Moradores da Comuna 20 de Cáli, o primeiro e maior bairro informal da terceira cidade mais populosa da Colômbia, organizaram uma vigília na segunda-feira (3/5) em homenagem aos manifestantes mortos após cinco dias de protestos violentos.
“Havia crianças e mães, era um ambiente de família”, lembra Kevin Reyes, um liderança social da região. As pessoas presentes à vigília percorreram o caminho que liga o bairro ao resto da cidade.
“Por volta das 20h30 começamos a ouvir que o Esmad (Esquadrão Móvel Anti-Motim) estava chegando… então chegou um helicóptero que tocava o hino nacional e uma luz refletora foi emitida como se procurasse pessoas”, ele lembra.
E aí começou um confronto no qual Reyes viu “policiais encapuzados e militares disparando armas semiautomáticas e rifles”.
No dia seguinte, a comunidade de Siloé, como também é conhecido o bairro, contabilizava vários mortos e desaparecidos. Agora eles esperam fazer uma nova vigília em homenagem às vítimas.
Faz uma semana que a Colômbia vive uma espiral de protestos e confrontos violentos entre manifestantes e forças de segurança. São choques inéditos em sua história recente por sua abrangência e por serem constantes. E Cáli, uma cidade com mais de 2,3 milhões de habitantes e capital do departamento do vale do Cauca, no sudoeste da Colômbia, se tornou o epicentro.
A onda de protestos começou com uma proposta de reforma tributária mas deve se manter mesmo após a votação do projeto ter sido suspensa.
O projeto tinha pontos polêmicos, como aumento de impostos sobre a renda e sobre produtos básicos, de forma a aumentar a arrecadação tributária e evitar que a dívida colombiana gere a perda de mais pontos nas avaliações de risco de agências internacionais.
O governo defendia a necessidade desse incremento como forma de arrecadar o equivalente a 2% do PIB e sustentar os programas sociais implementados durante a pandemia de covid-19.
No último domingo, já diante de quatro dias consecutivos de protestos, o presidente Iván Duque pediu que o Congresso tirasse reforma tributária da pauta de votações, para que fosse revisada e virasse “fruto de consenso, de modo a evitar incerteza financeira”. Mesmo assim, as manifestações continuaram, principalmente em protesto pelas mortes ocorridas nos choques com a polícia.
Os dados disponíveis da onda de violência na Colômbia são preliminares e não consolidados. A Ouvidoria Geral contabilizou nesta terça-feira (4/5) pelo menos 19 mortos, 89 desaparecidos e milhares de feridos.
Mas só em Siloé na segunda-feira, por exemplo, a prefeitura de Cáli contabilizou cinco mortes.
A escalada da violência em todo o país – com Cáli como epicentro, mas também em municípios de pequeno e médio porte – bloqueou as estradas principais, destruiu dezenas de pedágios e incendiou centenas de edifícios públicos e privados.
O governo de Iván Duque, que propôs na terça-feira (4/5) um reunião para negociação com todos os setores, inclusive manifestantes, atribui a violência a infiltração de grupos guerrilheiros e terroristas, bem como a vândalos que aproveitam para saquear o comércio.
Os críticos, porém, falam em massacres pelas mãos do Estado após o anúncio do presidente de militarizar as ruas. O general-chefe do Exército, Eduardo Zapateiro, chegou a Cáli para liderar o que chama de “recuperação da cidade”.
Enquanto isso, centenas de vídeos, que cada um parece interpretar de acordo com sua posição, circulam pelas redes sociais e chats, ampliando a ansiedade que invade o país.
“Violência na comunidade”
Em outra área de Cáli, uma área mais rica conhecida como Ciudad Jardín, a comunidade local também se reuniu na rua na noite de segunda-feira.
Eles estacionaram dezenas de vans nas ruas para impedir a entrada do “vandalismo”.
E relataram: “Todo mundo está usando colete à prova de balas, ferros (armas) e aqui estamos todos (…) preparados para repelir qualquer inimigo”, ouve-se em um dos vídeos coletados pela BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Duas testemunhas dos confrontos em Cáli disseram à BBC Mundo que temem que grupos de civis armados que buscam apoiar as forças de segurança em sua luta contra os chamados “vândalos” tomem as ruas.
“Há grupos de civis pedindo a redução da violência”, disse Katherine Aguirre, especialista em direitos humanos da cidade. “Mas também vimos grupos de cidadãos que começaram a atirar de suas casas, vigilantismo estimulado pelo fluxo de armas na cidade.”
Jorge Restrepo, diretor do CERAC, um centro de estudos que monitora violência, acrescenta: “As evidências que pudemos analisar mostram que em Cali houve violência comunitária, em que a força pública se excedeu. Foram incidentes de reação descontrolada, mas não programados e dirigidos contra civis.”
Cáli tem um fluxo incomum de armas: embora não haja números consolidados de armas por habitante, as autoridades apreendem centenas a cada mês.
Além disso, apesar de ter conseguido reduzir os homicídios em 30% nas últimas duas décadas, a capital do Vale do Cauca é a mais perigosa da Colômbia, com 45,1 homicídios por 100 mil habitantes em 2019, segundo dados oficiais.
Parte de sua incapacidade de acabar com a violência se deve ao fato de estar localizada entre três regiões afetadas pelo conflito e o tráfico de drogas: Chocó, Cauca e Valle del Cauca.
E isso, segundo especialistas, tem contribuído para a versão mais violenta dessa nova onda de protestos que ocorre naquela cidade.
Sensação de confinamento
A sensação de confinamento produzida pela covid-19, cujo número de infecções e mortes estão agora em seu pior patamar desde que a pandemia começou na Colômbia, foi revelada esta semana com os protestos.
Enquanto muitos estão nas ruas protestando, a maioria está em casa, usando aplicativos para chats e redes sociais, sem poder sair. Os caminhões não podem chegar às cidades. As prateleiras dos supermercados começam a mostrar uma rara escassez para um país acostumado à estabilidade política e econômica.
Mas agora a Colômbia parece estar entrando em um território desconhecido.
Os protestos de novembro de 2019 foram relativamente pacíficos, com quatro mortes. Depois, os de setembro de 2020 deixaram 13 mortos em apenas dois dias de manifestações em Bogotá. Agora o número de mortos é superior a 20 e os militares estão nas ruas reprimindo as manifestações.
“É evidente que há uma escalada de violência”, disse Alberto Sánchez Galeano, um especialista em segurança de Cáli que assessora governos locais.
“E o que acho que isso mostra é que continuamos tentando consertar com a polícia o que prejudicamos com políticas ruins”, explica. “Não se resolve com a polícia a má gestão de reforma tributária na pandemia”, explica ele sobre a medida de Duque que desencadeou esta última onda de protestos.
Muitos dos especialistas em segurança passaram anos denunciando o péssimo estado da polícia do país, que apresenta déficits de pessoal e equipamentos e é utilizada para operações como despejos, aplicação de quarentena ou perturbação da ordem pública.
“A falta de liderança política acaba sendo assumida pela polícia”, reclama Sánchez Galeano.
De fato, nos últimos dias, a falta de informações consolidadas sobre o que está acontecendo nas ruas, especialmente em Cáli, tem contribuído para o sentimento de ansiedade e aprofundamento da polarização entre os colombianos, apontam os analistas.
A incerteza leva um país a tal ponto que até defensores internacionais dos direitos humanos são confundidos com manifestantes ou, no jargão de seus críticos, “hooligans”.
Foi o que aconteceu na segunda-feira em um protesto em um bairro conhecido como La Luna, em Cáli, que foi reprimido pelas forças de segurança.
Uma comissão de funcionários de organizações chegou lá para tentar verificar uma denúncia de abuso.
“Membros da comissão receberam ameaças e ataques, bem como tiros da polícia, sem que ninguém fosse atingido”, relatou Juliette de Rivero, representante na Colômbia no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
A comissão teve que se abrigar por várias horas em uma casa para evitar o fogo cruzado.
O famoso hotel La Luna, em Cáli, foi incendiado e seus hóspedes disseram à mídia que aquilo parecia ter saído de um filme: “Quase nos queimaram vivos.”
Fonte: BBC News Brasil
Comentários