Fernando Reinach*
Uma cidade atinge a imunidade de rebanho quando o número de pessoas que se tornou imune ao vírus (seja por terem sido infectadas ou por terem sido vacinadas) é grande o suficiente para que o vírus não consiga se espalhar. Agora um grupo de cientistas descobriu que 66% da população de Manaus já foi infectada pelo SARS-CoV-2. Isso sugere que pelo menos nessa cidade a imunidade de rebanho foi atingida.
Se essa descoberta se confirmar, é provável que algumas outras capitais do Brasil, que também enfrentaram surtos muito fortes, possam ter atingido uma fração semelhante de pessoas infectadas.
Além disso, outras cidades como São Paulo e Rio de Janeiro podem atingir esses níveis de infecção antes de a população ser vacinada.
Esse grupo de cientistas, liderados por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), usaram um método simples para medir o número de infectados em Manaus. Em grande parte das grandes cidades existem hemocentros, instituições onde as pessoas doam sangue. O sangue dessas pessoas é coletado e distribuído para os hospitais. Para certificar que o sangue doado não contém vírus e outros patógenos, os hemocentros possuem laboratórios que testam cada amostra de sangue coletada. Nesse estudo os pesquisadores incluíram, na lista de testes que é executada em cada bolsa de sangue, o exame que detecta a presença de anticorpos que reagem contra o SARS-CoV-2. Dessa maneira os pesquisadores puderam medir a fração dos doadores que possuía anticorpos contra o vírus e, portanto, já havia sido infectada.
Foram testados, na primeira semana de cada mês (de fevereiro e agosto de 2020) por volta de 900 doadores. A fração de amostras positivas para os anticorpos contra o SARS-CoV-2 passou de 0,1% em fevereiro (1 positivo em 821 amostras) para 46,3% (421 positivos em 909 amostras) em junho. Nos dois meses seguintes essa porcentagem caiu, chegando a 27,5% em agosto. Esses são os dados brutos do estudo. Eles demonstram que ao menos 46% das pessoas que doaram sangue em Manaus já haviam sido infectadas em junho de 2020.
A partir desses números, os pesquisadores fizeram várias correções para compensar possíveis erros de medida. Como as pessoas que doam sangue não são uma amostra representativa da população de Manaus (crianças e idosos não podem doar sangue e poucas mulheres doam), os dados foram corrigidos para essas diferenças, o que não mudou muito os números.
Em seguida os dados foram corrigidos para levar em consideração o número de falsos positivos e negativos nos testes, o que levou a fração máxima de infectados para 51,8%. Finalmente os dados foram corrigidos para levar em consideração o número de pessoas em que os anticorpos desaparecem após dois ou três meses. Essa correção levou o número máximo de infectados para 66,1%. Ou seja, o conjunto de correções elevou o número de pessoas já infectadas do número bruto de 46,3% para 66,1%.
Como se acredita que a imunidade de rebanho para o SARS-CoV-2 seja conseguida com 60% de infectados, esse dado sugere que, na cidade de Manaus, a imunidade de rebanho foi atingida. Um estudo realizado no Maranhão já determinou que 40% da população do Estado havia sido infectada há aproximadamente um mês.
Esses dados, se forem confirmados, demonstram que a imunidade de rebanho, considerada algo distante alguns meses atrás, muito provavelmente vai ser atingida em muitas cidades no Brasil e no mundo antes da chegada da vacinação em massa. E isso vai ocorrer onde as medidas de combate à doença foram mal implementadas ou foram desrespeitadas. É o que costumo chamar imunidade de rebanho por incompetência (IRPI).
O interessante é que logo mais saberemos na prática se Manaus realmente atingiu a imunidade de rebanho. Se isso tiver acontecido, não haverá segunda onda por lá, ou a segunda onda será pequena. Veremos nos próximos meses. Mas o fato é que esta semana Manaus decidiu apertar novamente as medidas de distanciamento social.
*Biólogo, PHD em Biologia Celular e molecular pela Cornell University e autor de A chegada do novo coronavírus no Brasil.
Fonte: Estadão
Comentários