Os imigrantes mantinham suas tradições mas foram se adaptando aos costumes locais: alguns viviam à margem dos rios, moravam em palafitas e dormiam em redes
Vindos principalmente do Marrocos, norte da África, na época assolado por doenças, guerras, pobreza e perseguições, os judeus sefarditas aportaram em Manaus e Belém do Pará, desde as primeiras décadas do século XIX. Algumas famílias foram morar à margem dos rios amazônicos, vivendo em palafitas e dormindo em redes e outros grupos foram para grandes centros urbanos. A história de mais de 200 anos de imigração judaica para a região amazônica foi descrita em artigos publicados na Arquivo Maaravi, uma Revista Digital de Estudos Judaicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Sefarditas é o termo usado para se referir aos descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha, de onde foram expulsos e perseguidos pela Inquisição. Grande parte deles fugiu para países mediterrâneos, como a Itália, norte da África e Grécia”, explica ao Jornal da USP a historiadora e romancista Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER), do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e uma das articulistas do dossiê.
Em seu artigo, Tucci Carneiro fala da “contribuição do povo judeu na construção histórica e cultural na região amazônica. Até os dias de hoje casas comerciais de proprietários judeus, sinagogas e sepulcros podem ser vistos em meio às edificações locais. Ritos judaicos e a própria culinária também são expressões presentes no dia a dia da população”.
Em outro artigo, a especialista em literatura de exílio, a professora Karina Marques, do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Faculdade de Letras, Universidade de Poitiers, França, e também pesquisadora do LEER analisa um romance do escritor Paulo Jacob. Descendente de família judaica, Jacob conheceu em profundidade a vida cabocla amazônica. A obra relata a saga de exílio vivida nos trópicos por Salomão (o protagonista do romance) que também, como o autor, era filho de imigrante judeu.
As pesquisas foram baseadas em historiografia, análises documentais (processos inquisitoriais e de naturalização, fotografias, listas de passageiros, artigos de jornais, etc.) e análises de obras literárias e artísticas.
Assimilação cultural e sincretismo religioso
A adaptação dos judeus em terras estrangeiras foi um enorme desafio. Além das intempéries tropicais, como enfrentamento de doenças típicas da região, inicialmente, os cultos religiosos podiam ser realizados apenas em ambientes domésticos. “Embora procurassem manter suas tradições, comemorando festas como a Páscoa (Pessach), o Grande Jejum (Yom Kipur) e o Ano Novo Judaico (Rosh Hashaná), os imigrantes procuraram se integrar ao povo local, sem perder suas identidades de origem”, relata o artigo.
Outro artigo, “Duas artistas plásticas judias na Amazônia”, também publicado neste dossiê da revista Arquivo Maaravi, de autoria de Alessandra Conde da Silva e Joel Cardoso da Silva, ambos da Universidade Federal do Pará (UFPA), mostra esse diálogo entre mitos e lendas da cultura judaico-amazônica, por meio da análise de obras de artistas plásticos descendentes de judeus.
Na falta do líder religioso da comunidade judaica (o rabino) e da Torá (livro sagrado dos judeus), o chefe da casa exercia as funções do cantor litúrgico (hazan). A historiadora diz que, ao longo do tempo, passaram a cultivar crenças católicas e indígenas, chegando a demonstrar predisposição à mistura de cultos ou doutrinas religiosas para (re)criação de um novo judaísmo. A culinária judaica também foi sendo alterada e adaptada às condições locais. As especiarias e temperos comumente empregados nos alimentos judaicos foram trocados por frutas, aromas tropicais e peixes dos rios locais.
Imigração incentivada no Brasil
A professora Tucci lembra que a chegada da família real de D. João VI ao Brasil, em 1808, e a assinatura de vários tratados de imigração entre países, em 1810 e 1926, garantiram a oportunidade de negócios e a liberdade de religião aos imigrantes. Nesta época, os estrangeiros podiam se envolver com o comércio de exportação e importação, com a possibilidade de obterem a cidadania brasileira.
Com a independência do Brasil de Portugal, em 1822, e a promulgação da Constituição de 1824, os imigrantes judeus não tinham restrições de ordem religiosa, desde que exercessem seus credos em ambientes domésticos. O artigo 5 estabelecia que a religião católica apostólica romana continuaria a ser a religião do Império, porém, todas as outras religiões seriam permitidas, em culto particular. Em 1866, a liberação do Rio Amazonas para navegação e tráfego fluvial, além da promessa de crescimento econômico, reforçou a tese de que os imigrantes eram bem-vindos ao País.
Manaus nos áureos tempos da borracha
A professora Tucci conta que a primeira leva de judeus marroquinos radicados na Amazônia vinha do norte da África, cujas raízes ibéricas remontam à expulsão dos judeus da Espanha (1492) e de Portugal (1496). A maioria deles, aqui no Brasil, esteve envolvida com o comércio de exportação e importação.
Já na segunda leva de imigração, após os anos de 1850, nos ciclos do cacau, de especiarias e da borracha, estrangeiros de várias nacionalidades investiram na atividade extrativista do látex. Nessa época, Manaus viveu os tempos áureos da borracha. Transformou-se na capital do consumo, do luxo e do lazer. Até hoje é possível ver edificações expressivas construídas naquela época inspiradas na arquitetura dos casarões portugueses e nos palacetes franceses.
Foi nessa época também, em 1896, que o Teatro Amazonas foi inaugurado, espaço nobre em que companhias líricas de operetas italianas ofereciam temporadas exclusivas para uma plateia seleta e enriquecida, relata a historiadora.
Segundo Tucci Carneiro, entre os judeus que intermediaram a compra de mosaicos para o Teatro Amazonas estava o proprietário da firma Marius & Levy, judeu seringalista, exportador de borracha e obras de arte, e que também construiu o edifício mais alto de Manaus, de quatro andares, com estrutura de aço inglês e azulejos importados da França. Em 1914, o prédio foi vendido para os Correios e Telégrafos e, mais recentemente, tombado pelo patrimônio histórico.
Sinagogas, sepulturas e casas comerciais: símbolos que permanecem até hoje
Com a crise da borracha, alguns desses judeus voltaram à Europa e muitos seguiram sua trajetória no Brasil. Tornaram-se prósperos comerciantes, industriais e/ou fazendeiros e os filhos viraram doutores. A historiadora explica que, atualmente, Manaus abriga cerca de 200 famílias judaicas e muitos vestígios atestam a presença deles na região.
Em Belém, por exemplo, existem duas importantes sinagogas, a Shaar Hashamaim, de 1826, considerada a mais antiga do Brasil independente, e a Essel Abraham, de 1889-92; além de 28 sepulcros erguidos ao lado do cemitério de Soledade (Belém). Alguns túmulos judaicos também foram encontrados em Cametá, Macapá, Santarém, Itaituba, Parintins, dentre outros lugares.
Um pedaço de lua caía na mata
No artigo “A identidade judaica amazônica em Paulo Jacob: a terceira margem do rio”, a pesquisadora Karina Marques analisa o romance autobiográfico Um pedaço de lua caía na mata (1990), do escritor de origem judaica Paulo Jacob. Ele viveu e trabalhou como juiz de direito e desembargador na Amazônia por dez anos, quando também fez outras explorações, como morar três meses em aldeias Ianomâmi para conhecer melhor a paisagem física e humana da região. Em 1971, tornou-se um imortal da Academia Amazonense de Letras. A proximidade de Jacob com a cultura cabocla amazônica foi tanta que chegou a ser comparado a Guimarães Rosa pelo escritor Jorge Amado, na década de 1960, em um concurso em que Jacob participava.
A professora Karina explica que Jacob recria em suas obras uma linguagem identitária amazônica. “Suas narrações trazem não só o vocabulário específico da região, mas também a dicção amazônica: uma forma de falar cabocla, mais vagarosa e ambígua, com pouca clareza e difícil de decifrar”, diz.
Em Um pedaço de lua caía na mata, Jacob reúne a mística judaica ao folclore amazônico por meio do percurso de exílio do protagonista Salomão, imigrante judeu marroquino, que se instalou como comerciante em Parintins, município amazonense localizado na margem direita do Rio Amazonas. Nos 46 capítulos do romance, o conteúdo apresenta referências identitárias de festas e rituais judaicos, sentenças da Torá (livro sagrado para os judeus) e frases hebraicas, além de referências culturais caboclas do povo amazônico.
Amada Janoca, cunhantã khol
Em um dos capítulos, Jacob descreve confrontos de segregação racial difíceis de solucionar. Salomão, quando era jovem, sentiu na pele o antissemitismo proferido pelo pai de sua amada, a cabocla Janoca:
“Janoca, cunhantã khol. Olhos luzidios, pretinhos, estreitados. Muito pareciam sementes de guaraná. […] Não fosse imbirrança do pai, casava com a Janoca. […] Filha minha não casa com judeu. Gente que matou Cristo, pregou na cruz. […] Os olhos bolidos, o corpo cor de castanha.”
Segundo a pesquisadora, ao descrever Janoca no romance, Jacob usa o adjetivo da língua hebraica khol, que significa bonita, associado ao termo do tupi-guarani cunhantã, moça) e mostra seu desejo de integração à nova terra brasileira. Já a comparação do corpo da mulher amada com os frutos da Amazônia (olhos iguais a sementes de guaraná e corpo de castanha) representa, em um sentido simbólico, a terra de acolhida, de felicidade e fartura.
Nesse aspecto, a professora Tucci Carneiro descreve que, ao longo dos séculos, o mito de “os judeus mataram Cristo” foi sendo reafirmado e renovado por outros mitos e, a partir do século XII, contribuíram para fortalecer a ideia do perigo judaico e gerar crenças populares preconceituosas. Segundo a historiadora, o apogeu destas hostilidades foi após as Cruzadas e a partir da Inquisição Ibérica, quando a Igreja Católica fortaleceu seu discurso de unidade da cristandade.
Mais adiante na narrativa, Salomão segue sua vida e casa-se com Sara (mulher judia) com quem teve dois filhos, “momento em que a vida do protagonista retorna às origens judaicas”. O romance continua com Salomão demonstrando um profundo interesse pela cultura híbrida cabocla, em sua materialidade e imaterialidade. Segundo pesquisadora, os seres invisíveis são nomeados durante todo o romance com vocábulos, muitos deles, regionais: “aparição”, “feitiço”, “agouro”, “mandinga”, “visage”, “puçanga”, etc. “A narrativa de Paulo Jacob é sincrética pois é constituída da herança dos vários povos que ocuparam ao longo do tempo a região amazônica”, diz a pesquisadora.
A professora Karina relata que a importância do romance está na sua contribuição enquanto representação cultural e estética de uma identidade judaica amazônica, presente de sua singularidade como produto de um encontro étnico-cultural situado na Amazônia, conclui.
Mais informações: e-mails [email protected], com a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, [email protected], com Karina Marques. O dossiê está disponível neste link: https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/issue/archive
Fonte: Jornal da USP
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