As autoridades brasileiras deveriam investigar minuciosamente todos aqueles que incitaram, financiaram ou cometeram atos de violência nos recentes esforços para negar o resultado das eleições no Brasil, disse hoje a Human Rights Watch durante o lançamento do seu Relatório Mundial 2023. Esses esforços resultaram no ataque às instituições democráticas em Brasília em 8 de janeiro de 2023.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria responder a este ataque sem precedentes fortalecendo os princípios democráticos, defendendo o Estado de direito e enfrentando os problemas crônicos de direitos humanos que foram agravados durante a presidência de Jair Bolsonaro.
“O ataque de 8 de janeiro às instituições democráticas brasileiras não foi um episódio isolado, mas sim o resultado de uma série de ofensivas contra o sistema democrático durante os quatro anos em que Jair Bolsonaro foi presidente”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. “Em resposta, as autoridades brasileiras deveriam fortalecer o sistema democrático e defender o Estado de direito, responsabilizando todos aqueles que praticaram ou permitiram a violência.”
Em seu Relatório Mundial 2023, de 712 páginas (na versão em inglês), em sua 33ª edição, a Human Rights Watch analisa as práticas de direitos humanos em cerca de 100 países. Em seu capítulo introdutório, a diretora executiva Tirana Hassan diz que, em um mundo no qual as dinâmicas de poder têm mudado, não podemos mais depender de um grupo pequeno de governos, principalmente do norte global, para defender os direitos humanos.
A mobilização mundial em torno da invasão russa na Ucrânia nos lembrou do extraordinário potencial que existe quando governos em todas as partes do mundo cumprem suas obrigações de direitos humanos. Cabe a cada país a responsabilidade de incorporar as normas de direitos humanos em suas políticas e então trabalhar em conjunto para proteger e promover os direitos humanos.
O Brasil mostrou as consequências de não defender os direitos humanos. Durante seus quatro anos na presidência, o Bolsonaro, um apologista da ditadura militar abusiva do Brasil, ameaçou os pilares da democracia. Ele promoveu uma campanha de insultos e intimidação contra ministros do Supremo Tribunal Federal e tentou minar a confiança no sistema eleitoral, disseminando alegações infundadas de fraude eleitoral.
Políticas falhas e aplicadas de forma inadequada pelas plataformas de redes sociais permitiram a disseminação de desinformação eleitoral antes e durante a campanha presidencial.
As tentativas de prejudicar as instituições podem ter consequências graves. Em 12 de dezembro de 2022, apoiadores de Bolsonaro tentaram invadir a sede da Polícia Federal, que vem conduzindo investigações de condutas de Bolsonaro. Em 24 de dezembro, a polícia prendeu um apoiador de Bolsonaro que teria colocado um artefato explosivo em um caminhão-tanque perto do aeroporto de Brasília.
Em 8 de janeiro, apoiadores de Bolsonaro pedindo intervenção militar invadiram o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto. Eles arremessaram móveis pelas janelas, danificaram obras de arte valiosas e roubaram armas, computadores, documentos e outros itens.
Vários repórteres disseram que foram agredidos por apoiadores de Bolsonaro e que tiveram seus equipamentos destruídos. Alguns policiais ficaram feridos. Mais de 60 outras pessoas procuraram atendimento médico, segundo a Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
Na noite do dia 8 de janeiro, o presidente Lula decretou intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal até 31 de janeiro. Um ministro do Supremo Tribunal Federal afastou temporariamente o governador, que apoiou Bolsonaro nas eleições, afirmando que as autoridades locais falharam em garantir a segurança.
Cerca de 1.500 pessoas foram detidas pela polícia até 9 de janeiro, incluindo pessoas que estavam acampadas em frente ao quartel-general do Exército em Brasília pedindo uma intervenção militar, segundo o Ministério da Justiça.
O presidente Lula deveria reforçar os princípios democráticos, como a independência do poder judiciário, a transparência, a livre expressão e outras liberdades básicas, bem como mostrar que a democracia pode produzir resultados na educação, saúde, segurança pública e outros direitos humanos, disse a Human Rights Watch.
Seu governo também precisa enfrentar os problemas de direitos humanos que se agravaram durante a presidência de Bolsonaro, incluindo a insegurança alimentar e desigualdade, destruição ambiental, violência policial, restrições aos direitos sexuais e reprodutivos, e racismo estrutural.
O Brasil está entre os países com maior desigualdade de renda do mundo. Melhorar o acesso à educação pública de qualidade é um meio de reduzi-la.
O novo ministro da Educação do Brasil deveria liderar um esforço nacional para reverter as perdas na aprendizagem durante a pandemia da Covid-19, especialmente para crianças negras e indígenas e aquelas de famílias de baixa renda.
O governo Lula precisa implementar imediatamente um plano abrangente para reverter a destruição desenfreada da Amazônia, inclusive por meio do reestabelecimento da capacidade das agências encarregadas de proteger o meio ambiente e os direitos dos povos indígenas. Deveria, ademais, aumentar a rastreabilidade das cadeias produtivas e retomar imediatamente a demarcação dos territórios indígenas.
Seu governo precisará também fortalecer o programa nacional de proteção aos defensores de direitos humanos e ambientalistas, e trabalhar com autoridades dos governos estaduais e com o Ministério Público para garantir a responsabilização dos envolvidos nos casos de violência e intimidação contra eles.
Os altíssimos níveis de violência de gênero, inclusive contra pessoas LGBT+, é outro desafio crônico fundamental para os direitos humanos. O governo Lula deveria financiar de forma suficiente os serviços de atendimento a sobreviventes e reduzir os obstáculos no acesso à justiça, inclusive por meio da capacitação de policiais e de protocolos para responder adequadamente à violência de gênero. Além disso, o Ministério da Educação deveria promover a educação integral sobre gênero e sexualidade, como forma de prevenir a violência e a desigualdade de gênero, infecções sexualmente transmissíveis e gravidez não planejada.
O governo Lula deveria elaborar um plano nacional para reduzir a letalidade policial em todo o país, em consulta com as comunidades afetadas e envolvendo também o Ministério Público, que precisa melhorar o controle externo e a responsabilização da polícia que comete excessos no exercício de sua atividade.
O presidente Lula deveria fortalecer o combate à corrupção após os significativos retrocessos do governo anterior, disse a Human Rights Watch.
O presidente Lula também deveria garantir a independência da Procuradoria-Geral da República, que tradicionalmente era protegida no Brasil por meio da nomeação de seu representante com base na lista tríplice de candidatos eleitos por procuradores de todo o país. O ex-presidente Bolsonaro rompeu com essa tradição ao selecionar um procurador que não constava na lista e que foi amplamente criticado por aparentemente favorecer o presidente e enfraquecer o combate à corrupção.
Na política externa, o governo Lula deveria defender os direitos humanos de forma consistente, condenando os abusos de direitos humanos por governos independentemente de suas ideologias.
Texto publicado originalmente Human Rights Watch
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