“Riquezas biológicas formadas ao longo de milhões de anos estão ameaçadas pelas ações humanas como poluição e mudanças do clima, em particular o aquecimento global. Todos podemos ajudar e uma coalizão mundial é necessária. Pensemos cada uma de nossas ações” Adalberto Luís Val INPA, ABC e TWAS
Correntes marinhas sofrem alterações e transportam menos microrganismos que alimentam os corais de águas frias ou profundas
A mudança do clima, além de causar o aumento da temperatura e do nível dos mares, altera o transporte de nutrientes em correntes marinhas e, em consequência, modifica os ambientes marinhos. De corais de águas profundas a peixes de regiões superficiais, nenhum organismo sai ileso desses efeitos, de acordo com estudos recentes.
Um deles, publicado em maio na revista científica PLOS Biology, mostrou que o transporte de alimento pelas correntes oceânicas determina a vida e a morte de corais de águas frias ou profundas. Representados por espécies como Lophelia pertusa (um tipo de coral de cor clara que consegue viver até 20 anos e cresce de forma ramificada, lembrando galhos de árvore), esses organismos estão espalhados pelos mares e vivem entre 200 metros (m) e mil m de profundidade, em ambientes totalmente sem luz. Por ficarem imóveis, dependem que a comida – minúsculos animais e plantas marinhos – chegue até eles pelas correntes oceânicas.
À frente de um grupo internacional, o biólogo brasileiro Rodrigo da Costa Portilho-Ramos, atualmente na Universidade de Bremen, na Alemanha, examinou amostras de corais de água profunda de diferentes regiões – o golfo do México, a costa da Irlanda, o Marrocos e a Mauritânia e o oeste do mar Mediterrâneo – e reconstruiu as condições de temperatura, salinidade e oxigenação das águas de fundo do oceano nessas regiões e o transporte de nutrientes para os corais, nos últimos 20 mil anos.
As análises indicaram períodos em que os corais deixaram de crescer ou morreram, provavelmente por falta de nutrientes. “Dependendo da região, a comida não era farta ao longo dos últimos 20 mil anos, mas sim em momentos de mudanças climáticas abruptas, como durante o período chamado último máximo glacial, nos últimos 10 mil anos”, diz Portillo-Ramos.
Outra conclusão é de que a variação na temperatura das correntes não influenciou diretamente os períodos de crescimento e mortalidade de corais de águas profundas, mas pode influenciar indiretamente, alterando o transporte de comida para os corais. “O aquecimento dos oceanos projetado para o futuro pode modificar a densidade da água e fazer com que menos alimento chegue ao fundo, o que coloca corais dessas regiões em risco”, adverte. Outros estudos indicaram que, nas partes mais profundas do oceano Índico, o fluxo de alimentos poderia diminuir em 55% até o fim deste século em decorrência da mudança do clima.
Segundo a geógrafa Cátia Barbosa, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que não participou da pesquisa, o trabalho é relevante porque aborda as mudanças na estratificação térmica dos oceanos. Essas alterações, diz ela, prejudicam a circulação de correntes marinhas e podem ampliar as zonas mortas, com teores muito baixos de oxigênio.
“Apesar de estarem longe dos nossos olhos, os corais de mar profundo têm as mesmas funções dos de águas rasas. Eles são importantes para manter os estoques de muitas espécies de peixe, inclusive com valor comercial, e estão ameaçados também por desastres como vazamentos de petróleo”, observa Barbosa. “Os corais conseguem sobreviver em áreas com poucos nutrientes, mas a um alto custo energético. Pode ser que o limite do quanto conseguem aguentar não esteja muito distante.”
Portilho-Ramos define os corais de águas profundas como “oásis de vida no deserto do fundo dos oceanos, que levam muitos anos para se recuperar dos danos que sofrem”.
Mais quente, fome maior
Outro estudo, publicado em junho na Science, indicou que o aumento da temperatura de correntes oceânicas faz com que peixes de várias espécies e tamanhos em águas rasas tenham mais fome e, por consequência, comam mais.
Segundo o biólogo Guilherme Longo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), um dos 16 autores brasileiros que participaram desse estudo, o apetite pode aumentar porque o metabolismo de peixes varia de acordo com a temperatura do ambiente: quanto mais quente, mais energia consomem para se manterem vivos e, por consequência, maior a fome. Em águas com temperatura acima de 20 graus Celsius (oC), o consumo de alimento foi em média 10% maior em relação aos ambientes marinhos com temperaturas abaixo de 20 oC.
Os pesquisadores fizeram três testes a cerca de 1 metro de profundidade em 36 pontos nas costas leste e oeste das Américas.
O primeiro teste avaliou o consumo de iscas, por meio da oferta de pequenos discos de lula seca em cordas, depois contados para ver quantos haviam sido retirados pelos peixes.
O segundo verificou o efeito de predadores sobre suas presas. Placas de PVC serviram de substrato de colonização para invertebrados e outros organismos, durante cerca de três meses. As placas a que os seres marinhos aderiram estavam em gaiolas, simulando um ambiente sem predação, enquanto as outras ficaram abertas, representando a predação natural. As placas abertas ficaram muito mais limpas do que as que permaneceram na gaiola.
No terceiro teste, as placas das gaiolas foram abertas, com o propósito de verificar como os peixes poderiam devorar os organismos incrustados nelas. “Nos locais com águas mais quentes, os organismos incrustados nas placas foram consumidos rapidamente, enquanto em águas mais frias as placas permaneceram quase inalteradas”, conta Longo.
Segundo ele, esse resultado era esperado para latitudes baixas, perto da linha do Equador, onde os peixes apresentam um metabolismo mais alto e uma diversidade de espécies maior do que em latitudes médias, perto de zonas temperadas. No entanto, com as mudanças climáticas e a elevação da temperatura média dos oceanos, a tendência é o aumento de predação em áreas mais distantes dos trópicos e das regiões temperadas.
“O problema é que as espécies que vivem nos trópicos já estão perto do seu limite térmico”, argumenta Longo. “Não sabemos como vão responder a um aumento da temperatura, que poderia desequilibrar comunidades em todas as latitudes.”
Barbosa, da UFF, que também não participou desse trabalho, comenta que espécies de peixes tropicais – como o tubarão-azul, o linguado e o agulhão – poderiam migrar para outras latitudes se a temperatura global continuar aumentando: “Essa migração poderia causar um dano incalculável para os ecossistemas marinhos, uma vez que organismos de latitudes médias não estão preparados para a chegada de predadores de regiões equatoriais. A expansão das zonas de predação para altas latitudes significa também a expansão da destruição de diversidade de espécies.”
Segundo ela, os dois estudos se completam, ao mostrar que as mudanças climáticas não alteram apenas sistemas atmosféricos e terrestres, mas também os costeiros e de mar profundo, em escala planetária.
Artigos científicos
PORTILLO-RAMOS, R. da C. et al. Major environmental drivers determining life and death of cold-water corals through time. PLOS Biology. v. 20, n. 5, e3001628. 19 mai. 2022.
ASHTON, G. V. et al. Predator control of marine communities increases with temperature across 115 degrees of latitude. Science. v. 376, n. 6598, p. 1215-19. 9 jun. 2022.
Texto publicado originalmente por Pesquisa FAPESP
Comentários