Volume 2 do 6º relatório do painel mostra que mortalidade por eventos extremos foi 15 vezes maior em regiões mais vulneráveis na última década e alerta para limites à adaptação com aquecimento de mais de 1,5oC
DO OC – Os impactos da mudança climática causada por seres humanos já provocaram perdas e danos para pessoas e ecossistemas. Metade da população mundial já vive sob risco climático, e os impactos são mais graves entre populações urbanas marginalizadas, como os moradores de favelas. Nas regiões mais vulneráveis, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior na última década do que nas regiões menos vulneráveis.
O segundo volume do Sexto Relatório de Avaliação (AR6) do IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, está repleto de afirmações como essas em seu sumário executivo, publicado nesta segunda-feira (28) juntamente com o relatório em si e seu sumário técnico. Mesmo sem usar a expressão, o documento traça um quadro avassalador de injustiça climática.
“Essa vulnerabilidade tem cor, raça, gênero, etnia e geografia”, disse Patrícia Pinho, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), uma das autoras brasileiras do relatório.
“O relatório do IPCC de hoje é um Atlas do sofrimento humano é um testemunho constrangedor de falta de liderança climática”, declarou um exasperado António Guterres, secretário-geral da ONU, na abertura da entrevista coletiva na qual os resultados foram apresentados. Ele apontou o dedo para governos, pediu a eliminação do carvão mineral até 2040 e criticou o greenwash do setor privado, que faz promessas, mas não toma atitudes para zerar emissões até 2050.
O chamado Sumário para Tomadores de Decisão foi finalizado numa reunião virtual em meio à guerra da Ucrânia, que também ocorreu num clima interno de conflagração entre governos e cientistas do Grupo de Trabalho 2, que cuida de impactos e vulnerabilidades.
Ao final, o documento destinado a tomadores de decisão teve suas mensagens diluídas em relação ao rascunho inicial, colocado em discussão no último dia 14 entre os membros do painel – 270 pesquisadores de quase 70 países participaram da elaboração do documento – e os representantes de 196 países. Vários dados sobre impactos foram eliminados e a expressão “injustiça climática”, que seria uma inovação nos alertas do IPCC, desapareceu do texto. A menção a “países mais vulneráveis” e “países menos vulneráveis” também foi alterada para um termo mais genérico, “regiões”, que evita responsabilização individual.
No entanto, a manutenção da expressão “perdas e danos”, à qual os EUA se opunham, foi uma vitória do painel e deve ajudar a pautar as discussões sobre o tema na COP27, a conferência do clima do Egito, no fim deste ano.
Segundo o relatório, a mudança climática já reduziu o crescimento econômico e ameaça a segurança alimentar e hídrica de bilhões de pessoas, dificultando o atingimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030. Doenças relacionadas ao clima, como dengue – bilhões de pessoas ficariam expostas ao vírus no fim do século devido ao aumento da área de incidência do Aedes aegypti -, desnutrição, problemas vasculares por estresse térmico e transtornos mentais, vêm crescendo, com mulheres grávidas e crianças entre os mais afetados.
Ecoando o alarme feito pelo Grupo 1 em agosto do ano passado (no documento científico mais contundente já publicado sobre a crise do clima), o Grupo 2 do IPCC também trata longamente da inevitabilidade de alguns impactos do aquecimento da Terra. Segundo o painel, no curto prazo, até 2040, a mudança climática causará aumentos “substanciais” nos riscos à humanidade e aos ecossistemas, alguns deles já inevitáveis devido às emissões históricas de gases de efeito estufa. Algumas espécies e ecossistemas já enfrentarão nos próximos anos condições climáticas que excedem os limites naturais da adaptação.
Um desses ecossistemas, destacado no sumário, é a floresta amazônica. Na Amazônia, os impactos da mudança do clima e do desmatamento se somam para produzir “perdas para produzir perdas severas e irreversíveis de serviços ecossistêmicos e biodiversidade” com 2oC de aquecimento. Outros ecossistemas, como recifes de coral e o Ártico, também podem entrar em “pontos de virada”, a partir dos quais eles se transformam de maneira irreversível.
Mas há também, e pela primeira vez nas análises do IPCC, a possibilidade de “pontos de virada” sociais. “São momentos de desestabilização muito rápida associados a eventos climáticos, quando a gente tem impactos de eventos como ondas de calor que afetam populações muito expostas. Isso aumenta o caos social e a incidência de conflitos, fazendo com que algumas populações também transicionem para migrações e suicídios”, afirma Pinho.
O IPCC também buscou estimar os impactos da elevação do nível do mar no curto prazo sobre as populações costeiras. Esta é uma dificuldade tradicional da comunicação dos riscos climáticos, já que a elevação dos oceanos é um evento lento e costumava ser projetada apenas para o fim do século. O Grupo 2 do AR6 estima que uma subida adicional de 15 centímetros no nível médio global dos oceanos aumentaria em 20% o número de pessoas expostas a inundações costeiras extremas, os chamados “eventos de cem anos” (que antes eram esperados apenas uma vez por século).
Overshoot
Se você já está em pânico, acalme-se, porque piora. O sumário do segundo volume do AR6 também estima os impactos dos cenários climáticos do chamado overshoot – quando a temperatura da Terra ultrapassa um determinado limite por algum tempo e depois retorna.
O limite, no caso, é o de 1,5oC, acordado em Paris em 2015 e sacramentado após 2018 como a única meta aceitável do acordo do clima. Em seu primeiro volume, que avaliou a base física da ciência do clima, o AR6 estimou que em todos os cenários de emissões a temperatura global ultrapassará 1,5oC nos próximos 20 anos, e em apenas um deles ela voltará a ficar abaixo desse limite neste século.
Segundo o novo sumário, mesmo que o aquecimento retorne a patamares inferiores a 1,5oC, isso resultaria em “impactos severos e frequentemente irreversíveis” – em ecossistemas, abastecimento de água, segurança alimentar e energia. Os detalhes, porém, foram excluídos do sumário e ficaram apenas no relatório, um calhamaço de centenas de páginas que raros tomadores de decisão se aventuram a ler. Por exemplo, geleiras pequenas em cordilheiras como os Andes, os Alpes e o Himalaia desapareceriam quase completa ou completamente, colocando em risco o suprimento de água de populações que dependem delas. Alguns ecossistemas seriam empurrados para além de sua capacidade de regeneração, como os recifes de coral em grande parte do mundo, florestas de sargaços, manguezais e marismas.
“Em cidades, o número de pessoas expostas a secas e enchentes muito provavelmente mais do que dobraria entre 2000 e 2030, com 350 milhões de pessoas a mais expostas a escassez hídrica devido a secas com 1,5oC de aquecimento”, diz o relatório, que prossegue: “Muitos impactos de trajetórias de overshoot seriam irreversíveis numa escala de séculos a milênios”. Entre eles estão a possibilidade de derretimento de geleiras e solos congelados (permafrost) e a perda de habitats costeiros.
Adaptação
A boa notícia no relatório é que a humanidade já vem adotando medidas de adaptação, sem as quais os impactos já verificados hoje seriam muito maiores. O problema aqui são dois: primeiro, as medidas vêm sendo adotadas em escala muito pequena, sem o financiamento necessário, “incrementais e reativas”. Há um hiato entre as medidas de adaptação adotadas e as que precisam ser colocadas, que precisa ser fechado nesta década..
O outro problema é que algumas medidas de adaptação podem piorar a situação. Entre as medidas de “maladaptação” listadas pelo IPCC são a adoção de agricultura irrigada e a construção de hidrelétricas em regiões sujeitas a secas. Povos indígenas e moradores de periferias, afirma o painel, são especialmente vulneráveis a medidas maladaptativas.
“A grande mensagem do Grupo 2 do IPCC neste relatório é que a mudança climática é um brutal agravador de desigualdades e um perpetuador de pobreza”, afirma Stela Herschmann, especialista em Política Climática do Observatório do Clima. “A justiça climática precisa entrar na ordem do dia, e esse relatório é a demonstração mais cabal já feita de que já estamos vivendo um contexto de injustiça climática, onde os impactos adversos de eventos climáticos extremos variam por diferenças na exposição e vulnerabilidade, com regiões como a África e a América Latina sendo desproporcionalmente afetadas.”
O tema tende a pegar fogo no final do ano no balneário egípcio de Sharm el-Sheihk, onde ocorrerá a COP27, a Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU. A COP ficou de discutir um tema fundamental, o financiamento a perdas e danos decorrentes de impactos climáticos aos quais já não cabe adaptação.
Na COP26, em Glasgow em novembro passado, os países em desenvolvimento tentaram sem sucesso criar um mecanismo específico para isso. Os países ricos tesouraram. O motivo é que o mundo desenvolvido, principal responsável pelo aquecimento global observado, não gosta de perdas e danos por entender que isso criaria uma brecha para que se exigisse compensação deles por terem estragado a atmosfera no curso de seu desenvolvimento.
A mensagem alarmante do painel do clima pode se perder em meio a outra emergência: a invasão da Ucrânia pela Rússia, na semana passada, mergulhou a Europa e o mundo num clima de incerteza e instabilidade. Há um pano de fundo climático no conflito: a Europa ocidental sempre buscou o apaziguamento com o autocrata russo Vladimir Pútin porque depende do gás fóssil russo para sua indústria e para aquecimento.
Esse fato não passou despercebido para Guterres: “A matriz energética global atual está quebrada. Como os eventos atuais deixam muito claro, nossa dependência atual de combustíveis fósseis deixa a economia mundial e o sistema energético vulneráveis a choques e crises geopolíticas.”
Leia aqui um resumo em português do sumário executivo do relatório.
Fonte: Observatório do Clima
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