As décadas de experiência de equipes de fiscalização ambiental na Amazônia, que ajudaram a reduzir as áreas desmatadas e queimadas entre 2005 a 2015, estão sendo substituídas. Saem técnicos e profissionais de carreira, junto com todo o seu conhecimento, e entra um comando militar concentrado no Ministério da Defesa, com profissionais muitas vezes sem qualquer especialização em fiscalização ambiental ou no bioma. Essa troca vem gerando entraves na atuação de órgãos como o Ibama e o ICMBio, enfraquecendo as políticas ambientais do Estado e agravando o ciclo de desmatamentos e queimadas na floresta amazônica.
Alvo de intensas críticas, o poder de decisão quanto às chamadas ações e articulações de “comando e controle” na Amazônia foi regulamentado no decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) de maio, que autoriza o emprego das Forças Armadas, à frente da Operação Verde Brasil 2. Em comparação com decreto similar de GLO de 2019, houve a adição de um parágrafo que determina que órgãos federais de proteção ambiental “serão coordenados” pelos comandos militares sob a alçada do Ministério da Defesa, responsável maior pela “alocação dos meios disponíveis”.
“Apesar de ser vendida como uma ação de proteção ambiental, a GLO aumenta a humilhação do Ministério do Meio Ambiente/Ibama que, apesar da experiência, tem de cumprir ordens dos militares”, avalia o pesquisador Antonio Oviedo, do Instituto Socioambiental (ISA). No Mato Grosso, exemplifica Oviedo, o Ibama sugeriu alertas de desmatamento em regiões que foram ignoradas pela Operação Verde Brasil 2, sob a qual pesam desaprovações pelo uso de estratégias ultrapassadas, ineficazes e dispendiosas. “Isso mostra o equívoco. Órgãos como Ibama e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), por mais limitadas que sejam suas ações, trabalham com informações e planejamentos por meio de sistemas de monitoramento e equipes que atuam na gestão territorial”.
À frente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, o vice-presidente Hamilton Mourão tem minimizado o peso dessa acumulação de poderes. Segundo ele, as Forças Armadas se limitam a dar apoio logístico e de segurança à fiscalização, porque as agências do setor “perderam sua capacidade operacional”. À Repórter Brasil, o Ministério da Defesa informou que “todas as ações são decididas no âmbito do Grupo de Integração para Proteção da Amazônia (Gipam)”, que reúne órgãos de segurança pública e agências ambientais como Ibama, ICMBio, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Serviço Florestal Brasileiro (SFB) – este último transferido no início deste governo do Ministério do Meio Ambiente para o da Agricultura.
O ponto que causa preocupação é que, além da intervenção militarizada em cargos de chefia, a própria “representação” dos órgãos ambientais federais nesta instância acaba por ser prejudicada e também questionada. Os atuais ocupantes de cargos de coordenação na Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama não têm expertise na área. As assessorias da própria autarquia e do Ministério da Defesa, que concentra posições do governo sobre o tema, não informaram à reportagem quem representa os respectivos órgãos no Gipam.
Ex-presidente do Ibama, Suely Araújo destaca que o combate ao desmatamento requer a participação de vários ministérios e que vinha sendo esta a política de prevenção e controle do desmatamento na região desde 2004. A atuação do órgão para definir as áreas prioritárias, segundo ela, incluía também o Inpe, o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) e o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). “O que está acontecendo é que, na prática, houve um esvaziamento da função de coordenação do Ministério do Meio Ambiente na parte de fiscalização ambiental.”
“Atrasos nas atualizações de informações sobre os embargos têm implicações concretas. Os bancos olham a lista do Ibama na hora de fornecer crédito rural no Brasil inteiro. Podem estar fornecendo crédito a quem não deveria estar recebendo”, comenta Suely Araújo, que hoje faz parte da coordenação do Observatório do Clima. Militares da Operação Verde Brasil 2 afirmam ter realizado, de meados de maio a meados de julho, mais de 14 mil ações com mais de 1,2 mil termos de infração, que atingem um total somado de R$ 407 milhões em multas. A depender do ritmo das audiências de conciliação e das atualizações na lista de embargos (também não comentadas apesar do contato com o próprio Ibama), esses autos de infrações ainda percorrerão um longo percurso até que possam, algum dia, estar especificados e disponíveis publicamente.
Em março, o Ibama fixou novas restrições ao contato entre servidores do órgão e jornalistas. “A relação com a imprensa virou outra. O Ibama usava a divulgação via imprensa para impedir outros crimes ambientais, o que ajudava a evitar crimes parecidos”, analisa Suely Araújo. “Hoje, a imprensa não vai junto e nem recebe detalhes dos relatórios dessas operações.”
‘Liberou geral’
“Ao longo da história, foram tomadas decisões políticas que deram anistias a [produtores rurais implicados em infrações ambientais] que realmente mostraram que ‘compensou’ ignorar ou descumprir o que era exigido no passado [em termos de normas legais ambientais obrigatórias]”, reforça o secretário-adjunto do Meio Ambiente do Mato Grosso, Alex Marega, em referência à pulverização de passivos ambientais até 2008, consagrada pela flexibilização do Código Florestal, em 2012. “A pessoa pensa assim: ‘eu tenho que fazer hoje porque lá na frente, se derem uma anistia, eu já estarei com o meu garantido’”.
O senso de impunidade, segundo ele, é a principal explicação para a recente alta do desmatamento amazônico. “Muitos produtores acham que não vão ser pegos ou que, mesmo que sejam pegos [pela fiscalização ambiental], ainda vai valer a pena”, assinala. “Com a valorização cambial [além dos próprios altos preços de commodities como a soja], sabendo que os produtos são exportados, mesmo que eles tenham que arcar com multas e processos judiciais, eles ainda acham que vão conseguir cobrir todos esses custos”.
Pesquisador de história ambiental e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Augusto Pádua salienta que esses agentes do desmatamento na Amazônia não mantêm um posicionamento social rígido. Um determinado madeireiro, ao abrir estradas, pode decidir ocupar essas áreas das quais extrai toras, com o passar do tempo, como “fazendas” para criação de gado. Pode investir também no garimpo; ou seja, não são grileiros com uma função fixa, em tempo integral. “Eles se movem de acordo com cada contexto. Estão sempre lá, mas o ritmo e a ousadia dependem da sinalização política que é dada.”
Na década em que houve redução substantiva do desmatamento (2005-2015) , eles continuaram lá, mas investindo em outros negócios como postos de gasolina e outros comércios e serviços. “Quando percebem que há uma abertura, eles vão com tudo. É importante destacar que o atual governo utiliza esse discurso de que o desmatamento sempre existiu de forma descontrolada. E isso é uma mentira”, complementa Pádua. A gestão federal do presidente Bolsonaro é, para ele, “diretamente responsável pelo retrocesso que aconteceu” e fez com que o Brasil voltasse a ter “imagem de vilão ambiental” por conta do descontrole no avanço dos desmatamentos e das queimadas da Amazônia no ano passado e neste ano.
A sinalização, portanto, é fundamental. “E a sinalização do início do governo Bolsonaro foi péssima: dizer que não vai mais demarcar nenhum centímetro de terra indígena; criticar as Unidades de Conservação. Todo um discurso atrasado de ‘liberou geral’, um retorno daquela visão de que a conservação é inimiga do desenvolvimento”, emenda o historiador. Segundo ele, a mentalidade do Bolsonaro coincide com a do garimpeiro, que vê a floresta como “coisa sem valor, como um empecilho para o que interessa, que é o ganho econômico”.
Quando ainda na condução do Ibama, Suely Araújo já havia notado mudanças no segundo semestre de 2018, tanto na trajetória crescente dos alertas de desmatamento na Amazônia quanto na maior hostilidade contra os fiscais em campo. O motivo, segundo ela, era a corrida presidencial. “O tom da campanha, com o então candidato Bolsonaro, foi contrário à fiscalização ambiental. As multas ambientais eram apresentadas como parte de uma ‘indústria de multas’, como se os fiscais estivessem fazendo algo errado. Mais grave do que isso: os infratores sentem uma sinalização de que ‘tudo pode’, gera um aumento no número de ilicitudes”.
Em 2019, relembra Oviedo, do ISA, a GLO passada, acompanhada da moratória do fogo de 60 dias, contribuiu na atuação de combate a incêndios, mas praticamente não teve incidência sobre os índices de desmatamento. “Junto com toda a floresta derrubada em 2020, existe uma quantidade enorme em biomassa seca pronta para ser queimada durante a temporada de fogo na Amazônia deste ano”, destaca. Considerado o agravante da Covid-19, que também agride a saúde respiratória, é possível que haja – como destaca o pesquisador – uma sobreposição de dois picos críticos (de queimadas e de infecções virais) que pode culminar em novos colapsos do sistema de saúde (com menor disponibilidade de leitos e profissionais da saúde, e aumento da mortalidade) durante a estação anual de focos de fogo na Floresta Amazônica (agosto a outubro). Nota técnica de junho do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), estima que, caso persistam os vetores de desmatamento atuais, cerca de 9 mil km² de áreas desmatadas podem virar cinzas. Cálculos do IPAM feitos nos municípios mais afetados pelas queimadas na Amazônia apontaram que, em média, o ar ficou 53% mais poluído.
Fonte: Repórter Brasil
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