema de inovação em C&T apoiado apenas em instituições e laboratórios de ciência aplicada, de engenharia voltada a fins específicos da indústria não se sustentam no longo prazo, não ajudam a indústria a se renovar e inovar, e mais grave, não se reproduzem, não formam novos ‘engenheiros’, quadros inventivos e capazes de promover inovações.
8. A grande maioria das aplicações é resultado de pesquisas básicas, desinteressadas ou interessadas apenas em aplicações de interesse da própria pesquisa. A internet surgiu nos laboratórios do CERN e tinha por objetivo compartilhar um grande numero de informações entre pesquisadores que analizavam os registros dos detectores de partículas que se formavam nas colisões elétrons, protons, pósitrons a altíssimas energias. Vale observar que a Europa investiu no CERN dez bilhões de Euros para construir uma máquina que produz resultados de remota aplicação mas imenso significado para a evolução das teorias físicas e a compreensão do micro e macrocosmo.
9. O laser, a fissão nuclear, a fusão nuclear nas estrelas, a energia elétrica, as ondas eletromagnéticas são descobertas que mudaram os rumos da nossa vida cotidiana e o caminhar da humanidade. Não foram encomendas da indústria .
10. Não se trata, a meu ver, de herança de Coimbra, dos padrões acadêmicos eruditos e livrescos, trata-se de uma falsa visão da relação entre o papel da pesquisa básica nas universidades e da formação prática voltada às aplicações supostamente úteis à industria.
11. Atribuo as nossas deficiências nas virtudes competitivas (comparadas com os padrões nacionais) em pesquisa, ensino e extensão à falta de apoio à pesquisa básica, aparentemente desinteressada ( do ponto de vista da produção de bens para o mercado), dada pelos órgãos que influem nas diretrizes da política de C&T no Amazoas e que devem sim dar apoio também à pesquisa aplicada.
12. Convém lembrar que a pesquisa básica tem sido objeto de rígidos padrões de avaliação pelas agencias nacionais e internacionais. Enquanto a avaliação da pesquisa tecnológica, aplicada, é mais complexa e ainda não encontrou sistemas confiáveis de medida e comparação. Enquanto a avalição da produção cientifica em ciencias exatas é razoavelmente (e há criticas severas a esse sistema) calibarada pela produção de artigos indexados em revistas qualificadas, o sistema de avaliação de qualidade na área tenológica através do número de patentes não é uma referência consensual.
13. Entendo que os recursos investidos em treinamento de quadros especializados e pesquisas voltadas a objetivos de atender às demandas das empresas, poderiam oferecer melhores condições de competitividade à industria, se o ambiente de pesquisa basica e desenvolvimento tecnológico obedecesse a uma rígida avaliação de qualidade e essa fosse um característica permanente de nosso ambiente industrial – acadêmico.
14. Defendo que o ambiente de pesquisa básica bem avaliado e exigente em seus padrões de qualidade poderia fertilizar a pesquisa aplicada, e industrial através do intercâmbio de idéias e a boa formação de quadros. Inclusive colaborando como observatório de ideias novas que surgem no horizonte da indústria ( vejam p.e. a fotônica substituindo a eletrônica nos dias de hoje ).
15. Como justificar que o quinto PIB do país convive com a centésima posição de suas universidades e institutos de pesquisa tecnológica? Sabendo que na classificação da produção científica, na qualidade do ensino e no impacto na produção industrial as istituições de ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico acompanham o PIB na Economia nacional.
16. É da resposta a esta pergunta que quero recolher elementos que nos permitam, na próxima década, reverter as incomodas posições ora ocupadas por essas instituições.
17. Ficaria feliz em pedir desculpas às instituições cujo desempenho critiquei, e o farei sem vacilar, desde que esse abjuro seja apoiado nas conclusões de um programa severo de avaliação, local, nacional e/ou internacional ( como se fez em outras instituições nacionais como p.e. Unicamp, UFRJ-COPPE). Uma avaliação técnico – científica das nossas instituições de P&D, financiadas com recursos públicos, federais, estaduais ou da Suframa.
18. Se considerarem oportuno posso pedir desculpas antecipadas pela suspeita levantadas e, caso as avaliações me dêem razão, fica o compromisso de me devolver as desculpas.
19. Quando insisto na severidade da avaliação o faço porque entendo que o valor dos investimentos públicos foi e é muito alto. A prestação de contas dessas instituições deve ser pública e expressa em forma que todos a possam entender (e não apenas os tribunais e a burocracia das contas). Não se trata de lisura na utilização dos recursos, se trata de avaliação das efetivas contribuições técnico científicas capazes de contribuir para a renovação e competitividade da indústria e a permanência dos melhores talentos .
20. Entendo que os recursos dos incentivos fiscais (ou dos recolhimentos de 1% para a UEA ou 5% da industria de informatica para P&D, são recursos públicos que a legislação, por vezes permite, sejam investidos em projetos de interesse comum do poder público e das próprias empresas.
21. Creio que deveríamos entender melhor a natureza desses recursos, ( incentivos fiscais , % do faturamento destinados a P&D, UEA etc), são eles públicos ou privados? Se há uma lei que determina o valor e regula seu recolhimento são públicos, se são ofertas voluntárias são privados. Lembro que em 2005 na Comissão de Orçamento do Conselho Nacional de Ciencia e Tecnologia, os recolhimentos de % do faturamento de empresas ao FNDCT para os fundos setoriais, impostos etc. eram contabilizados pelos orgãos responsáveis pelo orçamento de C&T como públicos. O seu uso foi em 2006 distribuido pelo MCT, em parte, em programas horizontais de P&D que nem sempre interessavam às indústrias de origem dos recursos.
22. Participei (antes como vice presidente e depois como presidente da SBPC) na segunda metade dos anos 80 das batalhas no Congresso Nacional em que se criaram legislações voltadas a fomentar os investimentos em tecnologias da informação. Lembro que nosso propósito era encontrar fontes de financiamento para o desenvolvimento de pesquisas capazes de permitir o desenvolvimento de projetos nacionais em TI e propiciar a competitividade da nossa industria de informática então nascente.
23. Naquela época a Coréia era apenas um pequeno país em busca de desenvolvimento, hoje lá se desenham os dispositivos que montamos no Polo Industrial. Pena, passados trinta anos poderíamos ter chegado mais longe, em Manaus e no país. O que gostaria de chamar a vossa atenção é que não é (apenas) por falta de recursos, financeiros e humanos, que a produção científica e tecnológica no Amazonas nos preocupa e compromete a competitividade e o desempenho das industrias do Polo Industrial.
24. Há uma outra questão que, para finalizar, gostaria de levantar: a da autonomia da universidade e dos institutos de pesquisa ( conforme consta na Constituição Federal Art. 217 ) estaduais e federais. Novamente discordamos, não se trata de distanciamento entre a realidade produtiva e o ócio improdutivo. Trata-se, a meu ver, de uma condição necessária para bem administrar o bom senso e o uso dos recursos públicos em áreas de ensino e pesquisa: produzir conhecimentos novos, formar jovens, atender a demandas de interesse social e industrial, competir internacionalmente e dar significado moral à realidade em que estamos imersos. As universidades estaduais paulistas conseguiram autonomia financeira (mesmo que parcial) no início dos anos noventa.
25. A falta de autonomia impede por exemplo que a UEA implante e/ou consolide a pesquisa científica em suas unidades, uma vez que os controle dos tribunais ( e a opinião das ‘elites’ conservadoras ) se concentra na contabilidade das horas de aula efetivamente dadas pelos professores: dizem que quem não leciona em sala de aula vive no ócio. Pesquisar ? Isso é coisa que se faz em Miami ou Paris.
26. A batalha não é nova, lembro que em 1975 na UFRJ ao criar o Instituto de Física, enfrentávamos querelas semelhantes que foram contornadas pelo crescente financiamento recebido por órgãos externos de apoio à pesquisa ( o BNDES e a Finep no caso ). Venceam as pesquisas e o bom senso prevaleceu na UFRJ . A carga horaria se limitou a seis ou oito horas de aula por semana.Hoje o Instituto de Fisica é um dos melhores do país e a COPPE e as engenharias se beneficiam com a presença do ilustre vizinho.
27. Lá, mas ainda não aqui. Por que ainda não há um Instituto de Física, de Química ou de Matemática na UEA (apesar de seus últimos tres reitores estarem sinceramente empenhados em criá-los) ? Não será porque predomina entre nossas lideranças academico- industriais conservadoras a visão de que a UEA deve se concentrar em preparar quadros para a indústria e para a administração pública e não deve se preocupar com pesquisa e conhecimento?
28. Parece fora de propósito dizer que a UEA também deva contribuir para decifrar a biblioteca da biodiversidade e dos ambientes amazônicos, aprender a ler os livros da natureza e quando possível tirar proveito dos segredos da fauna e da flora. Os conservadores, pragmáicos, repetem o mantra: a nos cabe conservar, devemos apenas evitar que se derrubem as árvores (quando possível). Não é nossa tarefa entender como e porque esta foresta cresce e se multiplica em solos pobres (façanha que os sojicultores gostariam imitar).
29. Sempre lembro de uma observação que ouvi em uma conferência internacional sobre meio ambiente: a vocês brasileiros cabe conservar a floresta. As pesquisas sobre toxinas, enzimas, fotossíntese, fitoterápicos e produtos naturais , devem ser feitas em Londres, N.York ou Paris, pois são necessários grandes laboratórios, exigem investimentos de grande porte e os resultados devem obedecer à legislação internacional que regula a propriedade industrial!
30. Finalizo para reafirmar minha convicção que o CBA sofre de doença crônica consequencia da falta de autonomia em sua gestão e de um Conselho Técnico Científico, com caráter deliberativo, que o oriente.
31. A falta de consistência científica contamina a sua estrutura jurídica e institucional. A idéia, que até agora prevaleceu em sua gestão, que um instituto de grande porte como o CBA deve limitar suas ações ao mundo aplicado e prestar serviços apenas às indústrias, é a meu ver equivocada, pequena para os desafios que o entender (e aplicar) a biodiversidade amazônica colocam aos pesquisadores tanto puros como aplicados.
32. O estoque de conhecimentos hoje existentes é ainda muito pequeno para que um instituto possa se dedicar apenas às suas aplicações, sem se preocupar com a pesquisa básica e a formação especializada de novos quadros (sem eles em pouco tempo a instituição se torna estéril) .
33. Novamente, a avaliação da produção científica e da formação especializada da instituição nos poderia dar um claro retrato de sua eficiência na realização da missão institucional que lhe foi dada: ampliar o estoque de conhecimentos sobre a biodiversidade amazônica e apoiar a indústria ( onde ela estiver, se em Manaus, melhor). As atividades aplicadas seriam apenas uma das consequencias naturais do bom desempenho da pesquisa fundamental . Os jovens formados se encarregariam de renovar e dar continuidade ao projeto institucional.
Perdoem a extensão de minha ‘resposta’, não imagino que ela possa ser publicada integralmente, eventualmente em partes, o vosso bom senso e experiência o decidirá. Talvez os pontos levantados (33! ) possam servir, junto com outras reflexões, como roteiro para promover um debate dedicado a examinar as razões que nossas instituições encontram para promover a pesquisa e o desenvolvimento capazes de responder aos desafios sociais, ambientais e industrias da Amazônia.
Com cordialidade, Ennio Candotti.”
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