Edições Sesc São Paulo lançaram “Ecosofia”, do sociólogo Michel Maffesoli, que aborda os vínculos perdidos entre o ser humano e a natureza e as implicações nas sociedades atuais
Há tempos a natureza nos envia alertas sobre a sobrecarga que a humanidade delega aos recursos naturais do planeta. A pandemia do novo coronavírus e as temperaturas extremas nos hemisférios norte e sul do globo são apenas alguns dos indícios mais recentes deste cenário.
Um dos maiores especialistas em pós-modernidade, o francês Michel Maffesoli já era referência no campo da sociologia nos anos 1990, e em seu mais recente livro Ecosofia: uma ecologia para nosso tempo, lançado agora pelas Edições Sesc, o autor mantém o seu legado intelectual ao sintetizar a necessidade urgente de uma profunda reconexão com a Terra, para construirmos uma nova história para o Planeta, visando a sobrevivência da nossa própria espécie e de tantas outras.
Para Maffesoli, o poder “da ação brutal e do desenvolvimento desenfreado” gerou uma ruptura entre o humano e a natureza, o que acarretou uma devastação imposta pelo racionalismo em detrimento à nossa conexão inerente com a Terra, a casa de todos os seres. Com prefácio à edição brasileira sobre o contexto da pandemia de covid-19, o autor explora no livro a necessidade de estabelecermos experiências comunitárias a fim de retomar este vínculo com a natureza .
Maffesoli é professor emérito da Universidade Sorbonne (em Paris), fundador e diretor do Centre surl’Actuel et le Quotidien (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), vice-presidente do Institut Internacional de Sociologie (Instituto Internacional de Sociologia) e secretário-geral do Centre de Recherche sur l’Imaginaire (Centro de Pesquisa sobre o Imaginário). Confira abaixo a sua entrevista exclusiva para o Um Só Planeta.
1. Como se deu o início dos seus estudos a respeito da Ecosofia?
Desde 1979, em meu livro “La Violence totalitaire” (A Violência totalitária, 1979, Sulina, 2001) eu fazia críticas ao mito do progresso, este que foi uma característica da grande modernidade, segundo a injunção do filósofo Descartes que considerava o homem como “mestre e dono da natureza”.
Ao meu ver, este progressismo, que foi a grande ideologia dos tempos modernos, resultou na bem sucedida devastação do mundo. A multiplicidade de tumultos ecológicos na atualidade mostram bem que essa devastação é um elemento cada vez mais importante. E é graças a esta análise que fui levado a desenvolver essa temática da Ecosofia, levando o seu sentido etimológico (em grego ‘oikos’ = casa e ‘sophia’= sabedoria) a uma sensibilidade que consiste em cuidar da natureza, do meio ambiente e considerar que não podemos vislumbrar um ambiente social sem levar em consideração o meio ambiente natural.
2. A Ecosofia seria, portanto, um caminho para revermos nossa relação com o Planeta e garantirmos mais equilíbrio entre todos os seres?
Efetivamente, podemos considerar que essa filosofia, no modo ideal, seria a forma mais certeira de conhecer melhor o planeta e a espécie humana que nele reside. Para além de uma concepção puramente economicista, que gera os desequilíbrios sociais e a multiplicação da pobreza, é possível que a sabedoria ecosófica, fundada sob a ideia de partilha e ajuda mútua, permita o intercâmbio para garantir o equilíbrio entre os seres que habitam a Terra.
3. Como trazer esta “sensibilidade ecosófica”, como o senhor mesmo a intitula, para o nosso cotidiano? Tanto na vida da sociedade civil quanto para as principais decisões de líderes mundiais?
A sensibilidade ecosófica oferece também uma dimensão mais política. Sensibilidade significa algo que se vivencia no dia a dia, com práticas inócuas, vividas no dia a dia, ao evitar o desperdício de água, de luz e de bens de consumo, por exemplo.
Nesse sentido, é interessante observar que as gerações mais recentes, de forma mais ou menos inconsciente, vivenciam essa sensibilidade de forma muito concreta. O mesmo é verdade para as classes populares que, na sua maioria, têm uma atitude semelhante e não tendo uma reflexão estritamente ecológica, estão atentas a uma série de práticas que evitam o consumo excessivo dos recursos naturais.
Contudo, vivemos um momento em que os dirigentes mundiais e políticos, bem como os econômicos e até mesmo os jornalistas não estão totalmente cientes dos problemas colocados pela exploração abusiva de natureza.
Por isso, podemos dizer que precisamos de um engajamento popular cada vez maior para podermos integrar a sabedoria ecosófica nas sociedades. As elites terão que levar cada vez mais em conta a sensibilidade ecosófica se quiserem permanecer no poder.
4. Como a pandemia da covid-19 deixou ainda mais escancarada essa falta de equilíbrio que estamos vendo nas diferentes esferas e ecossistemas do Planeta?
É impressionante ver que esta pandemia matou principalmente idosos, que sofrem de obesidade mórbida, diabetes, etc. e que são patologias ligadas ao meio ambiente e a estilos de vida menos saudáveis.
Na verdade, cada fim de época experimenta uma ou mais epidemias: houve a peste antonina no final do Império Romano e a grande praga do século XIV europeu.Esta pandemia é, portanto, tanto uma crise de civilização como uma crise sanitária, o que nos deixa ainda mais atentos à necessidade de preservar o equilíbrio das nossas raízes naturais.
5. Quais valores faltam nas sociedades atuais e que seriam essenciais para incorporarmos a Ecosofia como um caminho para regenerar o Planeta?
As sociedades permanecem marcadas pela ideologia produtivista e economicista da modernidade. O consumo excessivo de recursos naturais, os estilos de vida impostos pela publicidade e pela mídia ainda são características fortes da contemporeneidade.
Contudo, existe uma sociedade que chamo de não oficial, que não tem o poder de dizer e fazer, mas tem no cotidiano práticas e ideias que vão de encontro ao que chamo de Ecosofia.
É mesmo analisando as práticas das gerações mais novas, em particular, que acredito que a ecosofia está em sintonia com o atual espírito do tempo e que as elites dessa “sociedade oficial” irão perceber este descompasso com a cultura jovem.
É interessante notar que o desenvolvimento tecnológico, a cibercultura e as redes sociais estão em processo de desenvolvimento dessa sociabilidade alternativa. Isso é o que alguns chamam de “ativismo na rede”. Há nisso uma atitude alternativa que reforça a ecosofia e que permite que ela se torne uma característica cada vez mais importante no Zeitgeist (espírito do tempo).
6. Como o mito do progresso se relaciona a um consumo desenfreado e à exploração ilimitada da natureza e dos recursos naturais?
O que chamei de mito do progresso é a grande ideologia de que surgiu como resultado da filosofia iluminista, que prevaleceu ao longo do século 19 até se tornar uma nova religião. Principalmente, nos grandes sistemas filosóficos e sociais que sucederam a Hegel e Marx.
Sistemas que pensavam que graças ao progresso conseguiríamos resolver todos os problemas humanos e em uma sociedade perfeita, um paraíso na terra.Não nos esqueçamos de que foi esse progresso que deu origem ao que meu saudoso amigo Jean Baudrillard chamou de “sociedade de consumo” ou mesmo de “sistema de objetos”, ou seja, a pessoa está de fato possuída por aquilo que acredita possuir.
É nessa perspectiva que o domínio da natureza resultou em uma devastação inegável. Eu não sou um profeta e é claro que é difícil, senão impossível, dizer com precisão como alguém pode resolver o atual cenário. Em todo o meu trabalho, no entanto, tenho prestado atenção ao fato de que as gerações mais novas já não se reconhecem no valor do trabalho e no consumo excessivo e isso poderá ser uma alternativa real ao contexto que presenciamos.Numerosos levantes, revoltas, insurreições em todo o mundo mostram que o desejo por uma nova, mais generosa, mais cultural, e ainda mais espiritual sociabilidade está em formação. Isso é o que eu chamo de pós-modernidade.
Fonte: Um só Planeta
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