Na Grécia antiga, os sofistas se destacaram por recorrer à Sofia – o conhecimento, o saber, a sabedoria… – para desenvolver a falácia, um raciocínio capcioso para induzir o interlocutor ao engano. Trata-se de um silogismo aparente usado para defender algo falso e confundir o contraditor. Platão recomendava manter a vigilância para não confundir sofisma, o silogismo aparente, com os paralogismos que decorrem da ignorância, enquanto a sofística é vetor de má-fé. Aos sofistas não interessa esclarecer, apenas doutrinar e impor seus dogmas. A reflexão se depreende do Pesadelo Fiscal, de Ricardo Mioto, publicado na Folha de São Paulo, do último dia 6, ao pontuar e parear a Zona Franca de Manaus com o Simples: as duas das principais formas de desoneração do governo federal. O Simples, porém, segundo Mioto, beneficia muito mais trabalhadores do que a ZFM. Ele baseia sua falácia nos estudos do economista José Roberto Afonso, que presta serviço ao Senado Federal nos momentos em que é preciso demonstrar aquilo que o jogo politico daquela Casa prioriza. Na contabilidade do tal sofisma, “cada emprego gerado pela zona franca nas fábricas de Manaus custa impressionantes R$ 191 mil em renúncia fiscal ao ano. Em comparação, esse valor é de R$ 2.800 no caso do Simples.” A partir dessa premissa falaciosa, a conclusão é a mesma que recomenda e insiste no repensar da Zona Franca de Manaus. É um jogo de cartas marcadas, que emerge em clima de turbulências ou de aparente calma, a dos pântanos. Basta conferir o boicote articulado por interesses inominados para protelar a liberação do PPB, na burocracia federal, o ritual que (des) autoriza o manual de instrução do processo produtivo para as empresas usufruírem de benefícios fiscais da ZFM. Um boicote sombrio, de servidores de terceiro escalão, que se consideram mais real que o Rei e mais legal que a Lei e estão a serviço sabe-se lá de quem.
Os dados da Receita Federal sobre a renúncia fiscal do país são eloquentes e contundentes. Por região geográfica, na Amazônia, 2/3 do território nacional, com todos os incentivos regionais, onde há mais necessidade de investimento para aliviar as disparidades econômicas do país, a renúncia fiscal em 2012, foi de 17,9%, equivalente a R$ 26, 02 bilhões. No Sudeste, com 48,4% o ralo da renúncia consome R$ 70,65 bilhões no mesmo ano. A mesma disparidade se constata na distribuição de verbas do BNDES para manter os atuais patamares de desigualdade regional. É o mesmo BNDES que, há cinco anos, embroma a distribuição dos recursos do Fundo Amazônia, constituído em 2008, com o objetivo de captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento, combate ao desmatamento, promoção da conservação e do uso sustentável das florestas no Bioma Amazônia. São quase 300 consultores – a maioria distante da realidade local – para desfiar uma lista infinita de restrições de uma burocracia perversa. Na lista dos impedidos com projetos vitais estão INPA, Embrapa, entre outras instituições empenhadas em reduzir o distanciamento federal e a indiferença crônica. Este sim é um pesadelo, o do descaso. Em cinco anos, menos de 20% de desembolso e mais de um ano para responder por que não apoia determinados projetos. É mais fácil descolar recursos para o agronegócio ou mineração na Amazônia que projetos de economia sustentável.
O raciocínio de combate à Zona Franca alega sustentação nos Indicadores de Desempenho do Polo Industrial de Manaus (PIM), para afirmar que a mão-de-obra ocupada efetiva d 110.830 pessoas em agosto, em agosto último, custa R$ 119 mil/por emprego, para a renúncia fiscal envolvida. O sofisma não abate do custo de cada funcionário os 54% de repasse aos cofres federais de toda riqueza produzida na ZFM, segundo estudos da FEA/USP. A falácia do montante da renúncia fiscal dividido pelo número de empregos ignora a história, o alcance e a efetividade dos benefícios da ZFM. E omite que não há custeio público na ZFM, há renúncia, onde o governo deixa escapar por um lado sua compulsão arrecadatória e ganha por outro, fazendo da renúncia medida compensatória aos próprios cofres, numa operação fácil e tecnicamente demonstrável.
Parece não interessar na demonstração do silogismo aparente do pesadelo fiscal que Manaus, sozinha, comparece com quase 60% dos impostos recolhidos pela União na Região Norte. E o Amazonas é um dos 8 estados da federação que mais recolhe do que recebe recursos. A exportação de recursos para União Federal arrecadou em 2012 R$ 8.958,75 bilhões e recebeu de volta apenas R$ 2.535,89 bilhões, uma informação que escapa aos desafetos da ZFM. As empresas só passam a usufruir dos benefícios fiscais a partir do momento em que seus produtos entram no mercado. A Zona Franca é de Manaus, mas ela atua em toda a Amazônia Ocidental e inclui Amapá-Santana, área em que são aplicados os incentivos da sigla ZFM. E que R$ 18 bilhões são arrecadados em forma de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). A rigor , a renúncia fiscal real seria de apenas R$ 6 bilhões. A ZFM não beneficia só o Amazonas, mas o Brasil, os brasileiros que consomem os produtos fabricados aqui. Portanto, é preciso rever o discurso raivoso da renúncia, e olhar de outro prisma a paranoia da prorrogação. E se as empresas aqui instaladas, comprovadamente arrecadam menos que em outros arranjos industriais do país, elas patrocinam duas vezes o orçamento da UEA, no fundo criado para sua manutenção, pagam os programas regionais de Pesquisa e Desenvolvimento e os fundos estaduais de turismo e fomento municipal, que permitiram, por exemplo, financiar os projetos de cadeias produtivas no interior. São mais de R$ 2,3 bilhões de investimentos, entre P&D, Universidade, turismo e programas de agroindústria para população ribeirinha. É, pois, nesse contexto, que inclui a guarda do bioma amazônico, irrisório, muito discreto o peso da tal renúncia. Por tudo isso e a partir dessas premissas objetivas, a quem interessa a demonstração falaciosa desse pesadelo da difamação fiscal?
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