O contínuo debate sobre o marco temporal, uma tese jurídica que pode determinar o destino de terras indígenas em todo o Brasil, teve um novo capítulo no Supremo Tribunal Federal (STF) este ano. Deputados federais e senadores se reuniram novamente, após diversas interrupções, para discutir a polêmica proposta, que, se adotada, pode resultar em consequências devastadoras para os povos tradicionais de Mato Grosso do Sul.
Esta tese, que limita o reconhecimento de terras indígenas àquelas ocupadas pelos povos tradicionais até a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, poderia afetar 49% das terras identificadas como de ocupação tradicional indígena no estado. De acordo com especialistas ouvidos pelo Campo Grande News, três etnias estariam diretamente ameaçadas.
Com 65 territórios em Mato Grosso do Sul sendo reconhecidos ou reivindicados como terras indígenas, o marco temporal poderia forçar revisões em 32 áreas que ainda estão em processo de demarcação no estado. O cenário nacional é igualmente alarmante, com outras 223 áreas também correndo risco.
Para Wilson Matos, professor, advogado constitucionalista e membro da etnia terena, a aplicação do marco temporal é injusta e retrógrada. Residindo em Dourados, onde está localizada a maior terra indígena do estado, Matos lembra do embate no STF em 2009, relacionado à demarcação da Terra Indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima. Naquela ocasião, o marco temporal foi legitimado para concluir a demarcação naquele estado.
Contudo, Matos teme que essa tese, que ele considera contrária à Constituição Federal e a tratados internacionais, possa ser generalizada. Ele aponta para um histórico de expulsões violentas nas décadas de 70 e 80 em Mato Grosso do Sul, onde indígenas foram retirados de suas terras e concentrados em reservas precárias.
De acordo com Matos, a aprovação do marco temporal poderia resultar em um novo deslocamento forçado de indígenas, intensificando conflitos entre diferentes etnias. “Será o caos”, alerta.
A validação do marco temporal também vai contra o entendimento internacional, como a Convenção 69 da Organização Internacional do Trabalho, que reconhece os direitos dos povos indígenas sobre suas terras.
Com o destino de inúmeras terras e de vários povos indígenas na balança, a discussão sobre o marco temporal se mantém como uma das mais cruciais para o futuro dos povos originários do Brasil.
A intensa discussão em torno do marco temporal, que busca definir as terras indígenas ocupadas até a promulgação da Constituição Federal em 1988, trouxe ao centro do debate a preocupação com o destino de diversas etnias indígenas. Entre elas, os guatós e os ofayés do Pantanal sul-mato-grossense, juntamente com os guarani kaiowá.
Liana Amin Lima, pós-doutora em Direito Socioambiental da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), tem chamado a atenção para a vulnerabilidade dessas populações. “São etnias pouco numerosas que não têm garantias às terras e correm risco quanto à sobrevivência”, explica Lima.
Para os guarani kaiowá, a história é marcada por usurpações. “Este povo sofreu o esbulho das terras para a distribuição de títulos a terceiros e tem direito à reparação coletiva pelas violações ocorridas”, comenta a professora, aludindo ao período sob a gestão do Serviço de Proteção Indígena (SPI). Ela ainda ressalta que a demora no processo de demarcação agrava conflitos agrários, especialmente em Dourados e no conesul de Mato Grosso do Sul. O cenário, como ela aponta, é “um grito de violação de direitos, frequentemente denunciado como genocídio”.
Com 15 anos dedicados à pesquisa de direitos indígenas, Lima critica o marco temporal, descrevendo-o como uma “tese interpretativa restritiva”, não contemplada na Constituição Federal. De fato, a Carta Magna é clara quanto à proteção aos direitos originários dos povos indígenas. A professora ainda destaca que o reconhecimento do direito indígena à terra não é uma inovação da Constituição de 1988. “Houve previsões em mandamentos anteriores, inclusive da época imperial”, argumenta, citando o Alvará Régio de 1680, a Lei de Terras de 1850, e as Constituições de 1934, 1946 e 1967 como exemplos.
Lima, também especialista em questões ambientais, ressalta o papel vital dos povos indígenas na preservação dos biomas brasileiros. Neste contexto, ela vê o marco temporal como mais uma ameaça. “Em um momento em que o Brasil está no centro das atenções internacionais por questões ambientais, é fundamental reconhecer e defender os direitos dos povos indígenas”, defende. E conclui enfaticamente: “O Estado brasileiro precisa rejeitar o marco temporal e evitar a mancha do genocídio”.
*Com informações Campo Grande News
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