A PEC kamikaze segue exatamente na contramão de uma agenda de reforma tributária, ao estimular a queima de combustíveis fósseis e a redução do IPI, de modo generalizado, suscita uma possível e interminável discussão sobre ofensas ao art. 14º. da LRF e sinaliza pelo desprezo para com o equilíbrio fiscal intertemporal. Em tendo tantos penduricalhos aprovados, quando a agenda de reforma tributária encontrar seu lugar, nossos desafios serão ainda maiores.
Márcio Holland
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Saiu de cena a ideia da reforma tributária ampla, a partir da PEC 45/2019 e da PEC 110/2019, e mesmo do PL 3887/2020, esse de autoria do próprio governo federal, e entrou em cena a PEC “Kamikaze”, justamente apelidada de PEC da Irresponsabilidade Fiscal. No Brasil, vale o ditado de que, se você pensa que está ruim, espere mais um pouco. Como de boas intenções o inferno está cheio, a PEC 45/2019 tinha também um quê de kamikaze. Ela se propunha a colocar na Constituição Federal um novo tributo, o IBS (imposto sobre bens e serviços), com transição de dez anos, em que outros cinco tributos (PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS) seriam gradualmente substituídos pelo IBS, na promessa de que esses cinco tributos seriam extintos ao final do daquele prazo.
Nada mais kamikaze. Por meio desta engenhosa ideia, seus proponentes apostavam que, ao final de dez anos, a sociedade brasileira – aqui com nome e sobrenome de Receita Federal do Brasil, Supremo Tribunal Federal, contribuintes, estados e municípios perdedores – assistiria passivamente a esse ritual de passagem, sem manifestações. No final do túnel de dez anos, acreditava que a apuração por valor adicionado, permitindo crédito financeiro integral, venceria.
A projeção de nosso futuro pode ser feita com o que temos de experiência histórica. Encabeça a lista de maiores riscos fiscais para 2022 “o conceito de insumo para obtenção de crédito de PIS e Cofins”, com R$ 427,7 bilhões. Há pouco, discutíamos se o ICMS entrava na base de cálculo do PIS e da Cofins, a chamada “tese do século”, com risco fiscal para a União de R$ 250 bilhões.
Vale lembrar que, desde 1998, o STF vinha discutindo a matéria da exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins, conforme RE 240.785. Em julgamento ocorrido em 2006, de um total de 11 ministros, seis avaliaram como inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins, um ministro votou contra e o Ministro Nelson Jobim solicitou vista dos autos e o julgamento ficou suspenso. Em maio de 2008, foi reconhecida a Repercussão Geral do tema em outro Recurso Extraordinário, o RE 574.706. Em 2021, enfim, o STF deu um basta e julgou favorável à tese de exclusão do ICMS na base do PIS/Cofins.
Imagine os impactos ao longo deste debate para o balanço das empresas, para a provisão de recursos para investimentos, e para o seu resultado financeiro entre perdas e lucros? Imagine a insegurança de se discutir se um insumo é essencial e relevante para a empresa e, em não tendo outro caminho senão o de continuar fazendo seus negócios, permanecer às cegas sobre se certas despesas devem ou não serem provisionadas para direito a crédito de PIS e Cofins?
Vale sempre lembrar que o Brasil se inovou perante o mundo, e instituiu o conceito de não cumulatividade no então ICM, conforme a Emenda Constitucional no. 18, de 1965, incorporada na Constituição Federal de 1967 e no Código Tributário Nacional, conforme Lei no. 5.172/66. Nada disso serviu para evitar que o atual ICMS perdesse o brilho da não cumulatividade. A mesma história se repete com as contribuições do PIS e da Cofins. Onde erramos? Por que não conseguimos manter a ideia de não cumulatividade e de crédito financeiro amplo nos tributos ICMS, PIS e Cofins? Por que uma nova PEC prometendo o futuro melhor conseguiria esse feito? O que aprendemos com isso para quando estivermos, de fato, preparados para uma verdadeira reforma tributária ampla?
Na completa falta de fôlego político, em último ano de governo, em vez de debatermos sobre qual deveria ser a reforma tributária em prol do desenvolvimento econômico, que gera ganhos de eficiência econômica e justiça tributária, estamos debatendo sobre auxílio-diesel de R$ 1,2 mil para caminhoneiros, aumento de 50% para 100% do subsídio ao gás de cozinha e desoneração da energia. Não por menos, estamos discutindo cortes lineares no IPI que, segundo o governo, é porque está sobrando dinheiro (sic!).
Nas palavras do ministro da Economia Paulo Guedes, em entrevista para o Estado de S.Paulo, para os jornalistas Adriana Fernandes e José Fucs, “Então, a ideia é aproveitar o aumento de arrecadação para reduzir as alíquotas, baixar o IPI, para todo mundo, em vez de deixar esse dinheiro solto para virar aumento salarial do funcionalismo nos Estados”. Ora, esse aumento de arrecadação alegado pelo ministro é permanente e as contas públicas estão equilibradas? Está sobrando dinheiro nos cofres da União, dos Estados e dos municípios a ponto de darmos início à uma temporada de redução de carga tributária? Será mesmo que a reforma do IPI é baseada em corte de alíquota ou em aperfeiçoamento de sua legislação, tornando-o um tributo adicional a um IVA Federal, de modo a permitir com esse novo IPI estímulos a transição para a economia de baixo carbono, incentivos à pesquisa e desenvolvimento e ao desenvolvimento regional?
A PEC kamikaze segue exatamente na contramão de uma agenda de reforma tributária, ao estimular a queima de combustíveis fósseis e a redução do IPI, de modo generalizado, suscita uma possível e interminável discussão sobre ofensas ao art. 14º. da LRF e sinaliza pelo desprezo para com o equilíbrio fiscal intertemporal. Em tendo tantos penduricalhos aprovados, quando a agenda de reforma tributária encontrar seu lugar, nossos desafios serão ainda maiores. Um futuro IBS deve vir com mais fúria arrecadatória, dado o populismo fiscal deste momento e a sociedade vai arcar, possivelmente, com aumento na regressividade do nosso sistema tributário. Quando o Estado dá com uma mão, ele precisa tirar com a outra mão, mais cedo ou mais tarde.
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