Juventude indígena conta como foi ocupar o espaço de uma Conferência do Clima da ONU e se fazer ser visto e ouvido enquanto povo tradicional
Sou Hamangaí, jovem indígena do estado da Bahia, pertencente ao povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, da Aldeia Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu. Venho aqui compartilhar um pouco da minha experiência na COP24, que aconteceu em 2018, na Polônia, e trazer relatos da juventude indígena que participou da última conferência, em Glasgow, na Escócia. Mas afinal, o que é mesmo esse negócio chamado COP? Você já ouviu falar? Se ainda não ouviu falar, a COP é a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas que acontece anualmente, organizada pela UNFCCC. Esse é um daqueles eventos diplomáticos cheio de gente engravatada que anda sempre apressada nos corredores. Um espaço que muitos poucos jovens conseguem ocupar (ainda). Essa conferência é muito importante, pois nela se discute o nosso presente e futuro.
Como espaço de negociações, na Conferência do Clima se reúne estado, governo e sociedade civil a nível global para firmar acordos para combater a crise climática. A última COP foi a vigésima sexta e foi decepcionante por um lado – já que muito do que deveria ser acordado foi adiado para a próxima, que ocorrerá no Egito, no ano que vem –, mas muito importante, por outro, pelo menos para a comunidade indígena, que nunca teve uma delegação tão grande ali representada.
Desmentindo o governo
A COP26 teve a maior delegação formada por indígena da história. A sociedade civil conseguiu se mobilizar e se fazer presente ali. E por que isso foi tão importante? para desmentir os homens de crachás “tarja rosa” – crachá que identifica as delegações oficiais dos países e dava acesso às salas de reuniões e espaços de negociação dos acordos climáticos. No stand brasileiro, propaganda que somos o país com a agricultura que mais preserva o meio ambiente era o mote da campanha do governo, que fingiu que estava tudo bem com o país. Coube à sociedade civil disputar essa narrativa, com discursos, cartazes, protestos e só de estar ali, naquele espaço de disputa.
Uma dessas vozes foi da parente Txai Paiter Suruí, do povo Paiter Suruí, de Rondônia, que discursou no palco principal do World Leaders Summit, na Conferência do Clima (COP26). “A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo”, disse Txai, tendo na plateia líderes globais como o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson e o presidente dos EUA, Joe Biden.
Após essa fala, Txai foi verbalmente assediada por um membro da delegação brasileira, o que fez o país ganhar o “prêmio” de Fóssil da Semana, concedido pela organização ambientalista Climate Action Network (CAN). A jovem também foi criticada pelo presidente Jair Bolsonaro, recebeu ameaças e foi alvo de discurso de ódio na internet. Parte das mensagens questionava sua identidade indígena.
“Eu estava ali (discursando) representando não só o meu povo, mas todos os povos indígenas do Brasil. Eu acho que consegui ao menos levar uma mensagem de que nós, no Brasil, pode estar passando por ataques, mas também tem gente que quer defender a floresta. Que quer defender a Amazônia, que quer defender esse planeta”, disse Txai, em entrevista ao repórter Felipe Werneck.
Para Darlly Tupinambá, da Aldeia São Francisco, localizada nas margens do rio Tapajós – e uma das articuladoras nacionais do Engajamundo, organização da qual também faço parte –, infelizmente a voz indígena, embora presente na COP, não foi ouvida. “A crise climática está batendo em nossas portas muito mais cedo do que na porta dos líderes mundiais”, analisa. Para Darlly, que é estudante de Serviço Social e fiscal da associação de mulheres indígenas Suraras do Tapajós, é necessário financiamento para garantir a representatividade jovem e indígena nas conferências.
“Do que adianta ter juventude disposta a gritar por todos, o que está acontecendo se não temos apoio? Apoio é o que precisamos”, diz. “Não podemos esperar que aconteçam ações visando resultados até 2030 se não existir de fato comprometimento e responsabilidade por parte dos estados”.
Assim como Darlly Tupinambá, a estudante de direito Maial Paiakan, do povo Kayapó, do estado do Pará, defende que os indígenas são parte da solução da crise climática.
“Não temos uma garantia que o governo brasileiro vai proteger nossas terras. Não temos uma resposta efetiva. Precisamos continuar lutando e expondo o que está acontecendo no Brasil para que possamos ter uma resposta mais direta do que o Brasil e o mundo estão fazendo”, defende. “Nós mulheres indígenas estamos na linha de frente contra a crise climática e todas essas violências e retaliações no nosso retorno para o Brasil mostra muito bem que fizemos o trabalho certo e estamos do lado certo na luta em defesa da vida”, diz Maial.
Desmentir, mostrar a realidade local e lutar por direitos foi relatado pelos três jovens que conversei nas últimas semanas. “Muitas pessoas se emocionaram com as nossas falas tão fortes sobre a nossa realidade”, explica Valdinéia Sauré, do povo Munduruku, que esteve na COP26 e na Conferência da Juventude sobre Mudanças Climáticas da ONU (COY 16), que ocorreu entre 28 e 31 de outubro, um pouco antes da COP, que começou no dia 31 de outubro e terminou no dia 13 de novembro.
Valdinéia percebeu que muitas pessoas ainda não conhecem a realidade indigena brasileira. “Essa luta vem sendo travada pelos povos indígenas a milhares de anos e estamos aqui fazendo esse chamado para que outras pessoas também se engajem na luta pelo clima, e que essa luta não venha ser só uma preocupação nossa, mas de todas as pessoas ao redor do mundo.”
Como é longe a Polônia
A minha ida para a COP 24 foi a minha primeira viagem internacional e também a minha primeira participação em uma conferência internacional.
Os desafios foram imensos, a começar pelo idioma e captação de grana. Fiz parte da delegação mais diversa da história do Engajamundo, organização liderada por jovens no qual faço parte e me possibilitou ser a primeira jovem mulher do Engajamundo a participar de uma conferência internacional.
Curiosamente, eu nem fazia ideia de onde exatamente a Polônia se localizava, muito menos que eu iria me transformar numa Frozen, no meu segundo dia de conferência, sentir na alma em meio a lágrimas e soluços o quanto aquele espaço não foi pensando para nós, jovens indígenas. Esse choque foi extremamente necessário para que eu pudesse compreender o porquê de nunca desistir e continuar firme na luta e o quão importante seria compartilhar essa experiência com outros jovens.
Estava fazendo parte de uma delegação de 10 jovens de diferentes partes do Brasil e de diferentes contextos. Atuei no time de ativismo, composto só por jovens mulheres, e todas as nossas ações coletivas me encorajaram a continuar firme, ecoando nossa mensagem em defesa da mãe terra e dos nossos territórios.
Sem dúvidas foi um ano onde o sentimento era de muitas incertezas, não só na área ambiental brasileira, mas também já esperávamos o aumento de ataques aos direitos e vida dos povos indígenas no qual consequentemente iriam se acirrar diante a chegada de um governo totalmente autoritário. Quando a COP ocorreu, em dezembro de 2018. Bolsonaro estava eleito e montando o governo. Temor esse que infelizmente se confirmou, com todos os ataques que temos sofrido
Grito traduzido
Apesar de não falar o inglês, a minha tradutora oficial (Aninha), também membra da delegação do Engajamundo, segurava a minha mão e juntas ecoávamos um só grito e me auxiliava na tradução durante as reuniões e negociações dentro da conferência.
Não me senti sozinha naquele espaço, pois sabia que meus encantados sempre estavam ali do meu lado, me guiando e me acompanhando. Porém, escutar as falas nos espaços e até mesmo as negociações era algo excludente, por se tratar de uma linguagem muito técnica. 2018 vi muito poucos jovens indígenas, principalmente do Brasil, ali naquele espaço e de lá pra cá estamos ocupando cada vez mais, e essa COP26 teve uma presença histórica da juventude indigena brasileira nesse espaço,
Dia de luta na COP24
Tive a oportunidade de participar do Dia dos Povos Indígenas, em uma cerimônia de purificação com outras mulheres indígenas e me marcou muito ver e sentir a força das mulheres indígenas de vários continentes presentes ali na conferência.
Ali foi o momento que pude ouvir diferentes relatos do quanto as mudanças climáticas vem impactando suas vidas, suas famílias, o território, privando cada uma delas do acesso ao alimento e até mesmo interferindo em sua espiritualidade. Naquele momento, em cerimônia com elas, sentimos o quanto nós somos sagradas e o quanto somos a cura da terra e o quanto a justiça climática é urgente.
Meu desejo é que a juventude indigena ocupe cada vez mais esses espaços, que as nossas vozes sejam ouvidas e levadas em consideração e que metas urgentes e ambiciosas sejam colocadas em prática e não fique somente em discursos e falas vazias.
O levante da juventude pelo clima vem sendo um despertar global e nós jovens indígenas seguimos com essa missão ancestral de defender a mãe terra, nossos territórios, identidade e pelo direito de viver das futuras gerações. Mesmo diante de tantas violações de direitos e tentativas de extermínio dos povos indígenas no Brasil, a juventude indigena vem dando um grande exemplo de mobilização e coragem para seguir dando continuidade na luta que nossos antepassados iniciaram.
Juventudes que se cruzam e se conectam, juventudes que se reinventam e buscar formas de lutar contra a mineração, desmatamento e o genocídio. Ocupando as redes e todos os espaços, ecoando suas vozes e gritando por socorro em defesa da mãe terra e por justiça climática.
Fonte: O Eco
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