Mais um negro morto por policiais brancos nos Estados Unidos. Qual a novidade disso? Sempre foi assim.
Farid Mendonça Júnior
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Este tema está praticamente ligado à origem dos Estados Unidos. Lá, assim como no Brasil, o tráfico negreiro se estabeleceu como um dos fundamentos da economia daquele país, principalmente nos estados do sul, nas fazendas de algodão, que forneciam a matéria-prima para a primeira revolução industrial da Inglaterrra, muito focada na indústria têxtil.
Com o passar do tempo, os Estados Unidos vivenciou uma terrível guerra civil (1861 a 1865), em que um dos fatores centrais foi a abolição ou a continuação da escravatura. Os Estados do norte eram abolicionistas, os do sul eram escravocratas. Mas os do norte não eram favoráveis ao abolicionismo porque respeitavam o homem negro ou os direitos humanos, mas sim porque, tal como a Inglaterra, entenderam que para o capitalismo se expandir e enriquecer era necessário expandir o mercado interno, e com isso ter o negro como um assalariado que iria passar a demandar pelos bens e serviços ofertados pela economia.
O negro passou a ser um assalariado e um consumidor, mas não um cidadão. Não teve seus direitos políticos alçados ao mesmo patamar do homem branco, e também não teve as mesmas oportunidades. Passou a maior parte da história americana segregado.
“I have a dream”
Mesmo com os discursos acalorados de Martin Luther King, os negros americanos seguiam alheios, humilhados e sem perspectivas no coração do capitalismo. Até que um tiro apagou o homem que tinha um sonho (“I have a dream”).
Os negros começaram a ter os mesmos direitos nos Estados Unidos a partir da década de 1960. Entretanto, ainda eram no sentido formal, na letra da lei. A discriminação continuava, não de forma velada, mas sim escancarada, bem como a falta de oportunidades, pra não dizer dos verdadeiros guetos existentes até hoje na periferia de diversas cidades americanas.
Um grito adormecido se materializa
Em pleno século XXI, no ano de 2020, no meio de uma pandemia, mais um negro (George Floyd) é morto de forma acovardada por um policial branco americano. Novidade? Nenhuma. Sempre foi assim. Mas os protestos de tal magnitude no meio de uma pandemia sem precedentes materializam um grito adormecido, uma revolta que clama por mudanças não só nos Estados Unidos, mas no mundo todo, haja vista que este grito se espalha agora por outros países.
Incrível pensar que chegamos no ano de 2020 e o racismo, algo tão velho e sem sentido, continua a existir. O mundo parece não superar velhos temas. E a pandemia parece ter ficado em segundo plano diante da necessidade do povo em clamar por mudanças.
Brasileiro no exterior
Lembro quando estive no ano 2000 fazendo intercâmbio naquele país. Estudava num colégio público de quase 3 mil alunos. Pessoas de diversos países (México, Colômbia, Nicarágua, Panamá, Argentina, Cuba, França, Inglaterra, Japão, Vietnã, China, países da África, entre outros).
Na hora do recreio as pessoas sentavam conforme sua cor e sua etnia. Brancos sentavam com brancos. Negros sentavam com negros. Pessoas asiáticas ficavam com asiáticos. Mexicanos com mexicanos e outros latino americanos. E assim conviviam. Todos os dias (de segunda a sexta) eu via isso. Pessoas separadas, como se um muro invisível as separassem. Tal é a força do racismo e das diferenças de “raça” naquele país. Ninguém me contou, eu vi e vivenciei. Tentava sentar e interagir com todas as pessoas, mesmo sabendo que nem sempre era bem recebido.
Racismo e indiferença
Certo dia, consegui uma namorada, chamava-se Catherine. Começamos a namorar numa sexta-feira. Ela era branca, típica classe média americana. No final de semana fiquei pensando em comprar uma rosa ou uma caixa de chocolate pra ela. Um amigo brasileiro me aconselhou: calma, não vá tão rápido.
Na segunda, na escola, ao encontrar a moça, já com um ar de indiferença, chegou pra mim e disse que não podíamos namorar. Fiquei confuso. Perguntei o porquê, ela não quis responder. Fiquei insistindo. Até que ela disse: meu pai não deixou. E eu insisti perguntando o motivo, já que o pai dela nem tinha me conhecido. Então ela disse: meu pai não deixa porque ele pensa que as pessoas do México pra baixo são a mesma coisa, todos latino-americanos.
Fiquei sem palavras. Senti ali pela primeira vez na vida como era ser discriminado. Simplesmente pela minha origem. Naquele momento, pela primeira vez pensei em como um negro deve se sentir ao ser discriminado pelo simples fato de ter a cor preta na pele.
Esquerda e direita
Mais um tema antigo que chama a atenção é a velha discussão entre esquerda e direita. Vamos voltar para 1776 na época da revolução francesa, quando tínhamos no parlamento daquele país os jacobinos (que sentavam à esquerda no parlamento e eram considerados mais radicais por não concordarem com o statos quo) e os girondinos (que sentavam à direita do parlamento e eram mais moderados)?
Vamos voltar no tempo para o pós segunda guerra mundial onde tivemos uma guerra fria dominada por duas nações com discursos e atos ideológicos totalmente distintos e que, com as armas de destruição em massa, ameaçaram uma a outra, bem como o mundo todo, em destruir a humanidade milhares de vezes, pois tal era a capacidade e quantidade das armas que dispunham?
Vamos então continuar a ter um mundo dominado por ditaduras e discursos de ódios por muitos acreditarem que a democracia não deu certo?
Vamos endurecer nossas realidades? Segregar uns aos outros por não concordarmos com seus posicionamentos políticos?
Vamos construir campos de concentração novamente para obrigar pessoas a trabalhar de forma forçada até não aguentarem mais, fazer experiências abomináveis com seus corpos, fazê-los passar fome e frio até sucumbirem, torturá-los e usar gases para sufocá-las até a morte?
Cultivo do ódio
O caminho que estamos atravessando é de intolerância, de falta de compaixão e do cultivo do ódio. Isto pode nos levar a um caminho perigoso e sem volta, a um Armageddon criado por nós mesmos.
O historiador Eric Hobsbawm se referiu ao século XX, precisamente de 1914 a 1991 como a “Era dos Extremos”, título do seu livro.
Já no final deste mesmo livro, Hobsbawn (pág. 446) conclui:
“O que escrevi não pode dizer-nos se e como a humanidade pode resolver os problemas que enfrenta no fim do milênio. Talvez possa ajudar-nos a compreender quais são esses problemas, e quais devem ser as condições para sua solução, mas não até onde essas condições estão presentes, ou em processo de criação. Pode dizer-nos quão pouco conhecemos, e quão extraordinariamente pobre tem sido a compreensão de homens e mulheres que tomaram as grandes decisões públicas do século; pode dizer-nos quão pouca coisa do que aconteceu foi esperada, sobretudo na segunda metade do século, e menos ainda por eles prevista. Pode confirmar o que muitos sempre suspeitaram, que a história — entre muitas outras coisas, e mais importante — é o registro dos crimes e loucuras da humanidade.”
Pessoas
Completo dizendo que por trás de cada nação existem pessoas, indivíduos. E que a maldade está em cada indivíduo, que no seu conjunto pode levar todos nós para a catástrofe, como tantas vezes já estivemos.
O que todos estes temas tem em comum? A intolerância com a cor do outro, com a origem do outro, com a posição política e ideológica do outro e com o ódio que pode habitar em nossos corações.
Que a humanidade não escancare a porta deste caminho e consiga encontrar o diálogo, a paz, a tolerância e a prosperidade.
Devolvo a palavra para Hobsbawn (pag. 447) que novamente conclui:
“Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.”
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