O papel da pesquisa e inovação na atividade profissional e na competitividade do País e das empresas é largamente ignorado. Como consequência desta desvinculação a pesquisa é percebida como desvinculada da prática, coisa do sonhador, altruísta, desinteressado de mundanas aplicações práticas.
Por Vanderley M. John, professor da Escola Politécnica da USP
A cada crise financeira do Estado Brasileiro, nós, da academia, temos sido forçados a defender os investimentos públicos em pesquisa, objeto de disputa de outros setores. As oscilações dos investimentos, o congelamento de bolsas que atingiram valores insustentáveis, têm afetado a vida de todos nós e a ciência que produzimos. O que precisamos fazer para mudar este quadro?
Nosso argumento usual de defesa dos recursos tem sido, na linha do norte-americano Vannevar Bush: “New products, new industries, and more jobs require continuous additions to knowledge of the laws of nature…”. O futuro do País depende dos investimentos de pesquisa no presente: para se desenvolver, o Brasil precisa investir mais e não menos, pois os atuais, de aproximadamente 1% do PIB, são baixos, inferiores aos de outros 29 países. Tudo isto é verdade.
Apesar dos inegáveis benefícios da moderna tecnologia em termos de qualidade de vida e longevidade dos humanos, muitos brasileiros, a parte substancial da nossa elite, incluindo políticos, parece não se convencer. Quais são as razões deste ceticismo?
Me parece que as características do nosso ensino de ciências, inclusive de nível superior, agravam nosso afastamento da sociedade. Como registrado por um perplexo Richard Feynman, que morou e ensinou no Brasil, nosso ensino de ciências nos anos 1950 era completamente desvinculado do mundo real e de qualquer aplicação prática e, acredito, mudou pouco. No então segundo grau e no curso de engenharia, decorei parte da tabela periódica, nomes de produtos orgânicos. Ninguém nunca me mostrou para que aquilo tudo servia. Acredito que a maioria dos professores não fazia nenhuma ideia de como usar aqueles conhecimentos. Nas engenharias, ensinamos aos futuros líderes empresariais e políticos apenas as soluções consagradas para os problemas conhecidos.
O papel da pesquisa e inovação na atividade profissional e na competitividade do País e das empresas é largamente ignorado. Como consequência desta desvinculação, mesmo técnicos que são simpáticos à pesquisa acadêmica, inclusive aquelas que tiveram contato com pesquisa na iniciação científica ou no mestrado, ponderam: “Eu gostaria de financiar pesquisas, mas infelizmente para empresas só interessam resultados econômicos”. A pesquisa é percebida como desvinculada da prática, coisa do sonhador, altruísta, desinteressado de mundanas aplicações práticas.
Já para outro grupo social, muito ativo neste momento histórico, nós, pesquisadores, desperdiçamos muito dinheiro público escasso em pesquisas inúteis. E, em valores absolutos, investimos quase o dobro de Israel e 1,6 vez a mais que a Espanha. E certamente é fútil negar que uma parcela das pesquisas no Brasil (e no mundo todo) não resulta nem em avanço do conhecimento nem para solução de problemas práticos da sociedade, populado o quadrante não-não do famoso modelo de Stokes (veja a figura a seguir).
Que assim seja com uma parcela das pesquisas é estatisticamente inevitável. Mas, como apontado por um notável colega, ex-presidente do CNPq, no Brasil a parcela de não-não é muito mais importante que a chance estatística. É o caso do nosso hábito de repetir quase infinitamente temas, com pequenas variações. Muitas pesquisas são desenhadas porque o pesquisador atua em determinada área, e é mais prático continuar usando os mesmos conceitos e ferramentas. Não tem ambição de contribuir, exceto de forma marginal. O foco principal é a conferência, o paper e a tese-dissertação.
Como mudar este cenário? Simplesmente apontar dedo para as empresas e boa parte dos políticos nacionais, culpando-os de desdenhar a pesquisa, simplesmente nos isola da sociedade. E agrava nosso problema. Não tenho respostas definitivas, apenas algumas ideias algo desconexas.
Acredito que todos concordamos que uma redução da fração pesquisas não-não é desejável. Mas não é recomendável limitar a pesquisa somente àquelas que na sua concepção tenham alguma aplicação prática, como querem alguns, uma vez que no nascedouro o potencial futuro de aplicação prática das pesquisas básicas não é evidente. Um exemplo é a aplicação da teoria da relatividade no GPS que nos guia no dia a dia.
Uma saída é melhorar os mecanismos de seleção das propostas de pesquisa para que uma fração maior destas contribua para avanço do conhecimento, aplicação prática ou os dois.
Me parece que é necessário reconsiderar o tradicional oferecimento de cotas de bolsas de pesquisa (mestrado, doutorado etc.) sem quaisquer análises independente da qualidade dos projetos de pesquisa e do potencial dos candidatos. Na mesma linha, é necessário relativizar os indicadores de quantidade (artigos, orientandos), por indicadores de qualidade e impacto no conhecimento e na aplicação prática.
Mas me parece que o mais importante é compreender que nenhum paper, patente, tese ou dissertação, por si só, traz qualquer benefício tangível para a sociedade. Uma tese apresentando uma nova solução para reduzir a pegada de CO2 do cimento, por exemplo, não reduz o impacto ambiental da indústria, não tem impacto para a sociedade. O resultado prático só vai se realizar se uma entidade externa – startup, empresa, órgão governamental, partido político, ou ONG – conhecer e acreditar na proposta, colocando estes resultados em prática. Em outras palavras, paper, tese, traz um potencial de solução, que pode ou não ser explorado. Então precisamos criar mecanismos que aumentem substancialmente as probabilidades de aplicação prática de pesquisas.
Raramente pesquisas acadêmicas puras produzem soluções prontas para o uso prático. O conceito de grau de maturidade de tecnologia (technology readiness level ou TRL) ajuda a entender o problema. A pesquisa acadêmica, mesmo interdisciplinar, atinge um TRL entre 2 e 4, e demonstra o potencial de uma ideia na escala do ambiente artificial do laboratório.
A experiência internacional mostra que, concluída a pesquisa acadêmica pura, se nenhum agente da sociedade continuar o investimento, a tecnologia desaparece no Vale da Morte, destino de grande parte da produção acadêmica. Para que a pesquisa resulte em uma solução para um problema prático (TRL 9) são necessários investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) adicionais, muitas vezes várias ordens de grandeza maiores que o realizado na pesquisa acadêmica. A participação de quem fez o desenvolvimento inicial da ideia – os acadêmicos –, junto com equipes de outras disciplinas e pessoal com conhecimento da aplicação, aumenta muito as chances de sucesso.
Mas esta é uma atividade de complexidade e de investimentos crescente. Por exemplo, para colocar ao mercado um produto industrial inovador, é necessário analisar o desempenho nos variados cenários de aplicação, entender impactos ambientais e riscos para trabalhadores e sociedade, desenvolver máquinas para fabricação, vencer barreiras regulatórias e normativas, construir novas plantas industriais – que podem custar centenas de milhões de reais -, criar canais de distribuição, capacitar vendedores e clientes. Tudo isto é um investimento de risco, que para se viabilizar exige resultados extremamente robustos e progressivamente complexos.
Por isto tudo, acredito que, sem investir na transformação do conhecimento em inovação, a universidade falha com sua responsabilidade social.
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